Gostaria de começar por sublinhar, precisamente, a extrema importância e o carácter em muitos aspectos claramente inovador desta abordagem da problemática da Língua Portuguesa e do seu ensino assim proposta. Inovador, antes de mais pelo reconhecimento do papel decisivo que a sociedade civil deve desempenhar no debate sobre a Língua. Portugal e a generalidade dos países lusófonos vêm de uma tradição estatizante de raiz francesa, que remonta, em última análise, a Richelieu e a Napoleão, e que tende a abordar esta problemática na óptica exclusiva de uma definição das políticas para a Língua reservada ao Estado, através das múltiplas instituições públicas vocacionadas para este campo, dos Ministérios da Educação e Cultura às Academias e às Universidades.
Os estados democráticos têm, como é evidente, toda a legitimidade para exercer esta função, mas essa legitimidade própria não pode iludir o facto de que a Língua é, antes de mais, um património colectivo e de que por isso as sociedades, como um todo, e cada cidadão, individualmente, devem ser mobilizados de forma participativa para o debate em torno das opções de futuro que afectam a gestão e o uso desse património. Julgo, de resto, que muita da polémica surgida ao longo da última década em torno da famigerada questão do Acordo Ortográfico de 1990 – e independentemente da maior ou menor consistência dos argumentos aduzidos a favor ou contra o novo normativo – derivou do carácter reservado do seu processo de gestação quase à porta fechada, que não se abriu suficientemente à participação da sociedade civil e não soube traduzir por isso consensos sociais suficientemente alargados no seio do espaço lusófono. A sociedade civil deveria ser, de facto, o verdadeiro protagonista em toda a sua a reflexão estratégica sobre a Língua, debatendo e definindo activamente metas e objectivos, bem como metodologias e pressupostos pedagógicos que, sem prejuízo das áreas de competência especializada que devem ser reconhecidas aos peritos, não podem ser discutidos e decididos no segredo dos iluminados – por um sinal muitas vezes de uma auto-legitimação pelo menos questionável -, sem obedecerem a um princípio de permanente prestação de contas para com os cidadãos, que são ou deveriam ser, afinal de contas, os verdadeiros “donos da obra”.
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[Transcrição parcial do discurso de Rui Vieira Nery na conferência “Língua Portuguesa, Sociedade Civil e CPLP”, 18 de Outubro de 2013. Excerto copiado do “site” http://observatorio-lp.sapo.pt]