«Delírio reformista» [por José Augusto Carvalho (Brasil), 16.11.14]

000-a-coluna-do-Joauca-500No dia 18-04-95, o Senado aprovou a reforma ortográfica proposta por Antônio Houaiss, que entrou em vigor recentemente. Foram ao todo sete reformas: 1911, 1931, 1934, 1943, 1945, 1971 e 1995. Não seria hora de dar um basta?

Não seria hora de parar de encarar o português como língua de subdesenvolvido em que qualquer um se acha no direito de mexer nela?

DELÍRIO REFORMISTA, por José Augusto Carvalho (*) .

Mal  começou a adaptação às novas regras ortográficas e surge um movimento para outra reforma mais radical, semelhante à que propôs José Joaquim de Campos Leão, nome verdadeiro do dramaturgo gaúcho Qorpo Santo em 1868: supressão do u dos dígrafos; do  inicial; do x dífono , que seria substituído por qs, como em seqso (para “sexo”); utilização do grafema g sempre com o valor de guê (gera para “guerra”), etc.  As propostas de Qorpo Santo se encontram no livro As relações naturais e outras comédias, organizado por Guilhermino César e editado em Porto Alegre pela Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1969. Acrescente-se à falta de originalidade dos que defendem essas ideias o desprezo por questões essenciais que uma reforma gráfica enseja.

O italiano fez uma reforma mais radical que o alemão, o espanhol e, recentemente, o romeno, ao suprimir o h inicial e ao substituir o x por s (com o som de  alveolar sonora). Mas não existe correspondência biunívoca entre letra e som:  a letra c em italiano se lê como k (velar) antes de vogal central ou posterior (casa, cosa), e lê-se  como africada (tch) antes de vogal anterior (cibo, Césare); o h permanece em ho (“tenho”); o s soa como  alveolar surda (como o c de cebola)  ou como alveolar sonora (como o z de zebra), como em  stesso e cosa, respectivamente.

Dizer que a grafia é posterior à fala para justificar a adequação da grafia à pronúncia não é um argumento válido, porque é exatamente por ser posterior à fala que a ortografia deve ser lógica e racional e não intuitiva (como a fala) e deve merecer cuidados especiais para garantir a inteligibilidade de um texto escrito a falantes de dialetos diferentes da mesma língua. Quando os cronistas esportivos adaptaram a palavra inglesa “scratch” para o português escrevendo “escrete”, garantiram a pronúncia original apenas na área dialetal carioca,  em que a dental t soa como africada antes de vogal alta anterior ou de iode. No Sul, a pronúncia não seria “iscrétchi”, porque lá o t soa dental, como na palavra “ter”.

Uma reforma tem de levar em conta a paronímia (como arrear/arriar, assoar/assuar) ou a heterografia de homônimos (bolçada/bolsada; braçagem/brassagem; brocha/broxa; buxo/bucho; se igualássemos graficamente insipiente e incipiente, por exemplo, haveria ruído na comunicação, porque a primeira palavra sugere ofensa, enquanto a segunda pode sugerir elogio). Uma reforma ortográfica tem de levar em conta também a família de palavras  para facilitar a aprendizagem (eletricidade lembra elétrico, de que deriva, mas uma grafia  como “eletrisidade” eliminaria essa associação com a palavra primitiva); tem de levar em conta a “forma” da palavra, que ajuda na memorização e na compreensão: o knife do inglês (de pronúncia distante da grafia) lembra o canif do francês e o canivete do português; tem de levar em conta, ainda que não totalmente, a etimologia, que também ajuda na aprendizagem: é pela etimologia que um falante associa privilégio a privar ou privativo, o que evitaria a pronúncia “previlégio”, encontradiça até em pessoas de alguma cultura; tem de levar em conta  o debordamento, fenômeno pelo qual uma vogal pré-tônica pode ter o timbre alterado em variação livre (a sílaba inicial de menino pode soar mê, mé ou mi; a sílaba inicial de moringapode soar mó, mô ou mu; a sílaba inicial de boneca pode soar bó, bô ou bu). Por causa do debordamento, um falante pode dizer e escrever “coringa” por “curinga”,  “reboliço” por “rebuliço”, etc. Por isso é necessário que um reformador da ortografia tenha conhecimentos linguísticos específicos. As reformas do alemão, do espanhol, do italiano e do romeno deram certo e de uma só vez porque foram realizadas por linguistas e filólogos ou por doutores de notório saber.

Uma reforma não é coisa que se decida por uma pessoa só ou por um grupo de pessoas que têm fama mas não têm qualificação acadêmica adequada. Por causa disso é que o português acaba virando casa de mãe joana, tantas são as reformas que sofreu. A primeira reforma, a de 1911, baseou-se nas Bases para a unificação da ortografia, relatório redigido por Gonçalves Viana em nome da Comissão integrada por estudiosos, como Adolpho Coelho, Leite de Vasconcelos e Cândido de Figueiredo, entre outros.  As reformas posteriores a 1911, em Portugal, ou a 1931, no Brasil marcam o fim do período falsamente etimológico, mas tiveram preocupações detalhistas, como os acentos gráficos, e até bairristas, como a manutenção absurda do h interno de Bahia (Estado). Em 1924, a Academia das Ciências de Lisboa (ACL) e a Academia Brasileira de Letras (ABL) iniciaram entendimentos para um acordo que unificasse a ortografia. Esse acordo foi firmado em 1931. Em 1932, a ABL publicou o Vocabulário ortográfico e ortoépico da língua portuguesa. Em 1938, um desacordo alterou a ortografia, sobretudo quanto à acentuação gráfica.

Em 1943, novo acordo preocupou-se em renovar as intenções do  acordo de 1931. Nesse ano, a ABL publicou seu Pequeno vocabulário ortográfico da língua portuguesa, que diverge em alguns pontos do que fora publicado pela ACL em 1940. Em 1945, a ACL e a ABL assinam novo acordo que só Portugal respeitou, porque, apesar de o Decreto-Lei nº 8.286, de 05-12-45, o adotar oficialmente, os brasileiros não aceitaram as regras, mais próximas fonicamente dos portugueses, nem as letras  mudas como em acto ou espectáculo, usadas em Portugal.

No início de maio de 1967, quando do primeiro Simpósio Luso-Brasileiro sobre a Língua Portuguesa Contemporânea, realizado em Portugal, Herculano de Carvalho apresentou a Proposta para a unificação da ortografia portuguesa, reiterada pelo projeto nº 504/67 do deputado brasileiro Alceu de Carvalho. O relator desse projeto, deputado Eurípedes Cardoso de Menezes, pede que se constitua uma assessoria de estudiosos para dirigir e orientar os trabalhos. Antenor Nascentes, encarregado dessa tarefa, convidou Aires da Mata Machado Filho, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Cândido Jucá (filho), Celso Cunha, Rocha Lima, Nélson Rossi, Evanildo Bechara e Omar Guerres da Silveira, para integrarem os trabalhos que resultaram na reforma de 1971, que também se preocupou basicamente com os acentos, desta vez com os diferenciais, como em ele/êle, toda/tôda, etc. Em dezembro de 1971, foi promulgada a Lei nº 5765, de conformidade com o acordo assinado no dia 22 de abril desse ano entre a ABL e a ACL. A lei suprimia não só o trema nos hiatos átonos (como, por diérese, em saüdade), mas também os acentos diferenciais, mantendo-os em alguns poucos casos, como pôde/pode, pôr/por, pára/para, etc.

No dia 18-04-95, o Senado aprovou a reforma ortográfica proposta por Antônio Houaiss, que entrou em vigor recentemente. Foram ao todo sete reformas: 1911, 1931, 1934, 1943, 1945, 1971 e 1995. Não seria hora de dar um basta? Não seria hora de parar de encarar o português como língua de subdesenvolvido em que qualquer um se acha no direito de mexer nela?

Fazer uma reforma para facilitar a aprendizagem da escrita é acreditar que as dificuldades na alfabetização  serão suprimidas  privilegiando os mais curtos de inteligência, e não a racionalidade das regras gráficas. As dificuldades da grafia do francês ou do inglês não impediram que a França, os Estados Unidos e a Inglaterra produzissem grandes nomes na literatura. Como o sistema ortográfico deve ser supradialetal, ou se faz uma reforma definitiva, científica, responsável, como ocorreu com o espanhol, o alemão, o romeno e o italiano, ou se deixe como está. Mas o melhor é que venha a paz ortográfica.

 

(*) José Augusto Carvalho, Mestre em Linguística pela Unicamp e Doutor em Letras pela USP,  é autor da Gramática Superior da Língua Portuguesa, do Pequeno Manual de Pontuação em Português e de Problemas e Curiosidades da Língua Portuguesa, todos pela Editora Thesaurus, de Brasília.

[Transcrição integral de “post” da autoria de José Augusto Carvalho publicado no “blog” Contra o Vento (Brasil) em 16.11.14. “Links” e destaques nossos. Nesta transcrição foi (obviamente) respeitada a norma ortográfica (Pt-Br) do original.]

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2 comentários

    • Fernando Félix on 17 Novembro, 2014 at 17:51
    • Responder

    Completamente de acordo.
    Artigo muito bom, assim pensassem todos.
    Bem haja!

  1. Muito bom, mas porquê essa ideia de que a ortografia pré-1911 era “pseudo”-etimológica? Baseia-se no mesmo que aconteceu com o francês e o inglês a partir do Renascimento. Poderia ter, na mesma, algumas variações, porque na altura ninguém fazia vocabulários ortográficos com força de lei, mas anteriormente ao estabelecimento da norma de aproximação ao latim é que não existia critério algum: tínhamos “Gonsaluus”, “Gõçalos”, “Gonçallos”, “Gonçalos”, “Gõzaalos” e por aí! Não é decerto por terem existido algumas falsas latinizações (pasmem-se, “os umanos herram”!) como em “lagryma”, tal como hoje temos o inglês “island” e o francês “vingt”, que a língua era pseudo-etimológica. O dicionário do Caldas Aulete é tudo menos pseudo-etimológico. Essa lengalenga espalhada, quiçá por acordistas, da fobia ao “ph” da “pharmacia” e do “olhem que idiótico aquele tipo que chorou pelo y de abysmo” é quase tão ridícula quanto o AO90. Pseudo-etimológico é o que temos hoje, porque escrevemos “hoje”, “exame” e “chave”, mas “ontem”, “assintomático” e “Filipinas”!
    Vale a pena: http://correctororthographico.blogspot.pt/

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