«A tentadora luz da letra viajante» [Nuno Pacheco, revista “2”, 17.03.13]

PublicaNP170313

[Nota: na transcrição que se segue, para facilitar a consulta sem prejudicar a leitura, todos os “links” abrem em nova “janela”.]

Quando lhe perguntavam se era a favor ou contra o Acordo Ortográfico (AO), ele, para ser franco, respondia sempre que lhe parecia um desperdício, um embuste, uma fraude, que a ortografia já evoluíra de diferentes formas e que o importante era entendê-las a todas e pronto. Em geral ficava-se por aí. Até que um dia, como sucede aos incréus perante as bem-sucedidas tentações de uma qualquer religião, indicaram-lhe um endereço e ele viu a luz. Sim, deixou-se literalmente encandear pela súbita revelação da novidade. Estava ali, aos seus olhos, tudo o que não vira quando se juntara aos protestos anti-AO, quando andara em colóquios, distribuíra panfletos, abaixo-assinados, cartas de protesto e indignação. Afinal era aquilo. Podiam-lhe ter dito que ele talvez ponderasse, reflectisse e agisse em conformidade. Chegou-se ao computador e digitou http://lusofonia.com.sapo.pt/. Viu muitas caras de escritores e achou natural: a língua escrita, património comum, etc. Mas do lado direito viu um botão intitulado “Colóquios da Lusofonia”. Seguiu por ali, como lhe tinha sugerido uma alma bem-pensante. E, no meio de imagens aos pulinhos, siglas, um arco-íris escondido por detrás de uma árvore, eis que se lhe desvendou um mundo novo aberto à língua portuguesa: o da recreação. Lá estava (e lá está, ainda, para quem queira consultar) a lista das viagens, as condições hoteleiras, a ementa, as reservas de quartos, tudo. E, claro, o programa do mais recente colóquio, o sarau musical, tudo como deve ser.

Parecia, e parece, uma coisa feita por principiantes no manejo de computadores, mas deve desculpar-se tal insignificância diante do alcance da coisa. Que, aliás, está contada a preceito num documento intitulado “Historial dos Colóquios da Lusofonia”. É só clicar noutro botãozinho, do lado esquerdo do ecrã (AICL historial), e surge um PDF de 13 páginas assaz elucidativo. Escrito na primeira pessoa, embora sem assinatura, explica ao recém-chegado que são “uma associação cultural e cientifica [assim mesmo, sem acento, mas não se pode exigir tudo] sem fins lucrativos”, “um exemplo da sociedade civil atuante em torno de um projeto de Lusofonia sem distinção de credos, nacionalidades ou identidades culturais”. Ora o “exemplo” faz colóquios. Que “juntam os congressistas no primeiro dia de trabalhos, compartilhando hotéis, refeições, comunicações, passeios e, no último dia, despedem-se como se de amigos/as se tratasse”.

Não está bem escrito, longe disso, mas não se pode exigir que quem pugna pela unidade da língua se preocupe ao mesmo tempo em escrevê-la bem. É uma sobrecarga terrível, nem calculam. Mas adiante. À nona linha já o autor está a citar Martin Luther King para explicar que em dez anos já fizeram 18 colóquios. Não se percebe a analogia com o sonho de King e menos ainda que a citação seja errada: “I had a dream” em lugar do muito conhecido e difundido “I have a dream…”. É só um pormenor, que para o efeito (o das viagens e alojamento) não importa absolutamente nada. O que importa, na verdade, é que aos 18 colóquios já realizados o grupo quer juntar muitos mais e, “depois do Brasil, Macau e Galiza quer voltar ao Brasil, ir aos EUA e Canadá, Cabo Verde, Roménia e outros países”. E que países?, quis ele saber, lendo avidamente o documento. “Roménia, Polónia, Bulgária, Rússia, Eslovénia, Itália, França.” Tudo pela divulgação da “açorianidade literária”, pretexto mais imediato (hoje mesmo o grupo está de visita aos Açores, já agora) e, claro, pela “unificação da ortografia” consagrada no AO. O que se percebe, porque os turistas, perdão, os padroeiros da bendita causa, são precisamente os “pais” do AO, Malaca Casteleiro e Evanildo Bechara, com uma pequena mas robusta corte de acompanhantes.

Ah, pensou ele, relendo o documento, como é alegre a “expansão da língua”! Que rotas, que paisagens, que oportunidades de conhecer novos mundos! E tudo a sair do bolso dos inscritos, claro, não venham já caluniar… Mas com “apoios protocolados para cada evento” e tentando, “ao nível logístico”, “beneficiar do apoio de autarquias com visão para apoiar a realização destes eventos”.

E foi assim que ele, vendo finalmente a luz da letra viajante, resolveu aderir ao grupo dos excursionistas da língua. Parece que até em Bora Bora há gente interessada no AO, sabiam?

Nuno Pacheco

[Transcrição integral de artigo da autoria de Nuno Pacheco publicado na revista “2” (suplemento do jornal “Público”) de 17 de Março de 2013, página 40.]

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6 comentários

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  1. A Lusofonia tem unificada tem destas coisas: o senhor responsável acha que ou nós cá, ou eles lá não percebem o que a gente fala, mesmo unificando a ortografia. Vai daí, é preciso que se explique que em Portugal chama-se “e-mail” ao que os brasileiros, coitados dos brasileiros que não percebem, chamam de “correio eletrónico”. Os mesmos portugueses, mania que têm estes gajos de alterar o nome às coisas, chama telemóvel ao que os de lá chamam celular. Caso não percebamos o que cada um diz do seu lado do Atlântico. Muito obrigado senhor por esta explicação. O ónibus, já se sabia que é autocarro. O que eu não sabia é que num lado se anda de carrinha, do outro se anda van. (seguir a ligação “Tudo sobre a Maia”).
    E caso não haja confusões, se uns o chamam duplo, outros o chamam de twin. E enquanto uns tomam o pequeno-almoçom, outros estão no seu “café da manhã”.
    E viva a ortografia unificada, a fonia lusófona, e vivam os australianos nascidos em Portugal.

  2. E quando eu penso que Nuno Pacheco deveria ligar a que coisas que interessam, e não se preocupar com fantasias, na realidade até acho bem que se desmanche este ramo para que se perceba melhor como cheiram estas flores.
    Acrescento ainda que, entre muitas ouras arrogâncias de quem está por detrás destes encontros, a citação no final da página foi deturpada, pois nunca na vida o autor citado irá ou iria escrever Direcção sem o duplo C.

  3. Estou a referir-me aos Colóquios da Lusofonia.

    • Jorge Teixeira on 18 Março, 2013 at 11:55
    • Responder

    A lusofonia é um delírio ao abrigo da qual aparecem as mesmas pessoas que defendiam o portugal “do Minho a Timor”. Por mim podem ir todos para o c.

  4. Pois eu vou continuar a escrever em português, de acordo com a SPA (Soc. Port. de Autores), fonética, concordância verbal, acentuação, e gramaticalmente em português.
    Sem vírgulas ficaria: “Vítor Gaspar é burro não tem albarda”, pois assim sem virgulas está certo. Não vou escrever: “No tempo da prestoria, quando os homens eram barbaros, iam caçar passaros,a tiros de revolver”, pois assim, não, ninguém entenderá o que escrevo !
    Nem tampouco irei escrever: “Atualidade em direto – Grande espetáculo taurino, em que o touro, foi espetando os córnos, no toureiro” (não a minha, pois eu escrevo: Actualidade em Directo – Grande espectáculo taurino, em que o touro espetou os córnos no Toureiro).
    Continuarei a escrever os mêses de Janeiro a Dezembro, com maiúscula. Irei escrever sempre: “Se é para parar, eu páro”, não vou escrever “Se é para parar eu paro”.
    Vou continuar a escrever “virgem Maria e gente”, jamais vou escrever “vixe Mária e xente”, como se fala no Sertão brasileiro. Tenho o Alentejano, que é bem português e diz coisas singulares: às ceáras chamam pão e chamam de gajo a qualquer um.
    Se for para agregar as falas do Brasil ao Dicionário de Português, estou de acordo em escrever “pula, tuga e maguérra”, para designar estrangeiros.
    Cada país tem seus termos e isso faz parte da língua portuguêsa, assimilar as falas e costumes de outros povos, agora modificar a escrita sem ter correspondência na fonética, para mim, é como escrever falar Umbundo (Angola), e escrever em Concanim (Gôa-Índia). Assim, não.

    • Maria do Carmo Vieira on 18 Março, 2013 at 23:19
    • Responder

    Tudo muito de acordo com o Acordo!…

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