A Provedoria de Justiça também não dá resposta

Antes de mais, devemos aos subscritores da ILC-AO e a todos quantos seguem esta Iniciativa Legislativa um pedido de desculpa pelo longo interregno desde a nossa última publicação. Infelizmente, este foi o tempo de que necessitámos para concluirmos sem sombra de dúvida: tal como a Assembleia da República, a Provedoria de Justiça também não dá resposta.

Recordamos que esta Iniciativa Legislativa de Cidadãos, ao arrepio da Lei n.º 17/2003, foi barrada pela Assembleia da República de forma grosseira e ostensiva. O debate desta ILC, que devia ter ocorrido pela simples observância da referida Lei, foi-nos pura e simplesmente sonegado.

Naturalmente, não podemos aceitar que uma Iniciativa legislativa de Cidadãos possa ser tratada desta forma na própria Assembleia da República. Como tal, num gesto que hoje reconhecemos ter sido inútil, decidimos apresentar perante a Provedoria de Justiça, uma exposição, baseada numa questão essencial e três questões acessórias:

• QUESTÃO ESSENCIAL — Violação grosseira, por parte da Assembleia da República, dos prazos previstos da Lei n.º 17/2003 de 4 de Junho (Iniciativa Legislativa de Cidadãos). Nos termos dos artigos 9º e 10º da referida Lei, a Assembleia da República, passados trinta dias sobre a data de admissão da ILC-AO (oficialmente, 6 de Novembro de 2019), devia ter promovido o agendamento do debate e votação na generalidade desta Iniciativa Legislativa. Infelizmente, apesar dos nossos sucessivos alertas e protestos exigindo o cumprimento da Lei, a ILC-AO só chegaria à Conferência de Líderes quase um ano depois, no dia 16 de Setembro de 2020. Nesse dia, ao invés de se limitar a aplicar a Lei, a Conferência de Líderes optou por aceitar pareceres produzidos sobre a ILC-AO, ignorando a sua entrega completamente fora de prazo.

• QUESTÃO ACESSÓRIA 1 — Mesmo que tivessem sido entregues dentro do prazo, a Conferência de Líderes ignorou o carácter necessariamente controverso da conclusão a que chegaram os deputados-relatores sobre esta Iniciativa Legislativa, catalogando-a como inconstitucional, ao arrepio de outros pareceres em sentido contrário, desde logo dos próprios serviços da Assembleia (Divisão de Apoio ao Plenário, Divisão de Informação Legislativa e Parlamentar e Divisão de Apoio às Comissões).

• QUESTÃO ACESSÓRIA 2 — Alterações cirúrgicas à Lei n.º 17/2003 (Iniciativa Legislativa de Cidadãos). Em Agosto de 2020 — convenientemente a tempo de servir de respaldo à decisão que a Conferência de Líderes iria tomar no mês seguinte — entra em vigor uma alteração ao n.º 1 do Artigo 10.º da Lei n.º 17/2003 (Iniciativa Legislativa de Cidadãos), nos seguintes termos:
Onde se lia
Recebido o parecer da comissão ou esgotado o prazo referido no n.º 1 do artigo anterior, o Presidente da Assembleia da República promove o agendamento da iniciativa para uma das 10 reuniões plenárias seguintes, para efeito de apreciação e votação na generalidade.
Passa a ler-se
Recebido o parecer da comissão ou esgotado o prazo referido no n.º 1 do artigo anterior, o Presidente da Assembleia da República promove o agendamento da iniciativa para uma das 10 reuniões plenárias seguintes, para efeito de apreciação e votação na generalidade, salvo se o parecer da comissão tiver concluído pela não reunião dos pressupostos para o respectivo agendamento.
Em nosso entender, esta alteração confere às comissões um poder que estas não podem nem devem deter — o de se substituírem ao Tribunal Constitucional sempre que os “pressupostos” em questão envolvam a Lei Fundamental.

• QUESTÃO ACESSÓRIA 3 — Ausência reiterada de resposta da Assembleia da República às comunicações da ILC-AO ao longo de todo o processo, com destaque para o pedido formal para que se agendasse o debate da ILC tendo em conta o esgotamento do prazo para o fazer e, mais tarde, à nossa proposta de convolação da ILC-AO em Projecto de Resolução (contornando desta forma qualquer resquício de inconstitucionalidade que, aos olhos dos relatores, pudesse subsistir).

Naturalmente, aquilo que aqui se resume em quatro parágrafos, assumiu, perante a Provedoria de Justiça, a forma de uma exposição detalhada, com 16 páginas e 26 anexos, submetida no dia 25 de Setembro de 2021, à qual se seguiu um pedido de audiência com S. Excia. a Senhora Provedora de Justiça.

Em resposta a tudo isto, volvidos mais de dois meses, no dia 13 de Dezembro de 2021, enviou-nos a Provedora-Adjunta, Doutora Teresa Anjinho, uma carta de duas páginas, nos seguintes termos:

• Atendendo ao “recorte de competências” da Provedoria de Justiça, é-lhe vedada qualquer intervenção sobre o funcionamento dos órgãos de soberania. Ficam assim sem resposta a questão central da nossa exposição, bem como as questões acessórias 1 e 3.
• No que respeita à alteração introduzida na Lei que rege as Iniciativas Legislativas de Cidadãos (questão acessória 2), a Provedoria de Justiça salienta que estas não são obstáculo à prevalência da “maioria parlamentar”. Dito de outro modo, apesar da nova redacção da Lei, o “chumbo” da ILC na Conferência de Líderes de 16 de Setembro de 2020 foi fruto de uma deliberação, naturalmente por maioria, e não de uma leitura da Lei.

Naturalmente, apressámo-nos a responder, dizendo que, como é evidente, conhecemos o “recorte de competências” da Provedoria de Justiça. Nos termos do Art.º 22º do Estatuto do Provedor de Justiça “ficam excluídos dos poderes de inspecção e fiscalização do Provedor de Justiça os órgãos de soberania”. No entanto, como também é evidente, na nossa exposição à Provedoria de Justiça solicitámos apenas uma simples recomendação, uma figura que é perfeitamente enquadrada nessas mesmas competências. Veja-se, por exemplo, as notícias vindas a público, em que a Provedora de Justiça “recomenda que o Parlamento legisle de modo a evitar novos estados de emergência devido a pandemias“. O próprio sítio da Provedoria de Justiça é pródigo em notícias sobre recomendações ou questionamentos a outros órgãos de soberania, entre outras intervenções.

Parece-nos por demais evidente que a Provedoria de Justiça optou por se manter à distância de um assunto que sabe ser polémico. Para que não restassem dúvidas, a resposta da Provedoria, numa formulação não muito elegante, acrescenta ainda que os esclarecimentos prestados respondem também ao pedido de audiência entretanto formulado, pelo que o considera sem efeito.

Damos de barato as explicações produzidas pela Provedoria no que diz respeito às alterações introduzidas na Lei n.º 17/2003 — embora seja evidente que essas alterações vão no sentido de facilitar a rejeição de Iniciativas Legislativas de Cidadãos e constituem mais um rude golpe na sempre mal-amada democracia participativa.

Quanto ao resto, lamentamos que a Provedoria de Justiça tenha fugido deste assunto como o diabo da cruz, não sendo sequer capaz de exarar a mais simples das recomendações — a que resultaria da nossa Questão Acessória 3 e que tem por fundamento um princípio elementar da democracia: os órgãos de soberania devem responder aos cidadãos quando estes os interpelam. E se há um órgão de soberania onde este princípio devia ser sagrado, esse órgão é a Assembleia da República.

“Recomendamos que sejam prestados à Comissão Representativa da ILC-AO os esclarecimentos por esta solicitados”, teria sido um gesto pouco comprometedor e obviamente sem qualquer vínculo para a Assembleia da República, mas significativo para esta Iniciativa Legislativa de Cidadãos.

Apesar de termos sido liminarmente “despachados”, não quisemos deixar de expressar este nosso descontentamento junto da Provedoria de Justiça. Na nossa resposta, formulámos igualmente esta questão: se a Provedoria de Justiça não pode emitir uma simples recomendação, qual a Instância — que não a própria Assembleia da República — a que podemos recorrer para contestar o incumprimento, por parte da Assembleia da República dos Artigos 9º e 10º da Lei n.º 17/2003 de 4 de Junho (incumprimento do prazo de 30 dias para o agendamento do debate e votação em Plenário de uma ILC)?

Talvez a Senhora Provedora-Adjunta tenha entendido esta nossa pergunta como uma provocação que não merece resposta. Ou talvez não tenha ainda tido tempo para se debruçar sobre o assunto. O certo é que, para todos os efeitos é inevitável a conclusão: tal como a Assembleia da República, a Provedoria de Justiça também não dá resposta.

É claro que esta conclusão implica outra: sem uma intervenção da Provedoria de Justiça, por mínima que seja, continuaremos a viver num universo kafkiano onde, à vista de todos, a Lei não é cumprida pela Assembleia da República — e ninguém, incluindo a própria Provedoria de Justiça, tem qualquer coisa a dizer sobre o assunto.

Note-se que não se trata de uma Lei qualquer. A Lei n.º 17/2003 rege as Iniciativas Legislativas de Cidadãos, um direito consagrado na Constituição da República Portuguesa. Parece-nos evidente que não se poupam esforços quando o objectivo é manter o debate sobre o Acordo Ortográfico longe do Plenário. Vale tudo, incluindo a mais completa degradação da figura das Iniciativas Legislativas de Cidadãos. Em Portugal, a Língua Portuguesa vive momentos dramáticos, em que Português Europeu luta pela sobrevivência. A democracia participativa parece ir pelo mesmo caminho.

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2 comentários

    • Maria José Abranches on 16 Junho, 2022 at 19:31
    • Responder

    «Parece-nos evidente que não se poupam esforços quando o objectivo é manter o debate sobre o Acordo Ortográfico longe do Plenário. Vale tudo, incluindo a mais completa degradação da figura das Iniciativas Legislativas de Cidadãos. Em Portugal, a Língua Portuguesa vive momentos dramáticos, em que Português Europeu luta pela sobrevivência. A democracia participativa parece ir pelo mesmo caminho.»

    Subscrevo estas afirmações. E a ausência de resposta da Provedoria de Justiça é também amplamente confrangedora: democracia, isto?!
    Fui reler a Constituição, visivelmente cada vez mais ignorada pelos principais responsáveis pela sua aplicação:
    «Art.º 48.º – Participação na vida pública
    1. Todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos públicos, directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos.
    2. Todos os cidadãos têm o direito de ser esclarecidos objectivamente sobre actos do Estado e demais entidades públicas e de ser informados pelo Governo e outras autoridades acerca da gestão dos assuntos públicos.

    Art.º 108.º – Titularidade e exercício do poder
    O poder político pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição.

    Art.º 109.º – Participação política dos cidadãos
    A participação directa e activa de homens e mulheres na vida política constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático (…)»

    Continuaremos a resistir! Foi pela resistência que abolimos a ditadura e a guerra colonial, conquistando a democracia. Mas esta constrói-se ou derruba-se todos os dias: cabe-nos a todos mantê-la viva, denunciando e combatendo todos os atropelos de que tantas vezes é vítima, como tem acontecido em toda esta questão da imposição do AO90 ao nosso país.

    A todos os que prezam e defendem a nossa língua, o Português de Portugal, deixo um vibrante apelo: não se calem, por favor! Para que alguém nos ouça, é indispensável que o nosso grito de revolta e indignação seja forte, audível e ‘visível’!

    • Maria Raposo on 9 Setembro, 2022 at 14:25
    • Responder

    Totalmente de acordo contra o acordo ortográfico, realmente há 50 ou mais anos, algumas vogais começaram a ser omitidas, menos uma letra aqui menos outra letra acolá, mas foi-se aceitando.
    Agora quando os nossos filhos começavam dentro do nosso vocabulário a introduzir constantes estrangeirismos é inaceitável. Um horror a ser combatido, Com todo o devido respeito por outras etnias sejam de que País forem, o vocabulário calão de outros países, na nossa língua é Portuguesa faz-nos perder identidade. É inaceitável falar 2 linguagens ao mesmo tempo um calão estrangeiro e a nossa própria. A nossa linguagem agora fica ainda mais assassinada com estes acordos, como se não bastasse o HORROR dos estrangeirismos.

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