‘A minha identidade’ [por Rui Valente]

orwellcontrolA minha identidade

João Malaca Casteleiro aproveitou uma aberta na sua tournée mundial “em prol” da Língua Portuguesa e marcou presença no programa “A Tarde é Sua”, na TVI.

Logo na intervenção de abertura, mostrou ao que vinha: “o Acordo Ortográfico põe fim a uma guerra que dura há mais de cem anos”.

É certo que a reforma ortográfica de 1911 era desnecessária. No entanto, passados tantos anos, a “guerra” de que fala Malaca Casteleiro é um delírio que já só existe na cabeça de alguns iluminados. Para a esmagadora maioria dos falantes de Português no mundo, as diferenças estão mais do que incorporadas e são objecto não de quezília mas de prazenteiro diálogo entre portugueses, brasileiros, angolanos e demais países da CPLP.

Assim, para acabar com uma guerra que não existia, Malaca Casteleiro não teve qualquer problema em começar outra — esta, sim, bem real. É uma autêntica guerra civil, que se trava no nosso país. As notícias da frente de batalha chegam-nos todos os dias através do índice cAOs, alojado nestas páginas, e não deixam dúvidas: o Português Europeu está a ser massacrado.

Como sempre dissémos, unificar a ortografia ao fim de tantos anos é missão impossível. Criaram-se milhares de palavras diferentes, em que o AO não toca, e que continuarão a ser efectivamente diferentes dentro e fora do Brasil: desporto/esporte, camião/caminhão, monitorização/monitoração, etc., etc., etc. O próprio AO acrescenta palavras a esta lista, ao grafar agora de forma diferente palavras que sempre se escreveram da mesma maneira.

O AO também não toca nos casos em que as palavras até existem nos dois lados do Atlântico, mas a primeira escolha é invariavelmente diferente para os brasileiros e para os restantes países da CPLP: trem/comboio, usuário/utilizador, aplicativo/aplicação, suco/sumo, tela/écran, etc., etc. A incidência destes casos será porventura ainda maior do que os de dupla grafia referidos anteriormente.

Considere-se-se ainda a lista de palavras cujo significado difere consoante o país: camisa, bicha, terno, banheiro, bilheteira, cadastro…

Deste modo, unificar a ortografia não é apenas missão impossível: é que não serve absolutamente para nada. Mesmo que se unifique 98% da ortografia, como diz Malaca, um texto escrito no Brasil será sempre 70%, 90%, 100% diferente de um texto com o mesmo conteúdo escrito noutro país — basta considerarmos também a sintaxe e as diferenças nas opções de vocabulário.

Isto é: um professor de Português não pode deixar de ter em conta a nacionalidade dos seus alunos; um tradutor continuará a ter de saber para que país se destina a sua tradução.

Ora, se a unificação é impossível, para quê tamanho transtorno? A menos que o objectivo final seja o sufoco absoluto do Português Europeu…

Quem defende o AO insiste na tese da promoção da Língua e no ensino do Português a nível internacional. Mas… se a ortografia continua a ter tamanhas diferenças, que Português iremos ensinar aos estrangeiros que quiserem aprender a nossa Língua? Ou aos largos milhares de cidadãos da CPLP que decidam um dia aprender a Língua Oficial do seu país?

Esta pergunta, naturalmente, encerra outra: o que tem feito Portugal pela promoção do Português além-fronteiras? Todas as notícias vão no mesmo sentido: desaparecimento de leitorados em Universidades estrangeiras, redução drástica do número de professores de Português em todo o mundo. O que faz Portugal pela Língua Portuguesa? Assina o Acordo Ortográfico.

Os defensores do AO, receando a “insignificância dos dez milhões” não encontraram outra forma de manter a sua ilusão de grandeza da Língua. Assumem, assim, o papel da formiga que corre ao lado do elefante e se vangloria da poeira que ambos levantam. Infelizmente, ninguém perguntou à formiga e ao elefante se queriam efectivamente caminhar lado a lado ou, pela parte que nos toca, se nos sentimos bem no papel da formiga.

A grande ironia é que, apesar das diferenças, a Língua é efectivamente a mesma em todo o mundo. Não é preciso um “acordo” para que todos possamos falar do Português como a quinta Língua mais falada do planeta. A única diferença é que, sem o “acordo”, todos estaremos a falar de uma Língua mais rica.

A reforma de 1911 foi mais um exemplo da vaidade em que o ser humano é pródigo e que nos leva muitas vezes a fazer tábua rasa do passado. Rasgue-se tudo, agora é que é, o que havia antes não presta. Já tivemos calendários revolucionários, novas bandeiras, novas unidades monetárias. Já vivemos num Estado Novo. Já se anunciou, até, um “homem novo”. Com a ortografia de 1911 passou-se o mesmo: a pretexto da luta pela alfabetização, procedeu-se a (mais um) corte forçado dos laços entre as pessoas e o seu passado — neste caso, a memória da nossa escrita. Conscientemente ou não, o corte com o passado monárquico e o advento de uma Nova Língua tornaram-se aliados naturais. A taxa de analfabetismo, escusado será dizer, pouco se alterou (69% em 1911, 60% em 1930).

Desde 1911, nunca mais parámos: 1911, 1943, 1945, 1973, 1975, 1986, 1990… entre propostas falhadas e implementadas, a ortografia está constante mutação e novas reformas se anunciam (logicamente, a introdução regular de novos termos no dicionário não constitui uma reforma). Graças a esta sanha reformadora, ingleses e franceses continuam a ler os seus clássicos como se tivessem sido escritos ontem, ao passo que nós continuamos a atirar escritores, às pazadas, para o caixote “Fernão Lopes” das curiosidades de antanho, acessíveis apenas a alguns.

É tempo de dizer: chega! Para o bem e para o mal, a reforma de 1911, com as alterações de 45, constituiu uma FIXAÇÃO da ortografia portuguesa. Mudá-la constantemente faz tanto sentido como mudar o padrão das peças Lego de dez em dez anos. Alguns linguistas dirão que é apenas uma convenção: tanto faz grafar assim como assado. É uma questão de hábito.

Rejeito liminarmente esta visão “utilitareira” da ortografia. Escusado será dizer, o argumento do hábito só se usa quando estamos perante um mal necessário. Não é o caso. O hábito é, pois, um argumento contra o Acordo.

Quanto à convenção, é certo que o AO45 é uma convenção. Mas também dizem os linguistas que a virtude de uma norma é a sua estabilidade e a separação clara entre norma e desvio — ainda que o desvio possa depois transformar-se em norma, se assim o entendermos.

Eu acredito na virtude da estabilidade da norma ortográfica. Mas, como não sou linguista, posso ir um pouco mais longe: acredito nas virtudes da estabilidade stricto sensu. As novidades são bem-vindas quando constituem efectivamente um progresso. De contrário, todos nós agradecemos um pouco de perenidade nas nossas vidas. Sim, a ortografia é uma convenção. Mas agora, passados tantos anos, é também a minha identidade. Os meus pais escreviam assim, esta foi a Língua que os meus filhos aprenderam. É a minha Língua.

Deixem-na em paz, porra!

Rui Valente

[Imagem (com citação de George Orwell) de “Prague Revue“.]

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4 comentários

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    • Maria do Carmo Vieira on 26 Março, 2015 at 18:31
    • Responder

    Exaustivo e brilhante. Para quem só se baseia no ouvir dizer, tem aqui um manancial de informação preciosa. Profundamente grata, Rui Valente!

    • Maria José Abranches on 26 Março, 2015 at 23:55
    • Responder

    «O que faz Portugal pela Língua Portuguesa? Assina o Acordo Ortográfico.»

    Muito bem, Rui Valente, é isso mesmo, a isso se reduz a política de língua nacional! Em Portugal, «o Português Europeu está a ser massacrado», no ensino, nos ‘media’, por toda a parte. No estrangeiro, abandonam-se os portugueses e seus descendentes, a quem se recusa o direito à nossa língua, reduz-se o número de professores e fecham-se os leitorados existentes, entregando assim ao Brasil a exclusividade na difusão da língua portuguesa.

    E porquê? Esta gente ainda não entendeu que não há acordo ortográfico que evite a necessária opção entre o nosso português e o do Brasil? E que é obrigação do Estado português defender e difundir a língua de Portugal?

    Dou a palavra a Paul Teyssier:
    «Há assim duas normas do português, formando cada uma delas um sistema autónomo e coerente. O estrangeiro que aprende a língua terá portanto de optar à partida quer pela norma portuguesa quer pela norma brasileira, e não sair dela. […] A norma de Portugal é bastante fácil de definir, pois ela goza de um vasto consenso e foi muitas vezes estudada. A do Brasil, pelo contrário, coloca um problema específico, pois está longe de ser universalmente reconhecida pelos próprios brasileiros.» (in “Manuel de Langue Portugaise – Portugal-Brésil”)

  1. Precioso texto de Rui Valente, que subscrevo na íntegra, pondo o dedo nas várias feridas deste (sétimo?) acordo ortográfico entre Portugal e Brasil. Sim, é tempo de dizer: chega! Chega de negociar o que é inegociável, chega de manipulações, de mutações, de amputações. Chega de brincar com a Língua que é de todos, CHEGA DE BRINCAR COM A NOSSA IDENTIDADE!

    • Rui Valente on 29 Março, 2015 at 4:32
    • Responder

    Maria do Carmo Vieira, Maria José Abranches e José: penitenciando-me pelo atraso com que o faço, aqui vos deixo um “muito obrigado”!.

    Não quero deixar de vos agradecer, em especial à Maria do Carmo e à Maria José, militantes anti-AO que muito admiro: ditas por vós, as vossas palavras adquirem para mim um significado especial.

    Aproveito para agradecer à Maria do Carmo o seu certeiro artigo no i. Lendo-o, percebemos ainda melhor a triste ironia contida nas declarações da Associação de Professores de Português, que se considera “chocada com a capacidade do ministério de fazer o que é considerado errado”.
    http://www.publico.pt/sociedade/noticia/professores-de-portugues-novo-programa-vai-promover-a-retencao-1690637
    É pena que este inusitado espírito crítico da APP não seja extensivo a TUDO o que o Ministério tem feito de errado — com destaque, precisamente, para a aplicação da TLEBS e do AO.

    A luta continua.

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