Audiência na Comissão de Cultura

No passado dia 19 de Novembro a ILC-AO foi ouvida pela Comissão de Cultura e Comunicação da Assembleia da República. Esta audição decorre da admissão desta Iniciativa Legislativa no Parlamento e é um dos passos a percorrer até ao agendamento para debate e votação do nosso Projecto de Lei em plenário.

Esta audiência obedeceu a um protocolo rígido. A ILC-AO dispôs de dez minutos para uma intervenção inicial, seguindo-se as intervenções dos deputados com assento na Comissão de Cultura.

Naturalmente, durante a nossa intervenção, reiterámos os objectivos do Projecto de Lei 1195/XIII/4ª, que resultou da ILC-AO. Começámos por recordar o erro que constituiu a aprovação do II Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico através da RAR 35/2008, que o nosso Projecto de Lei pretende revogar, e fundamentámos essa posição: não faz qualquer sentido que um Acordo Ortográfico que pretende unificar a Ortografia entre todos os países signatários possa entrar em vigor sendo ratificado apenas por três e valendo — estranha matemática! — esses três por oito.

Referimos, também, que o Acordo Ortográfico parte de um princípio errado, em que se tenta aproximar variantes ortográficas em vez de povos. Num Acordo, cada uma das partes deve poder contribuir com aquilo que verdadeiramente é seu. No AO90, pelo contrário, criou-se uma norma artificial, na qual ninguém se reconhece e que consiste, basicamente na “adoção” da forma brasileira de escrever. Ao invés de unir, o AO90 tornou-se um corpo estranho no seio da Comunidade de Países de Língua Portuguesa.

Daí que o objectivo desta Iniciativa Legislativa seja simplesmente o de criar uma oportunidade para que esse erro possa ser corrigido. A ILC-AO é uma oportunidade, também, para o Parlamento enviar ao País a mensagem de que o Acordo Ortográfico não faz sentido, pois a riqueza da nossa Língua está precisamente na sua diversidade. As variantes que existem são perfeitamente inter-intelegíveis.

Claro que, nesta audição, tão importante quanto a apresentação do nosso Projecto de Lei era conhecermos a posição dos partidos sobre esta matéria.

E o que ouvimos, na maior parte dos casos, não foi bom.

A primeira intervenção foi do Partido Socialista, pela voz do deputado Pedro Cegonho, que será também o deputado-relator do nosso Projecto de Lei. Em primeiro lugar, o deputado referiu ter dúvidas quanto à “forma” desta Iniciativa Legislativa, tendo em conta que está em causa um tratado internacional. Volta a agitar-se, mais uma vez, o fantasma da não-conformidade da ILC-AO, considerando que as relações exteriores não são matéria da competência da Assembleia da República. Por antecipação, já havíamos dito, na nossa intervenção inicial, que a revogação da RAR 35/2008 não revoga o Acordo Ortográfico, apenas anula o instrumento legal que possibilita a sua aplicação em Portugal.

Sobre o Acordo Ortográfico propriamente dito, Pedro Cegonho disse apenas uma coisa: “o PS tem a perspectiva de que um acordo une, e não separa”. Em teoria, não podemos deixar de concordar, pois esta é praticamente a entrada no dicionário para a palavra “acordo”. No entanto, temos de reconhecer que o Acordo Ortográfico não se encaixa na definição. O AO90 não é um “acordo”, no sentido em que uma das partes se limita a acatar as imposições da outra e as demais são olimpicamente ignoradas.

Entre os PALOP, por exemplo, o entendimento geral é o de que o Acordo Ortográfico é uma coisa “lá entre eles” (leia-se, entre Portugal e Brasil). Ainda hoje, metade dos países interessados no Acordo não o ratificou — não fora o II Protocolo Modificativo, com os tais três a valer por oito, e o AO90 já teria desaparecido há muito. De resto, a contagem de quem ratificou ou deixou de ratificar importa pouco. Até podiam já ter ratificado todos — a verdade é que nenhum destes países sente o AO como “coisa sua” e a sua efectiva implementação é vista com indiferença pela maior parte. Ao invés de aproximar, o Acordo Ortográfico tem sido visto, invariavelmente, como um assunto constrangedor. A nível interno, o cenário não é melhor, com o Acordo Ortográfico a dividir fortemente a sociedade portuguesa.

O deputado Paulo Oliveira, do Partido Social Democrata, preferiu salientar o relatório que saiu do último Grupo de Trabalho sobre o Acordo Ortográfico, comparando-o com a nossa proposta. O relatório propunha que se encetassem negociações com os restantes países signatários, ao passo que o nosso Projecto de Lei, ao suprimir a via legal para a aplicação do AO, funcionará, na prática, como uma suspensão. Segundo o deputado, será talvez mais fácil encontrar um consenso em torno da ideia de aproveitarmos o que o AO tem de bom e eliminarmos o que tem de pior. Preconizou, no fundo, uma revisão do actual Acordo, sem necessidade de o suspendermos. Infelizmente, o Acordo Ortográfico não é passível de ser remendado. Enquanto continuar a ser encarado como uma simples questão de ortografia, a polémica não irá desaparecer. Mais uma vez, o problema não se limita às imposições deste AO90. Estas são intoleráveis, sim, mas o constrangimento começa logo na forma como o AO foi cozinhado, à margem e à revelia de povos e de países, indiferente a críticas e pareceres, para nos ser servido depois como facto consumado.

A intervenção seguinte esteve a cargo de Beatriz Dias, do Bloco de Esquerda. Referiu a deputada que “a aproximação meramente gráfica, não interferindo sobre o léxico ou na sintaxe, é reconhecida como positiva no mundo global”. Vieram-nos à memória as palavras de Gabriela Canavilhas, segundo a qual “foi identificada a necessidade de um Acordo Ortográfico”. Foi identificada por quem? É reconhecida por quem? Esta formulação vaga, que atira a responsabilidade do Acordo Ortográfico para uma entidade misteriosa (superior?, divina?, ocultista?) nunca deixará de nos surpreender. Em resposta, teríamos oportunidade de dizer que “aproximação meramente gráfica” é coisa que não existe. Não é possível que um choque ortográfico como o introduzido pelo Acordo Ortográfico não tenha efeitos retroactivos noutros aspectos da Língua, a começar pela pronúncia. Todavia, a parte mais preocupante do discurso de Beatriz Dias situou-se na defesa de uma Comissão Técnica de Revisão do Acordo Ortográfico. Beatriz Dias parece querer ir além do próprio Governo, que responsabiliza por “considerar o AO90 um tabu que não pode ser mudado” e por não ter ainda tomado a iniciativa de “abrir canais diplomáticos” e de “contactar a comunidade científica e académica” para, em conjunto com os restantes Estados signatários, promover a revisão do Acordo. Se considerarmos que qualquer tentativa de revisão irá piorar ainda mais o caos que já hoje enfrentamos, esta perspectiva não deixa de ser assustadora. Tentando identificar o que correu mal nesta “transição gráfica” — talvez a falta de um Vocabulário Ortográfico Comum, previsto para Janeiro de 1993, talvez a inexistência de acordantes, uma das condições necessárias para que possa haver um acordo — Beatriz Dias acaba por não reconhecer que o que correu mal foi o AO90 como um todo.

A intervenção seguinte coube à representante do PCP. A deputada Ana Mesquita reiterou as críticas deste partido, já de longa data, à forma como todo este processo tem sido conduzido, sem nunca se ter em conta a opinião de quem mais lida com a Língua. Segundo disse, o Acordo Ortográfico é uma questão política que parte desse princípio errado, e em que se tem vindo a insistir, sem se atender às consequências nefastas que a realidade demonstra. O PCP assumiu no seu programa eleitoral que interviria nesta matéria e, existindo ILC-AO, esta será uma oportunidade para o fazer, seja acompanhando a nossa proposta, seja apresentando uma Iniciativa Legislativa própria.

Seguiu-se a intervenção da deputada do CDS-PP Ana Rita Bessa, que teve o mérito de reconhecer que a ideia de uma ortografia unificada foi um projecto falhado e que as consequências disso e a definição de eventuais remédios deve ser feita pela comunidade científica. Apesar de tudo, considerou que o Acordo está em vigor, envolve países amigos, e uma das formas de tratar este assunto é também pela via diplomática. Aquilo que o CDS-PP tem no seu programa é a recomendação para que o Governo use as vias diplomáticas para eventualmente melhorar o Acordo em vigor ao mesmo tempo que se desenvolvem estudos que possam indicar o melhor caminho — seja esse caminho de retrocesso, seja de continuidade.

A deputada do PAN interveio apenas para saudar os representantes da ILC e para dizer que no seio do partido ainda não foi definida uma posição formal sobre o Acordo Ortográfico, situação que aquele Partido irá resolver a breve trecho.

Após as declarações de cada um dos representantes partidários, a senhora Presidente da Comissão de Cultura devolveu novamente a palavra aos representantes da ILC-AO.

Em resposta à questão do deputado do PSD sobre o que poderia ser preservado deste Acordo numa revisão futura, referimos que, quando muito, se aproveita a ideia da união em torno da Língua Portuguesa — não uma união artificial, inútil e (já) impossível das duas variantes dessa Língua. Pelo contrário, o que é fundamental é acarinharmos as variações e as diferenças que existem. Se nos dissessem que havia um Acordo Ortográfico entre os países da CPLP em que cada país contribui com aquilo que é seu, isso faria certamente algum sentido. Alguém duvida que Angola e Moçambique não ratificariam de imediato um Acordo feito nesses moldes, desde que se mantivessem as variantes brasileira (no Brasil) e portuguesa (em Portugal e PALOP)? Uma das maiores objecções de Angola tem sido, precisamente, o facto de o AO90 não atender às especificidades da Língua Portuguesa naquele país. Em rigor, a posição de Portugal deveria ser idêntica, pois é certo que AO90 também não atende às especificidades do Português de Portugal.

Não quisemos terminar a nossa intervenção sem regressar à questão dos defeitos do Acordo Ortográfico de 1990. Há que reconhecer que é até difícil considerá-lo uma norma porque uma norma devia poder ser aplicada por qualquer pessoa e produzir sempre o mesmo resultado e não é isso que acontece. Sem os correctores ortográficos instalados  nos computadores a aplicação do Acordo Ortográfico seria praticamente impossível, mas com os “corretores” também não é nada fácil porque existem vários, contraditórios entre si e qualquer deles igualmente caótico. O Acordo Ortográfico não veio resolver nada, inclusivamente em termos de traduções porque, apesar desse “acordo”, continua a ser necessário produzir uma versão para o Brasil e outra para os restantes países.

Concluindo a audiência, referimos ainda alguns outros aspectos relevantes.

Por exemplo, há um pormenor que é significativo e diz bem da rejeição do AO90 na (e pela) sociedade portuguesa. À medida que os anos passam torna-se cada vez mais fácil recolher assinaturas. Basta montarmos uma banca para que as pessoas acorram em catadupa, agradecendo-nos e pedindo para continuarmos esta luta.

Também se tem dito que voltar atrás na aplicação do AO90 seria abrir a Caixa de Pandora, em particular para as crianças que já aprenderam segundo as novas regras. Há que dizer que a transição para o AO nunca se completou. Continua a haver escritores, órgãos de comunicação social e pessoas a título individual que não o utilizam, pelo que o contacto com a norma canónica sempre existiu e continua a existir. Mas verifica-se, isso sim, um aumento da dificuldade de aprendizagem de outras Línguas como o Inglês, em que os alunos passaram a escrever coisas como “projet” ou “ativities”, aplicando nas suas aulas de Inglês ou de Francês as “regras” absurdas do “acordo”, ou seja, abatendo a eito — mesmo em línguas estrangeiras — as consoantes ditas “mudas” que em Portugal foram “abatidas” consoante se escreve no Brasil.

Esse abate é indiscriminado e feroz, mas pretende-se apresentá-lo como natural e inevitável, ocultando assim a verdade. E a verdade é que a Caixa de Pandora já está aberta. Importa, agora, fechá-la.

gravação vídeo da audiência (ARTV)

Print Friendly, PDF & Email
Share

Link permanente para este artigo: https://ilcao.com/2019/12/02/audiencia-na-comissao-de-cultura/

1 comentário

    • Nuno Lourido on 3 Dezembro, 2019 at 12:32
    • Responder

    Obrigado pelo vosso empenho na remoção da bosta do Cloaca Garganeiro

Responder a Nuno Lourido Cancelar resposta

O seu endereço de email não será publicado.