O estado da mentira de Estado

«O Acordo Ortográfico visa dois objectivos: reforçar o papel da língua portuguesa como língua de comunicação internacional e garantir uma maior harmonização ortográfica entre os oito países que fazem parte da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).»
Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011

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O texto que se segue foi publicado na edição de hoje, 10 de Junho de 2015, no jornal “Público”. O mesmo texto foi publicado também hoje num “site” de petições electrónicas.

A sua reprodução aqui justifica-se, apesar de (estranhamente, pensarão alguns) nele não haver uma única referência expressa ao “acordo ortográfico”, porque está redigido em Português europeu (o que não é de estranhar, já que se refere à União Europeia), porque denuncia com estrondo o falhanço do dito AO90 quanto à “projecção internacional da Língua Portuguesa” e, finalmente, porque muitos dos seus signatários e co-autores são anti-acordistas de sempre, é gente com provas dadas na luta contra o Aleijão Ortocoiso, são pessoas com “curriculum” (também) nesta Causa que é de todos.

Mas, essencialmente, a relevância deste escrito em forma de apelo reside no seguinte: se, como o AO90 pretendia, “garantir uma maior harmonização ortográfica” é uma gigantesca falácia, o que todos os dias – aqui mesmo e alhures – se comprova, já “reforçar o papel da língua portuguesa como língua de comunicação internacional” é, como demonstra este extraordinário documento, uma patranha de todo o tamanho.

 

publicoApelo ao PR em defesa da língua portuguesa na União Europeia

10/06/2015 – 04:15

Não podemos transigir com a diminuição e desvalorização da nossa Língua.

 

Senhor Presidente da República, Excelência,

O regime da União Europeia, como já acontecia na CEE a que aderimos em 1985, é o de que todos os cidadãos europeus têm o direito de se dirigir às instituições da União numa das línguas dos Tratados, devendo obter uma resposta na mesma língua.

Este é o regime consagrado de rigorosa paridade linguística, em que se funda a própria construção europeia, traduzindo o seu espírito democrático, base cidadã e união na diversidade.

Após o Tratado de Lisboa, este regime está fixado no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), significativamente enquadrado na sua Parte II – Não Discriminação e Cidadania da União, onde consta expressamente enunciado, de forma repetida, no artigo 20º, n.º 2, alínea d) e no artigo 24º TFUE.

Na mesma linha, são diversas as normas dos Tratados que prescrevem e garantem a diversidade linguística da União, com base nas diferentes línguas nacionais dos Estados-membros, como é o caso do artigo 3º, n.º 3 do Tratado da União Europeia (TUE) e dos artigos 118º, 165º, n.º 1, 207º, n.º 4, alínea a) e 342º TFUE. Apenas por unanimidade, asseguram algumas destas normas dos Tratados, podem, em qualquer domínio que seja, ser eventualmente adoptados regimes linguísticos diversos.

Este direito é tão fundamental e tão estruturante da União Europeia que a própria Carta dos Direitos Fundamentais o veio inscrever no respectivo elenco, enunciando-o no artigo 41º, n.º 4 e proibindo, no artigo 21º, qualquer discriminação com base na língua.

A paridade linguística é, nestes termos, não só um elemento estruturante da União Europeia, mas um direito fundamental dos Estados-membros e uma garantia fundamental de todos os cidadãos europeus.

Porém, de que servem os direitos e garantias fundamentais se, em aplicações concretas relevantes, os Governos deles abdicam? De que servem os princípios e normas dos Tratados, se, por outras vias, outros mecanismos decisórios os menosprezam e ignoram?

É o que está a passar-se com o regime da chamada “patente europeia de efeito unitário”, onde pretende erigir-se como únicas línguas-padrão o alemão, o francês e o inglês, excluindo e discriminando contra todas as outras línguas da União Europeia, entre as quais a nossa Língua Portuguesa, tanto no respectivo regime administrativo, como no privativo e especial regime judiciário europeu. Trata-se de uma flagrante violação dos direitos e garantias inscritos nos Tratados, sendo particularmente chocante que o Governo e a Assembleia da República quer no princípio de 2011, quer de novo agora em 2015, não se lhe tenham oposto e lhe hajam dado luz verde.

Este facto é tanto mais chocante quanto é sabido que o Português não é apenas uma língua oficial da União Europeia como todas as outras, mas é também uma das principais línguas internacionais da Europa. É inaceitável que a nossa Língua, em crescente afirmação mundial, se veja, assim, na União Europeia de que somos membros, desqualificada e diminuída tanto no plano simbólico e representativo, como especificamente enquanto língua de comunicação científica, técnica e tecnológica, remetida para uma segunda ou terceira classe das línguas europeias.

Precisamos de representantes que, na Europa e em Portugal, defendam as garantias do nosso país e os direitos fundamentais dos portugueses, como é seu dever e nosso interesse colectivo.

Por isso, apelamos a Vossa Excelência, Senhor Presidente da República, para que não subscreva o denominado “Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes”, assinado em Bruxelas, em 19 de Fevereiro de 2013, e ponha termo a esta grave lesão para a nossa Língua Portuguesa e o seu estatuto internacional, bem como para direitos fundamentais dos cidadãos portugueses enquanto cidadãos europeus.

Precisamos, antes de mais, de um grande debate nacional sobre estas graves matérias. Não podemos transigir com a diminuição e desvalorização da nossa Língua.

 

Vanda ANASTÁCIO – Professora Associada do Departamento de Literaturas Românicas, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL)
Agostinho ARAÚJO – Doutor e Agregado em História da Arte, Professor Associado da Universidade do Porto (ap.). Membro do grupo “Memória, Património e Construção de Identidades” do CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória», unidade de I&D (FCT)
Margarida BRAGA NEVES -Professora Auxiliar, Coordenadora do Mestrado em Ensino de Português e Línguas Clássicas da Universidade de Lisboa
Maria João BRILHANTE – Professora Associada, Directora da Área de Literaturas, Artes e Culturas, FLUL
Helena BUESCU – Professora Catedrática, Directora do Programa em Português Língua Estrangeira, FLUL
Teresa CADETE – Professora Catedrática do Departamento de Estudos Germanísticos, FLUL
Teresa CID – Professora Associada, Directora do Centro de Estudos Anglísticos, FLUL
Catarina GASPAR – Professora Auxiliar do Programa em Português Língua Estrangeira, FLUL
Carlos GOUVEIA – Professor Associado, Director do Departamento de Estudos Anglísticos, FLUL
Ana LEAL DE FARIA – Professora Auxiliar com Agregação do Departamento de História, FLUL
Fernando MARTINS – Professor Auxiliar, na Área das Ciências da Linguagem, Fonética e Fonologia, Director do Departamento de Linguística Geral e Românica, FLUL
Gaspar MARTINS PEREIRA – Professor Catedrático de História, Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP)
Maria Cristina PIMENTEL – Professora Catedrática, Directora do Centro de Estudos Clássicos, FLUL
Helena QUEIRÓS – leitora na Universidade Paris Ouest, Nanterre, La Défense
Rita QUEIROZ DE BARROS – Professora Auxiliar do Departamento de Estudos Anglísticos,FLUL
Maria João REYNAUD – Professora Associada com Agregação (Literatura Portuguesa), FLUP
Maria Isabel ROCHETA – Professora Auxiliar, Investigadora do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa
Francisco TOPA – Professor Associado da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Literatura e Cultura Brasileiras, Crítica Textual, Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e Literaturas Orais e Marginais.
João VELOSO – Professor de Linguística, FLUP; Presidente da Associação Portuguesa de Linguística
Marina VIGÁRIO – Professora Associada do Departamento de Linguística Geral e Românica, Presidente do Conselho Pedagógico da FLUL

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7 comentários

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  1. Só vale a pena ter Direitos, como o consentimento livre e informado, se o direito tiver direito a ser exercido efectivamente. Que charada este humanismo!!

    • Maria José Abranches on 11 Junho, 2015 at 1:07
    • Responder

    Já assinei a petição e vou divulgá-la pelos meus contactos.

    Portugal não tem nem nunca teve uma política de língua: por qualquer motivo, que seria interessante explicar, o nosso país há um século que vive obcecado com acordos ortográficos com o Brasil, chegando-se a este último, totalmente estúpido e injustificável, que o poder político nos quer à viva força impor!

    Nem em Portugal nem na UE, de que somos parte, sabemos defender e respeitar a nossa língua! Isto para já não falar do verdadeiro abandono em que o país deixa as comunidades de portugueses espalhadas pelo mundo ou do fraco empenho em colaborar com os países da CPLP que têm como referência a norma europeia do português.

    1. Bem, como dizem os americanos, this is a free country. Eu cá não vou assinar essa petição electrónica porque acho que as petições (e em especial as electrónicas) não passam de mero embuste político, uma coisinha (virtual) a brincar às democracias. Aliás, não vou “assinar” esta como não assino “petição” alguma desde 2008; essa última foi a de Vasco Graça Moura et al e bem se viu o resultado de mais de 130.000 “assinaturas”: nenhum, nada, zero. As petições não são uma arma de resistência cívica. As “petições” são uma artimanha que os políticos utilizam para fingir que transferem para o povo um milionésimo do seu poder.

    • María Oliveira on 11 Junho, 2015 at 10:25
    • Responder

    Muito bem, JPG! É mesmo isso! Sem tirar nem pôr!

  2. Concordo com o apelo, mas convém lembrar uma coisa: o ilustre Professor que reside no Palácio de Belém é completamente insensível aos argumentos de quem se opõe ao Acordo Ortográfico. Não querendo dizer que é surdo, direi que, no mínimo, é tão duro de ouvido como o marco geodésico que encima a Fóia.
    Quanto à petição… fui dos que aderiram à que atingiu as 130 mil assinaturas… para nada! Não menosprezando o peso das petições, o melhor mesmo, na minha opinião, é conjugar isso com o grande e incontornável debate nacional sobre esta matéria. A ter lugar na comunicação social, nas escolas, nas associações culturais e recreativas do país, etc.
    Só assim – com a onda a crescer – os políticos deixarão de assobiar para o lado.

    1. Os políticos jamais deixarão de assobiar para o lado. Assobiar para o lado é a definição essencial daquilo que exclusivamente faz na vida um político. Se um político por mero acaso faz outra coisa qualquer além disso não tem grande futuro na política. Quando muito, poderá ir assobiar ou tocar ferrinhos num rancho folclórico.

    • María Oliveira on 11 Junho, 2015 at 22:46
    • Responder

    Hum… Ora, ferrinhos, rancho folclórico… Relvas…?

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