Em defesa da ortografia III
João Esperança Barroca
“Não adianta fingir que sou do tempo em que se escreve receção para noa aproximarmos dos brasileiros que, curiosamente, vão continuar a escrever recepção.”
Ricardo Araújo Pereira
Um dos mantras frequentemente invocados pelos defensores do Acordo Ortográfico de 1990 é o da unificação da ortografia, argumentando que não fazia sentido que a Língua Portuguesa tivesse duas normas ortográficas: a do Português Europeu e a do Português do Brasil. Aliás, a expressão “acordo ortográfico” remete, certamente, para uma unidade ortográfica.
Serviu o AO 90 para unificar a ortografia de todos os povos que usam a Língua Portuguesa? Parece-nos que não, como adiante tentaremos demonstrar.
Recorrendo ao «Vocabulário de Mudança» disponível no Portal da Língua Portuguesa, como já o fez Maria Regina Rocha num artigo publicado no jornal Público, podemos obter alguns dados numéricos.
Antes do AO 90 existiam 2691 palavras que se escreviam de forma diferente e que se mantêm diferentes (por exemplo, ‘facto’ – ‘fato’), existiam 569 palavras diferentes que se tornam iguais (por exemplo, ‘abstracto’ e abstrato’, que hoje se grafam ‘abstrato’), e existiam 1235 palavras iguais que se tornaram diferentes. Isto é, o AO 90 unificou 569 palavras e diferenciou 1235 (mais do que o dobro).
Vejamos alguns exemplos, recorrendo apenas a palavras correntes, iniciadas pelas 3 primeiras letras do alfabeto:
Antes do AO 90 | Depois do AO 90 Português Europeu |
Depois do AO 90 Português do Brasil |
abjecção | abjeção | abjecção |
abjecto | abjeto | abjecto |
acepção | aceção | acepção |
adoptado | adotado | adoptado |
adoptar | adotar | adoptar |
adoptiva(o) | adoptiva(a) | adoptiva(o) |
afecção | afeção | afecção |
afectação | afetação | afectação |
afectada(o) | afetada(o) | afectada(o) |
afectar | afetar | afectar |
afectivamente | afetivamente | afectivamente |
afectividade | afetividade | afectividade |
afectivo | afetivo | afectivo |
afecto | afeto | afecto |
afectuosamente | afetuosamente | afectuosamente |
anti-infeccioso | anti-infecioso | anti-infeccioso |
anti-séptico | antissético | antisséptico |
anticoncepcional | anticoncecional | anticoncepcional |
anticonceptivo | anticoncetivo | anticonceptivo |
árctico | ártico | árctico |
arquitectónica | arquitetónica | arquitectónica |
aspecto | aspeto | aspecto |
assumpcionista | assuncionista | assumpcionista |
auto-infecção | autoinfeção | autoinfecção |
baptismal | batismal | baptismal |
baptismo | batismo | baptismo |
baptista | batista | baptista |
bissectriz | bissetriz | bissectriz |
cacto | cato | cacto |
carácter | carácter / caráter | caráter |
céptica(o) | cética(o) | céptica(o) |
cepticismo | ceticismo | cepticismo |
circunspecção | circunspeção | circunspecção |
co-dialecto | codialeto | codialecto |
colecta | coleta | colecta |
colectânea | coletânea | colectânea |
colectar | coletar | colectar |
colectável | coletável | colectável |
colectiva(o) | coletiva(o) | colectiva(o) |
colectivamente | coletivamente | colectivamente |
colectivismo | coletivismo | colectivismo |
colector | coletor | colector |
concepção | conceção | concepção |
concepcional | concecional | concepcional |
conceptismo | concetismo | conceptismo |
conceptual | concetual | conceptual |
confecção | confeção | confecção |
confeccionar | confecionar | confeccionar |
conjectura | conjetura | conjectura |
conjecturar | conjeturar | conjecturar |
contraceptivo | contracetivo | contraceptivo |
Se reparar com alguma atenção, verá que a ortografia do AO 90 é muito mais respeitadora da etimologia no Brasil do que em Portugal. Se reparar com mais atenção, verá que imensas consoantes ditas mudas se mantêm no Brasil e desaparecem em Portugal. Se reparar ainda com mais atenção, verá que o AO criou cerca de duzentas palavras que não existiam e que são exclusivas da norma europeia. Alguém falou em unificação?
Gosta deste caos ortográfico? Não? Então, consulte o sítio oficial da Iniciativa Legislativa de Cidadãos (https://ilcao.com) e subscreva-a.
João Esperança Barroca
(artigo publicado no jornal Cidade de Tomar de 14 de Setembro de 2018)
(ver artigo(s) anterior(es) do autor: I, II.)
3 comentários
Muitas palavras citadas aí no sistema, de acordo com o autor, não correspondem à variável brasileira, sendo sim, uma errata. Não sei se o autor foi tendencioso ou esqueceu de consultar um brasileiro nativo antes de escrever o argumento citado. Mas, vejamos: de acordo com a lista citada, independente da mudança do AO90, o brasileiro continua escrevendo o seguinte:
Antes do AO90 = após o AO90
Abjeção = abjeção (br nunca usou a palavra “abjecção”)
abjeto = abjeto
acepção = acepção
adotado = adotado
adotar = adotar
adotiva(o) = adotiva(o)
afecção = afecção
afetação = afetação
afetado(a) = afetado(a)
afectar= afectar
afetivamente = afetivamente
afetivo = afetivo
afeto = afeto
afetuosamente = afetuosamente
anti-infeccioso = anti-infeccioso
anti-séptico = antisséptico (sendo que muitos não aceitam a forma e escrevem “anti-séptico”
isso vale para todas as palavras que tenham “anti-” em sua escrita. Ou seja, forçaram a unir a frase e dobrar as letras caso fosse necessário.
Anti-conceptivo = anticonceptivo (seguindo a forma que era correta antes “anti-conceptivo”
Ártico = Ártico
arquitetônica = arquitetônica (lembramos a regra de que, para Portugal o acento agudo e mantido o “c”, de “arquitectónica” enquanto que para o Brasil o acento circunflexo)
aspecto = aspecto
assumpcionista = assumpcionista (neste caso, a grafia é relacionada a “assunção”, porém mantendo o modo “assumpcionista” porque brasileiro nunca usaria “assuncionista”)
auto-infecção = autoinfecção (o pt brasileiro supre o hífen, o que muitos discordam porque o “auto” segue a mesma premissa do “anti-”)
batismal = batismal
batismo = batismo
Baptista = Batista ou Baptista (nesse caso, a grafia obedece a nomenclatura do indivíduo, conforme sua certidão de nascimento; no Brasil, não se pode simplesmente mudar a grafia da pessoa enquanto ela for viva, embora muitos acreditem que depois de morta, seguiria a regra dos acordos, o que é ridículo por parte de estudiosos do idioma).
Bissetriz = bissetriz
cacto = cacto (neste caso a planta, para não diferenciar de ‘cato” do verbo “catar” = eu cato. )
caráter = caráter (o cuidado é grande porque “característica” mantém o “c”, pra não ficar “caraterística” – que é uma palavra inexistente no pt br)
caractere = caractere (nesse caso, referente à informática)
céptica(o) = cética, cético, céptica, céptico (mesmo havendo a supressão do “p”, os brasileiros sempre adotam as duas formas.
Circunspecção = circunspecção
co-dialeto = codialeto (outro erro gramatical devido a supressão do hífen).
Coleta = coleta
coletânea = coletânea
coletável = coletável
coletivo(a) = coletivo(a)
coletivamente = coletivamente
coletor = coletor
concepção = concepção (não foi adotado “conceção”)
coletivamente = coletivamente
coletivismo = coletivismo
conceptual = conceptual
confecção = confecção
confeccionar = confeccionar
conjectura = conjectura
contraceptivo = contraceptivo
Notamos que a ortografia brasileira nem sempre segue o padrão do AO90 e há palavras que permanecem em uso. Não dá pra cortar consoantes ditas “mudas” quando elas são pronunciáveis.
O que quero dizer é que nem sempre se pesquisa mais a fundo as diferenças entre as palavras usadas no Brasil, Portugal e outros países de língua portuguesa. Portanto, para ter mais precisão com as palavras, é preciso estudar mais a fundo o uso delas em cada país. Afinal, o brasileiro teve a infelicidade de simplesmente aceitar uma “imposição” do AO90 e pronto. Portugal e os outros países são contra, bem como muitos brasileiros (assim como eu), que preferem adotar o AO45. Ademais, cada país possui a sua variante e, ao invés de unificar, poderia confundir ainda mais devido o que já fora exposto. Angola e Moçambique preferiram ficar fora em senso comum porque são países que também adotam sua forma de escrita que pode diferir das demais. O senhor João Esperança Barroca, deveria, a meu ver, tomar mais cuidado ao publicar em seu veículo de comunicação, algo que em parte não é verídico. Essa é minha opinião como brasileiro nativo, que estuda o idioma e que também é contra essa aberração chamada AO90.
Bons dias, caro Eduardo Gomes.
Agradeço os seus comentários, que só vi ontem, a horas já tardias.
Gostaria de lhe esclarecer o seguinte: os exemplos que apresentei foram retirados do Portal da Língua Portuguesa (http://www.portaldalinguaportuguesa.org/), do ILTEC (Instituto de Linguística Teórica e Computacional), na convicção de que estavam correctos.
O objectivo do artigo era apenas mostrar que, antes do AO 90, havia palavras com uma única grafia que passaram a ter grafias diferentes em Portugal e no Brasil.
Se há significativas discrepâncias quando consultamos diferentes ferramentas, isso só prova que o AO 90 veio criar um enorme caos ortográfico.
Agradecido,
João Esperança Barroca