«Onde para o acento?» [Nuno Pacheco, PÚBLICO]

Artigo NP P2 23012012Onde para o acento?

Não estranhem o título. Se não lhe encontram sentido, saibam que, “agora”, é assim que se escreve. No tal “bom português” que por aí se vende como sabonetes. Um exemplo recente: na edição dos contos de juventude de John Cheever (Fall River e outros contos dispersos, Sextante, 2011), a mesma editora que dera à estampa os fulgurantes Contos Completos, em dois volumes e num português decente, cedeu à tentação da novilíngua. E o pobre Cheever é posto a “escrever” frases como esta (Pág. 134): “Oh, para com isso, Charles! — disse a Sra. Dexter, impaciente.” Para com isso… fazer o quê, alguém explica? Cheever não pode, que já morreu. O tradutor também não, porque “é a lei” e ele não tem culpa nenhuma. A editora dirá o mesmo. E, como a vida não “para”, temos que aturar isto.

Temos? Não é assim tão certo. A aplicação do acordo tem vindo a fazer-se, não por qualquer lógica ou aprendizagem mas por métodos mecânicos. Escreve-se um texto, enfia-se no Lince e já está. O Lince é uma espécie de Bimby para as letras, só que, em lugar de fazer bons cozinhados, produz péssimas mistelas. Há quem não se importe. O próprio José Saramago, em Junho de 2008, numa entrevista ao programa Diga Lá Excelência (do PÚBLICO, Rádio Renascença e RTP2), dizia: “Vou continuar a escrever como escrevo hoje. Não vou querer estar a ir constantemente ao dicionário ver se se escreve com ‘c’ ou não. Os revisores encarregam-se disso.” Mas aceitava o acordo como uma fatalidade: “Creio que temos de embarcar nesse comboio, mesmo que não gostemos muito. Não há outro remédio.” Haver havia, mas tanto insensato encolher de ombros ajudou a que não houvesse. Agora o negócio não “para”, como se vê.

Na sua regular crónica na revista “Atual” (sic) do Expresso, Pedro Mexia, um dos vários que ali (e bem) escrevem “de acordo com a antiga ortografia”, veio na edição de 14 de Janeiro defender-se desse epíteto, dizendo que admiti-lo será “como se a língua que a maioria dos portugueses ainda usa se tornasse por simples decreto ‘antiga’: antiquada, decrépita, morta.” E, a dado passo, também ele assinala “os imparáveis espalhanços de um ‘pára’ do verbo ‘para’ que perde o acento e talvez o assento.” Já alguém lembrou, ajuizadamente, que a aplicação da nova norma a certas frases daria disparate pela certa. Por exemplo, em lugar de “greve geral pára o país”, ficaria “greve geral para o país”. Totalmente diferente, não? E como ficaria o título de uma das mais recentes crónicas de Miguel Esteves Cardoso, “Alto e pára o baile”? “Alto e para o baile”? A primeira manda parar de dançar; a segunda apela a que se dance. Que idiota terá sancionado isto?

Talvez todos. Talvez nenhum. O certo é que já se admite que, sim, talvez haja correcções ao acordo, não se sabe quando, mas esta poderá até ser uma delas. E o que sucederá depois, não nos dizem? Venderão os acentos à parte, avulsos, em bolsinhas de plástico, para colarmos nos livros antes assassinados por tamanha displicência? Pedirão desculpa? Indemnizarão os leitores? Serão presos? Nada disso sucederá, porque a estupidez, e não só em Portugal, não é crime. É um modo de vida. E em geral lucrativo.

Jornalista

artigo de Nuno Pacheco no PÚBLICO de 23 de Janeiro de 2012 (caderno P2) link disponível para assinantes
Nota: conteúdo de interesse público — os conteúdos de interesse público sobre o AO90 são geralmente transcritos no site da ILC

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2 comentários

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    • José Luz on 23 Janeiro, 2012 at 20:45
    • Responder

    Gostaria apenas de relembrar que o novo texto adoptado sobre a decisão relativa à ratificação do tratado (constante do 2.º protocolo modificativo) ainda não foi ratificado por todas as partes. E assim, continua em vigor a anterior regra pré-vigente.

    Aos optarem pela regra da unanimidade das ratificações do tratado os Estados criaram uma regra que opera ad initio segundo a letra expressa do direito codificado na CViena de 1969.

    NO 2.º protocolo ficou escrito que a forma de aprovação deste tratado último era a… ratificação. Dito de outra forma: para revogar a regra anterior vigente só o poderiam fazer mediante um acordo simplificado em que a assinatura do texto do tratado (novo) vale também pela ratificação.

    Não há como fugir daqui.

  1. @ José Luz: era explicar isso de-va-ga-ri-nho aos dirigentes deste país, aos “diretores” de jornais e revistas, às estações de televisão que foram na onda desta parvoíce, etc.


    Ou clonar o Nuno Pacheco e pôr uma cópia em cada uma dessas “direções”…!

  1. […] a submissão ao Estado moderno na forma do acordês, acordai portugueses!», Samuel Paiva Pires; «Onde para o acento?», Nuno Pacheco; «O AO90 – à espera do fa(c)to consumado», Helena Barbas; «Porque estamos em […]

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