«O Tempo e as palavras» [M.A.V.F, revista “Tempo Livre”]

Ainda da (des)necessidade de um (des)acordo ortográfico – 3

Noite alta. Cobrindo totalmente o tampo da secretária, recortes de jornais de um tempo em que o projecto do Novo Acordo Ortográfico começava a revelar as suas debilidades e a ser contestado nos corredores universitários e folhas A4 recobertas de notas vão-se agrupando em montinhos, num trémulo equilíbrio instável. Pela enésima vez, releio, artigo a artigo, o texto do “Acordo” do meu descontentamento, a sua “Nota Explicativa” e a Resolução do Conselho N. 8/2011. Leitura lenta, como impõe a abundância de incongruências, cotejando cada regra, cada afirmação, com as críticas e com os encómios, que também os há e cumpre julgá-los com equidade.

Segundo a Resolução do Conselho de Ministros, o AO “simplifica e sistematiza vários aspectos da ortografia e elimina algumas excepções ortográficas, garantindo uma maior harmonização ortográfica”. Não há dúvida de que os termos sistematizar e algumas são usados aqui de forma muito lata. Uma das críticas ao AO é, precisamente, a proliferação do termo “facultativamente” e da resultante duplagrafia, aceite em algumas palavras, como é o caso, por exemplo, dos tão discutidos termos “facto” e “pacto”, que, ao contrário do que injustamente se questiona, manterão para o usuário português da língua o C, já que, em PE este é articulado.

Quanto à polémica supressão das consoantes não articuladas, como C e P mudos, o A. da “Nota Explicativa” minimiza a sua importância, argumentando que “também se mantém na língua palavras com vogal pré-tóníca aberta, sem a presença de qualquer sinal diacrítico (vulgo acento!), como corar, padeiro….”. E as outras, em que a supressão dessas consoantes mudas altera a pronúncia?

Depois, sempre preocupado com poupar o esforço de memorização, coisa que se justifica porque vai ter de o desviar para todos os outros casos que constituem excepção às regras que defende, o A. tem esta explicação redentora: “É indiscutível que a supressão deste tipo de consoantes vem facilitar a aprendizagem da grafia das palavras em que elas ocorriam. De facto, como é que uma criança de 6-7 anos pode compreender que em palavras como concepção, excepção e recepção, a consoante não articulada é um P, ao passo que em vocábulos como correcção, direcção tal consoante é um C? Só à custa de um enorme esforço de memorização que poderá ser vantajosamente canalizado para outras áreas de aprendizagem da língua”, como, por exemplo, proporia eu, para a memorização das listas de excepções criadas com a sua sistematização”! E, já agora, não impeçamos o A. de completar a sua argumentação, que agora é de “natureza psicológica, embora nem por isso menos importante”:”.. .não haverá unificação ortográfica da língua portuguesa se tal disparidade não for resolvida”. E haverá unificação ortográfica, se não forem resolvidas disparidades como António/António, anafiláctico/anafilático, em que, na versão lusa, o C é, de facto dispensável, uma vez que o acento impede o fechamento da vogal?

Finalmente, a verdadeira razão (certamente uma questão de solidariedade para com os nossos amigos brasileiros): “tal disparidade ortográfica só se pode resolver suprimindo da escrita as consoantes não articuladas, por uma questão de coerência, já que a pronúncia as ignora, e não tentando impor a sua grafia àqueles que há muito as não escrevem, justamente por elas não se pronunciarem”. Não obstante, não devia ignorá-las, porque elas desempenham uma função na palavra: a abertura da vogal que se lhe segue!

Manhã alta. A primeira mensagem no correio electrónico. Da filha de uma amiga:
“De aorcdo com uma peqsiusa de uma uinvesriddae ignlsea, não ipomtra a odrem das Iteras de uma piravaa: a úncia csioa iprotmatne é que a piremria e útmiia Iteras etejasm no Igaur crteo.”

Acha que quem lê isto e as cartas do meu namorado, que dá erros, precisa do Acordo para ler um livro brasileiro?”

Leio sem problema.

É Primavera e o riso é azul, da cor do mar. •

[in revista “Tempo Livre” (do INATEL) nº 236, Abril de 2012. Link indisponível.]

[Nota: os conteúdos publicados na imprensa ou divulgados mediaticamente que de alguma forma digam respeito ao “acordo ortográfico” são, por regra e por inerência, transcritos no site da ILC já que a ela dizem respeito (quando dizem ou se dizem) e são por definição de interesse público (quando são ou se são).]

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