Manifesto Anti-Guilherme

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De facto, o texto de Guilherme D’Oliveira Martins publicado há dias na revista “Visão” é de tal forma revoltante, parece-me, é tão desonesto – para não dizer miserável -, intelectualmente falando, acho eu, que apenas como simples “opinião” me permito reproduzi-lo aqui… devidamente “guarnecido” com aquilo que eu penso do texto e do seu autor.

É também esta a única forma de que disponho, se bem que modesta, de ao menos deixar “lavrado” algures o meu protesto, veemente, enérgico e “ligeiramente” enraivecido, quanto a mais uma ridícula tentativa de reescrita da História.

Parafraseando o que escreveu Maria do Carmo Vieira sobre a acordização selvagem da obra do Padre António Vieira, não merecia Graça Moura este tratamento. Escrever sobre ele um texto encomiástico em acordês já seria suficientemente mau; mas citá-lo e, pior ainda, usando dele citações textuais “convertidas” para o português estropiado “segundo as regras” do AO90, bem, isso então é absolutamente intolerável, nojento, abjecto. Uma canalhice sem nome.

E assim como aqui deixo esta adjectivação, pela qual assumo evidentemente – e com imensa honra – toda a responsabilidade, aqui deixo também a transcrição do dito texto, da autoria de Guilherme D’Oliveira Martins, devidamente corrigido, transposto, “traduzido” para Português legítimo; e não apenas nas citações de Vasco Graça Moura que se atreveu a estropiar, mas na íntegra, todo o seu próprio arrazoado.

Se fizerem o favor de me permitir outra citação “ligeiramente” adaptada, a terminar, aqui fica também a referência (com a devida vénia ao autor, está bem de ver) a Almada Negreiros e ao seu intemporal, genial, maravilhoso ‘Manifesto Anti-Dantas’.

E FIQUE SABENDO O GUILHERME QUE SE TODOS FÔSSEM COMO EU, HAVERIA TAES MUNIÇÕES DE MANGUITOS QUE LEVARIAM DOIS SÉCULOS A GASTAR.

 

O lugar da cultura

Guilherme D’Oliveira Martins
13:00 Segunda feira, 1 de Junho de 2015

A cultura é uma realidade transversal, que não se dá bem com o isolamento e o sentimento de auto-suficiência. Daí não bastarem as boas intenções nem os ingénuos desígnios. Os investimentos nas pessoas, para serem reprodutivos e terem efeitos em mais desenvolvimento, têm de se articular com as prioridades na criação e sustentabilidade dos recursos disponíveis, a começar no factor humano.

Muitas vezes generosas declarações nestes domínios não têm quaisquer efeitos na melhoria das sociedades. Teremos, por isso, de perceber que a educação e a formação visam formar cidadãos (e não só profissionais), conscientes de que a aprendizagem é o verdadeiro factor de desenvolvimento. E se nos referimos à arte de aprender mais e melhor, temos de a ligar à capacidade de responder aos desafios que nos são lançados pela economia e pela sociedade.

Apenas poderemos contrariar o fatalismo do atraso se percebermos que uma sociedade culta tem de cuidar do que recebe das gerações passadas e de usar como modo de acção a abertura, o cosmopolitismo, a eficiência, a equidade e a justiça. Por isso, o lugar da cultura não se pode confundir com um ornamento ou um luxo, mas tem de estar implicado no contrato social, no projecto de desenvolvimento e na confiança.

Temos, por isso, de lembrar dez palavras-chave que nos permitam alcançar uma sociedade culta, como pressuposto do desenvolvimento. E tais palavras são: liberdade, responsabilidade, confiança, coesão, património, herança, memória, relevância, desenvolvimento e democracia. Na Póvoa de Varzim, nas “Correntes d’Escritas”, perguntámos: quem tem medo da cultura? E, falando do apoio às artes, recordámos os ensinamentos de lorde Keynes (lembrando os mecenas italianos do Renascimento), a defender a necessidade de criar meios duráveis, legítimos e independentes para evitar que a defesa do património e a criação artística ficassem dependentes de oscilações eleitorais ou de gosto ou de meras vicissitudes do mercado – devendo estar submetidas a regras de serviço público e de interesse geral…

A liberdade é o patamar inicial para a definição do lugar da cultura, como sinal da autonomia criadora e da necessidade do reconhecimento da importância da tradição e da inovação. E, num tempo como aquele que vivemos, pleno de perigos e ameaças, só a capacidade inovadora e a adequação entre recursos disponíveis e necessidades a satisfazer podem preservar a liberdade e a autonomia pessoal como expressão da dignidade humana. Liberdade igual e igualdade livre, reciprocidade entre direitos e deveres, são elementos cruciais para que cultura e cidadania se completem naturalmente, com igual consideração e respeito por todos.

A responsabilidade, enquanto capacidade para compreender os outros e para recusar a indiferença e para ter resposta relativamente a quem no-la solicita, surge como cuidado com o que é próprio e é comum. A atenção e o cuidado são factores que permitem distinguir a cidadania activa. A confiança é o elo agregador que articula o respeito pelo outro e a solidariedade, permitindo que a comunidade funcione, não fechada sobre si mesma, mas baseada no respeito pelas raízes herdadas e nos desafios lançados pelos desígnios futuros. A coesão é o corolário desse sentido comunitário, funcionando como factor de justiça distributiva e inter-geracional e de convergência social.

De facto, o lugar da cultura não pode ser preservado se esse sentido de justiça contrariar o encontro e o diálogo, em nome da fragmentação e de uma conflitualidade desregulada. E, se referimos as raízes, temos de lembrar o património como salvaguarda do que somos e do que queremos ser, numa acepção dinâmica de serviço (‘múnus’) do que recebemos dos nossos ancestrais (‘patres’), que envolve património material e imaterial e o valor acrescentado contemporâneo.

Já a herança corresponde à preservação das diferenças e complementaridades, entendendo que a fidelidade histórica obriga à abertura e à compreensão – devendo, por exemplo, o respeito pelo legado da língua e da cultura (língua de várias culturas, cultura de várias línguas) ser uma exigência de qualidade, de rigor e de criatividade.

A memória é a garantia de uma cultura viva, capaz de lembrar o que merece ser recordado e de recusar o ressentimento – contra a cegueira do imediato e o perigo da indiferença. E, chegados à relevância, temos a recusa da mediocridade e a procura da capacidade para nos compararmos e para cooperarmos na qualidade.

Temos, pois, de garantir que a cultura seja criadora de valor e, simultaneamente, capacidade de transformar a informação em conhecimento. Se recordarmos os melhores momentos da nossa história, verificamos que corresponderam a alianças que nos permitiram ser pioneiros e protagonistas. O desenvolvimento humano é, já o vimos, aprendizagem, mas também é inteligência crítica para aproveitar o melhor possível as novas circunstâncias e a própria incerteza.

Eis por que razão a democracia é uma marca decisiva, com todas as incertezas e imperfeições, a preservar numa sociedade culta. Estando sempre incompleta e sendo imperfeita por natureza, a democracia possui a virtualidade insuperável de se basear no pluralismo, nas diferenças e no respeito mútuo de todos. É a democracia, como pressuposto de uma cultura de paz e como realização de um Estado de direito e duma sociedade de direitos e deveres fundamentais, que permite colocar a cultura, a educação e a ciência como prioridades fundamentais da sociedade moderna.

Na recente iniciativa do CCB e do CNC do Dia Vasco Graça Moura, lembrou-se o cuidado extremo que o homenageado sempre teve com a noção de identidade nacional. Como dizia VGM: “Cada identidade sofrerá dois impulsos fundamentais e, em certa medida, contraditórios: o que faz reviver na expressão e na partilha da sua tradição cultural própria e dos seus valores adquiridos e o impulso que pode banalizá-la e descaracterizá-la, ou mesmo apagá-la de todo, nos contactos tão fortemente interactivos que lhe proporcionará” (Lusitana Praia, Asa, 2004, p. 21).

E, na linha de Eduardo Lourenço, afirmava ainda: “Ser português, hoje em dia, requer portanto uma sensatez de postura que encare a história sem complexos e que rejeite tanto as possíveis hipertrofias de identidade, como as atrofias dela” (p. 33). O lugar da cultura não é o da identidade, mas o da compreensão universalista das raízes e da vida, que, não esquecendo o que nos diferencia, procura um sábio equilíbrio entre a proximidade e uma visão humanista de conjunto.”

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2 comentários

    • Maria José Abranches on 9 Junho, 2015 at 1:34
    • Responder

    Ocorre-me citar, a propósito, Umberto Eco (“Numero Zero”) pois também tudo isto afinal “significa que nos estamos a habituar a perder o sentido da vergonha” («…significa che ci stiamo abituando a perdere il senso della vergogna.»).

  1. Ora aí está uma ideia interessante de Almada Negreiros, “ligeiramente” adaptada por JPG, que me inspirou a seguinte sugestão: PMN (Partido do Manguito Nacional). Contra o Acordo Ortográfico e contra todos os sem-vergonha (e aldrabões e corruptos) que há décadas governam este país. O símbolo seria esse que todos conhecemos e que Rafael Bordalo Pinheiro imortalizou.

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