‘A ortografia também é gente’

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No passado domingo demos início à recolha de assinaturas por via electrónica. Foi um “parto” difícil, o que implicou um artigo próprio para dele dar notícia.

Agora “apenas” é preciso o empenho de muitos na divulgação do formulário e, de um modo geral, ainda mais empenho de muitos mais nesta luta contra o Acordo Ortográfico.

Antes de mais, é preciso dizer que esta luta já tem décadas — é mesmo anterior à ideia peregrina de um Acordo Ortográfico — e resume-se a uma simples questão: deve a ortografia de uma Língua mudar constantemente, ao sabor do que alguns entendem ser uma coisa a que chamam “pronúncia culta”?

“Todas as Línguas têm uma!”, diz-nos Maria Helena Rocha Pereira, sem dúvida a mais eminente defensora do AO90. Sim, mas… qual será a pronúncia culta deste “Português Universal” que nos querem impingir?

Num debate caseiro sobre o Acordo Ortográfico, um amigo meu sentenciou: “Fernão Lopes, Gil Vicente, Camões, Fernando Pessoa e Lobo Antunes, todos escreveram com ortografias diferentes e todos escreveram em Português”.

Percebe-se a ideia: a Língua evolui, as mudanças ortográficas são uma inevitabilidade, mais vale aceitarmos “a ordem natural das coisas” sem grande resistência. Acordo Ortográfico? É a vida.

Será mesmo assim?

É verdade que, durante séculos, a ortografia da Língua Portuguesa seguiu uma prática “costumeira” — a grafia das palavras era ditada, em larga medida, pela transmissão dessas palavras de geração em geração. Escusado será dizer, era um método sem rigor científico, capaz de gerar flutuações consideráveis, uma enorme instabilidade. Disso mesmo se queixava Garrett, no final do séc. XIX.

No entanto, no início do séc. XX, dá-se um acontecimento importante. Em 1911, Gonçalves Viana, Carolina Michaëlis e outros linguistas apresentam a sua reforma ortográfica, a pedido do Governo da época. A famosa “pharmácia” perde aqui o “ph” (e os acordistas actuais ganham a sua piadola favorita).

Hoje temos bem a noção de como essa reforma foi injustificada e não cumpriu os seus objectivos — o combate ao analfabetismo foi a razão invocada na altura. Sabemos bem a violência com que foi criticada, e bem, por Fernando Pessoa (todos recordam a célebre frase “a minha Pátria é a Língua Portuguesa”) e sabemos que foi aqui, em 1911, que a Ortografia da Língua Portuguesa perdeu boa parte do seu cunho estético. A ortografia também é imagem e hoje, se queremos desfrutar de uma modernidade gráfica — que até então também era nossa — somos muitas vezes obrigados a recorrer a estrangeirismos.

Mas, apesar de tudo, para o bem e para o mal, a reforma de 1911 correspondeu, pela primeira vez, à fixação de uma norma ortográfica para a Língua Portuguesa. Por definição, a estabilidade de uma norma é a sua principal virtude — ao contrário da tese defendida pelo meu amigo. A flutuação constante da norma ortográfica não é uma inevitabilidade e muito menos um benefício. A cada nova reforma, a única coisa que se consegue é a obsolescência da reforma anterior. A norma de 45, que hoje seguimos, pouco mais é do que a norma de 1911, com pequenos ajustes que, curiosamente, teriam permitido a “unificação ortográfica” que hoje é impossível — algo que o Brasil, no seu pleno direito, recusou. É uma norma perfeitamente funcional e nada justifica o seu apagamento.

Bem pode Malaca Casteleiro espernear — o seu lugar na História já está ocupado, há mais de cem anos.

Além disso, ao contrário do que nos diz no seu delírio, o “acordo” ortográfico não uniformiza, não normatiza, e não põe fim a uma guerra centenária. Pelo contrário, cria uma nova guerra, inútil, e cava mais fundo a degradação estética, técnica, histórica, semântica e identitária do Português Europeu. As duas normas (pt-PT e pt-BR) coexistiam em equilíbrio, um eco-sistema linguístico em que a tendência transgressora do Brasil e a esquadria portuguesa se complementavam. Nas palavras de Manoel de Barros era possível “estudar com força” a Língua Portuguesa — e, a seguir, “errá-la ao dente”. Com o Acordo Ortográfico, não há estudo que nos salve: a nossa única opção é errar, errar sempre, errar clamorosamente — porque o que estiver certo para uns estará errado para outros.

Na verdade, o Acordo Ortográfico sempre foi um desconchavo. Cavaco Silva terá constatado que a maior parte dos leitores de Português nas universidades estrangeiras eram brasileiros. A solução óbvia teria sido o fomento da presença portuguesa nessas universidades. Mas Cavaco preferiu chamar Santana Lopes e encomendar-lhe um Acordo Ortográfico. O AO90 começou assim — mal — e nunca irá endireitar-se.

Interessa pouco saber se o período de transição já acabou ou não, ou se é legal ou não a sua aplicação. O que é certo é que o AO tem vindo a ser imposto à força por tudo quanto é organismo estatal. Como experiência, já chega. Os defensores do Acordo criticaram o Presidente da República quando este, recentemente, colocou em causa o AO90. O facto é que Marcelo Rebelo de Sousa até nem é um anti-acordista convicto, mas mesmo ele não pode deixar de constatar esta evidência: o acordo sempre foi uma inutilidade, um disparate, uma burrice. A sua ratificação por parte de Angola e de Moçambique não chega para consertar uma coisa que não tem conserto. Mas, se Angola e Moçambique não o ratificam, então o que é isto? “Palhaçada” é a única palavra que me ocorre.

É tempo de encararmos a realidade: o AO90 só tem um único erro grave, que é o facto de existir.

Acabemos com ele. A ILC-AO sempre foi o caminho certo para levar este problema novamente ao Parlamento. Subscrevendo a ILC criamos a oportunidade perfeita para que o pesadelo dos Acordos Ortográficos — o de 90 e os que já se anunciam — desapareça de vez.

Agora, criado que está o processo de subscrição electrónica, esse caminho tornou-se ainda mais fácil. Já não é necessário imprimir, preencher, ir aos correios.

Mais do que nunca, o futuro da Língua Portuguesa está nas nossas mãos. Está nas mãos de todos nós defender aquilo que é de toda a gente porque também é gente.

Rui Valente


(composição gráfica de KD Frases (Brasil)

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2 comentários

  1. Francisco João DA SILVA. Em defesa da língua portuguesa, que é uma parte essencial do PATRIMÓNIO IMATERIAL de PORTUGAL, SEGUNDO A CONVENÇÃO DA UNESCO, o remetente desta mensagem que tem como objeCtivo uma subscrição eleCtrónica relativa a um REFERENDUM ulterior, NÃO adoPta o “Des-Acordo Ortográphico” de 1990, devido a ser : 1)- inconstitucional, 2)- linguisticamente inconsistente, 3)- estruturalmente incongruente, para além de, comprovadamente, ser causa de crescente iliteracia em publicações oficiais e privadas, na imprensa e na população em geral o que tem provocado um CAOS ORTOGRÁ PHICO GENERALIZADO em Portugal e um descalabro no estrangeiro e até motivo de troça desta TARA LUSO-BRASILEIRA de reformas ortográphicas a cada geração (mais ou menos 25 anos).

    1. Receio não perceber completamente as suas palavras (referendo a quê? ulterior a quê?) mas, em todo o caso, obrigado pelo seu comentário. Tomei a liberdade de apagar um segundo comentário seu, que reproduzia exactamente o primeiro, e que terá sido enviado por engano.

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