Nem que a vaca tussa…

vaca

Infelizmente, contra todas as expectativas, o formulário para a recolha online de subscrições da ILC-AO continua emperrado. É a tal “lei de Murphy”

Tanto a empresa que aloja este novo espaço virtual da ILC como o fornecedor da “máquina de fazer formulários” — uma aplicação de criação e  parametrização deste tipo de interfaces — não dão resposta a uma simples questão nem a desbloqueiam: pode um site alojado nos Estados Unidos incorporar um formulário que funciona num fuso horário diferente? A compatibilização da timezone em que funciona o formulário com as medidas de segurança que este formulário deve ter (e com a respectiva base-de-dados) está a revelar-se inesperadamente complicada.

Parece um problema de lana caprina mas, até agora, a única solução que sabemos ser 100% eficaz seria a da transferência do site inteiro para um servidor no nosso país — uma tarefa que, como se compreenderá, gostaríamos de poder evitar.

Como se isso não bastasse, adensam-se as dúvidas sobre esta recolha de assinaturas online, tal como foi anunciada pelo Parlamento.

Vamos por partes: no passado dia 20 de Julho a Assembleia da República decidiu aprovar a redução de 35 mil para 20 mil assinaturas necessárias para a entrega no Parlamento de Iniciativas Legislativas de Cidadãos bem como algumas medidas que ajudam a “reduzir as burocracias” deste processo, como a sua “entrega electrónica”.

“Reduzir o número de assinaturas” é uma formulação que não oferece dúvidas. Já o resto da frase levanta as maiores interrogações. Registámos com agrado as expressões “reduzir as burocracias” e “entrega electrónica”, mas tudo ficou em aberto quanto às regras que irão ser estabelecidas na prática.

Falou-se na criação de um portal. De início pensámos que seria um portal para a simples entrega de subscrições recolhidas por via electrónica noutros locais. Imaginámos uma página com um campo para fazermos upload das assinaturas, com instruções sobre os formatos de ficheiro aceites (FileMaker, Excel, etc.) e os limites para o tamanho de cada ficheiro.

A publicação no Diário da República da Lei Orgânica 1/2016, que enumera as alterações à Lei 17/2003 (que regula as ILC em geral), veio trazer alguma luz (mas também alguma escuridão) a este assunto. O portal a criar na página da AR não se limitará a receber as assinaturas dos subscritores das ILC — será ele mesmo, ao que parece, o espaço de realização das ILC.

A concretizar-se, não há dúvida de que este portal será verdadeiramente extraordinário, pois acreditamos que não haverá muitos parlamentos no mundo que disponham de semelhante  ferramenta, se é que existe algum…

A redacção plasmada no DR dá azo a imensas dúvidas: “é permitida a submissão da iniciativa legislativa através de plataforma electrónica disponibilizada pela Assembleia da República, que garanta a validação das assinaturas dos cidadãos a partir do certificado disponível no cartão de cidadão“.

Acontece que, para fazer uso do certificado disponível no cartão, o cidadão deverá ter acesso a um leitor de cartões que possa ler o seu Cartão de Cidadão e saber o “pin” do mesmo. Não cremos que, no país inteiro, haja mais de 500 pessoas que reúnam estas condições. Onde está  então a tal “redução de burocracias” de que se fala na Lei Orgânica?

Bem, mas afinal o que vem a ser isto? O que teremos aqui? Uma espécie de cidadania amestrada, será? Cidadania à rédea curta, isto é, reservada a uma ínfima minoria de carolas da informática e deixando de fora todos os “info-excluídos”? Se um cidadão não tiver Cartão de Cidadão mais dispositivo/terminal de leitura ou se não souber o “pin” e se não souber (ou se não quiser saber) funcionar com essas trapalhadas cibernéticas deixa portanto de ser considerado… um cidadão?

Absurdo.

A validação por “pin” faz sentido para transacções económicas, contratos, questões judiciais, assinaturas electrónicas de diligências diversas, bem como a modificação dos dados constantes no próprio cartão. Para um simples exercício de cidadania não tem qualquer cabimento partir-se de um pressuposto de fraude iminente e exigir-se um tal grau de “segurança”. A persistir, esta estranhíssima disposição seria o equivalente a exigir o reconhecimento presencial, num notário, da assinatura numa subscrição em papel. Com um tal rigor, que não se exige noutras formas de cidadania (como a petição), a percentagem de assinaturas inválidas será virtualmente zero — e não se percebe então por que razão permanece na Lei a possibilidade de “verificação administrativa, por amostragem, da autenticidade das assinaturas e da identificação dos subscritores da iniciativa legislativa”.

Não é demais recordar que a própria Lei refere o carácter “livre e gratuito” do Direito de Iniciativa, não podendo a recolha de assinaturas “ser dificultada ou impedida, por qualquer entidade pública ou privada”.

É claro que só a publicação da Lei, a criação do Portal e a elaboração da respectiva regulamentação permitirão definir, em rigor, se esta segunda alteração da Lei 17/2003 constitui verdadeiramente um avanço ou se, pelo contrário, será mais uma condicionante. Até lá, as dúvidas são muitas.

Infelizmente, “até lá”, pode significar um tempo de que não dispomos. Pela parte que nos toca, queremos ser claros: o formulário para subscrição online da ILC-AO será disponibilizado mal o consigamos ter pronto, isto é, assim que desbloqueemos os entraves técnicos mencionados no início deste texto.

Quem nunca subscreveu a ILC-AO poderá fazê-lo da forma tradicional, ou seja, em papel, ou poderá fazê-lo por formulário electrónico assim que for possível. Se esta forma de subscrição for posteriormente aceite, não será preciso fazer mais nada. Em caso de necessidade, utilizaremos o endereço de e-mail disponibilizado para fazermos chegar ao subscritor as instruções que terá de seguir para efectivar a sua subscrição; instruções essas que se espera impliquem apenas procedimentos simples, claros, humanamente exequíveis — e não a imensa trapalhada que a dita Lei Orgânica refere; aquilo é tudo muuuuuuuito complicado, em suma.

O nosso formulário electrónico servirá, por conseguinte, como teste e forma de demonstração, perante o legislador, daquilo que entendemos ser um exercício de cidadania livre de entraves.

E servirá também como resposta à confusão lançada por uma alteração que é anunciada sine die. De facto, não sabemos quando será publicada a regulamentação daquela Lei nem quando ficará pronto o dito portal. Não podemos ficar paralisados, à espera de um desfecho que  ninguém conhece. O anúncio das novas regras, a definir no futuro, não pode ter um efeito de congelamento das ILC em curso — e este formulário será, também, uma forma de lutar contra essa paralisia.

E é tudo por agora.  Assim que o formulário estiver pronto será disponibilizado de imediato. Nessa altura, que esperamos seja muito em breve, aqui daremos a devida conta.

(imagem da vaquinha: Agricultura e Mar aCtual)

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2 comentários

    • José Santos on 4 Setembro, 2016 at 23:32
    • Responder

    Há muita gente que tem de assinar digitalmente documentos com o seu cartão de cidadão: como muitos advogados, engenheiros, arquitectos, etc. Outros não terão de o fazer mas fazem porque querem, por lhes ser mais cómodo. Quem compra e vende regularmente carros ganha em fazê-lo online, com o cartão de cidadão. Quem quer renovar receitas de medicamentos crónicos e não quer ir ao centro de saúde só por causa de uma receita pode fazê-lo com o seu cartão de cidadão. Portanto esse número ‘500’ atirado ao ar sem qualquer suporte torna-se um alvo fácil de rebater…
    De resto, concordo com o teor da mensagem, caso essa obrigatoriedade se confirme irá obviamente limitar a aplicabilidade da medida…

    1. Não se pretendia quantificar esse número de forma rigorosa… por “500” entenda-se “meia dúzia” ou outra expressão que traduza “ínfima percentagem da população portuguesa”. Em todo o caso, obrigado pelo reparo.

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