“A língua posta a salvo”, por João Santos

JL_logoA língua posta a salvo* ou, meus amigos, «É assim:…»

Para Maria José Abranches, professora

Aquele antigo dirigente de uma formação política toda banhada em tradição e portugalidade contribuiu decisivamente, em meados dos anos 90, para banalizar o repelente «muitas das vezes». Julga que está a dizer «frequentemente», mas não está. Um outro, antigo ministro da Educação, embrulha-se invariavelmente num «ou seja» conclusivo ou clarificador, quando ainda não encetou o argumento e mesmo quando não há argumento. E um conhecido antecessor de Mário Nogueira na FENPROF é o estimável inventor do subtilíssimo «dizer que» no início da frase. Conquistou, conquistaram, milhões de adeptos.

Mas também há o jornalista que acha que uma intoxicação com monóxido de carbono pode causar ferimentos graves num adolescente em Montalegre ou a ‘pivot’ da estação por cabo que nos conta uma história em que entra a ‘price waterhouse có-óper’. Corrigirá no noticiário seguinte, mas, canta Godinho, «a marca ficou lá».

Na mesma semana de início de Agosto em que relembrei e recolhi estes escassos exemplos, entre tantos, o governador do Banco de Portugal dizia, entre ‘bail out’ para a esquerda e (antónimo ou complemento?) ‘bail in’ para a direita, que o Banco é o ‘owner’ da operação que culminou, no dia 3 do mesmo mês, com a criação do Novo Banco (uma homenagem sentida a Orwell e ao Ministério da Verdade). No extremo oposto, reler romances traduzidos do francês e do inglês, nos anos 50 e 60, traz-nos a surpresa de tentativas completamente frustradas de devolver, em português, aquilo que nunca viria a ter tradução: como o «jogo com esferas metálicas» pelos famigerados ‘flippers’ ou ‘pinball’ (lembram-se dos ‘The Who’? Do ‘Pinball Wizard’?), que encontro no ‘Pierrot meu amigo’, de Raymond Queneau. Mas esta era ainda uma tentativa de tradução, ditada pela muito razoável noção de que devemos, sempre, precisamente, tentar.

Expiação
Ora, em matéria de língua portuguesa, pouco nos esforçamos, pouco tentamos. Portamo-nos, invariavelmente, como aquela senhora iletrada que se esquiva com um «desculpe, mas hoje não trouxe os óculos». Todos sabemos que ela não sabe, mas não nos parece razoável expô-la, e à sua insuficiência. No entanto, se nos fornecerem um bom bode expiatório, a vida até parece que nos corre mais amena. O problema é que nem Ricardo Salgado é um bom candidato (ao que parece, se expiar, não serão as nossas culpas) nem a quimérica prova de acesso dos professores (PACC) ajuda seja quem for a sair de um impasse grave, colectivo e já antigo em que se encontra mergulhada a língua portuguesa.

Na realidade, por mais exemplos de bordões imbecis, de erros imbecis, de impropriedades imbecis que possamos invocar, o modo adequado de romper com esta exasperante indiferença à língua portuguesa não é nem a pedagogia da compaixão que exibimos perante a senhora que perdeu os óculos ou o menino enfrascado em erros, do lado do AO como do lado anti-AO, nem, como aconteceu em Agosto, o seu reverso – no reprovador lamento perante os erros dos professores.

O erro é tão intolerável no professor como em qualquer outro profissional. E só seria mais intolerável no professor numa sociedade que estimasse o rigor e em que uma maioria qualificada dos cidadãos mais prósperos e ‘com acesso’ exibisse um respeito visível pelos símbolos da cultura, pela ordem cívica e, já agora, pela língua comum.

Os erros do sindicalista
Ao contrário, numa esfera pública política sufocada por uma massa de sinais gráficos e sonoros geralmente ininteligíveis, em que os principais agentes políticos se entretêm e nos entretêm com parábolas a que falta nexo e cujo sentido e alcance podemos, legitimamente, suspeitar que nem eles vislumbram (veja-se, por todos, os desempenhos de Leal Coelho ou de Brilhante Dias), todo o trabalho de clarificação se torna, por definição, subversivo.

Atente-se no famoso argumento de Mário Nogueira. De uma assentada, destroçou duas boas razões. A razão dos que entendem (como o saudoso Vasco Graça Moura) que o AO é um grave atentado contra a língua. E a razão dos que entendem que aos professores se deve exigir – mesmo que a comunidade política e, sobretudo, os seus mais exaltados e conspícuos agentes, não mereçam, a este respeito, a menor consideração – mais, muito mais, do que hoje habitualmente vão sendo e fazendo, como utilizadores e transmissores da língua e na língua em que foram educados.

E não era, sequer, preciso que o IAVE viesse introduzir uma adenda à nota de 4 de Agosto, esclarecendo que só 10% dos erros se relacionam com o AO. O desconcerto do argumento do sindicalista era e é evidente. Mesmo descontadas várias e gravíssimas omissões do IAVE, uma vez aberta a porta relativa aos erros dados num segmento que pesa uma fracção insignificante da cotação total, precisamente o da produção de texto, numa prova que, como as que são propostas às crianças, é concebida como algo de que não emerge um texto.

Sim, o IAVE, responsável pela PACC, é o organismo do Ministério que mais esforçadamente contribui para dissuadir todos os agentes no sistema de escrever e, já agora, de ler. A verdadeira praga avaliativa é um misto de proliferação de exames com, e isso é menos frequentemente abordado, uma estratégia de ‘redução à cruzinha’, de que todos os manuais, todas as disciplinas, todas as didácticas hoje são tributários (uma unanimidade que daria, normalmente, muito que pensar, mas que, parece, não incomoda ninguém).

Mais: que o IAVE rasure, para efeitos do trabalho em cadeia de construção de itens de avaliação, as diferenças entre disciplinas, é uma coisa. Porém, que o mesmo IAVE esqueça, para efeitos de análise de resultados, como se não tivesse relevância nenhuma, a diferença entre grupos de docência a que os professores se habilitam, mesmo podendo argumentar que se trata de prova comum, isso já nem é má-fé; é, realmente, trabalhar para nos manter ignorantes dos factores que, hoje, podem afectar negativamente o desempenho linguístico de todos, e cada um – e cada um, insisto! – dos dez mil candidatos a professores de que nos ocupamos.

Ou será que, apesar da enorme trapalhada que é o exame de ingresso, não há conclusões a extrair da diversidade de percursos de formação e do mais que provável desigual efeito dos mesmos na capacitação linguística dos docentes? A verdade é que, de outro modo – e autorizados, precisamente, pela amálgama –, muitos professores, mesmo muitos, continuarão, a comportar-se como a senhora que perdeu os óculos. E a contar com a nossa compaixão envergonhada, como se lhes devêssemos uma ortopedia de urgência perante a sua satisfeita indiferença e negligência.

Em resumo, Mário Nogueira não tem razão principalmente porque, neste caso, não quis sair do discurso da vítima, do discurso do inocente. E isso é um erro enorme. Portou-se como aquele professor que, um dia, tendo de lidar comigo em condição outra que a de docente, introduziu o diálogo que encetávamos com este genial preâmbulo: «Eu sou professor, você é professor; logo, eu não tenho nada a aprender consigo, tal como você não tem nada a aprender comigo».

Quantas grafias para o português europeu?
Uma tal ideia, que é a de todos os que amam, acima de tudo, suprimir a diferença, a diversidade, a história e a memória, só para assegurar uma posição de poder, informa, infelizmente, essa miséria que é o AO. Isso que hoje nos dá, pelo menos, três grafias: a anterior ao AO, a dos autores do AO e seus campeões e a dos que tentam, desesperadamente, entender-se com um novelo de regras que põe os mais solícitos, geralmente também os menos capazes, a fazer como o Governo de Portugal: tal como este quis ir além da troika, assim aqueles já vão muito para além da consoante muda.

Fernando Pessoa disse, há muitos anos (‘A língua portuguesa’, Assírio e Alvim, 1997), que «estamos, creio, todos de acordo» sobre as vantagens da uniformização ortográfica e, com isso, sobre a necessidade de a impor nas «publicações do Estado», para logo se interrogar sobre o alcance desta última expressão. E admitia, para as escolas, que tal imposição se aplicasse nos «livros de estudo primário – isto é, os por onde se aprende a ler». Mas, logo a seguir, interrogava-se: «Que tem [,porém, o Estado] com os livros que servem, não para ensinar a ler, mas para ensinar coisas que neles se lêem?». Embora insuficiente, esta pergunta é claramente um bom começo.

* Título da primeira parte da autobiografia de Elias Canetti.

[Texto publicado no “Jornal de Letras”/Educação de 17.09.14, na coluna “Escrever nas Margens”,  assinada por  João Santos, professor de Filosofia. Recebido por email, com autorização de publicação. “Links” adicionados por nós. Imagem: “Sete Lágrimas“.]

“A marca ficou lá”

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1 comentário

    • Maria José Abranches on 5 Novembro, 2014 at 16:24
    • Responder

    Obrigada, João Santos, por este detalhado levantamento de alguns dos muitos sintomas reveladores da degradação que a língua portuguesa está a sofrer em Portugal, designadamente no sector da Educação.
    Vale a pena aproveitar este artigo que nos convida a reflectir sobre a relação dos portugueses com a sua própria língua, efectivamente caracterizada – o que vem de longe – por uma «exasperante indiferença». Aliás o AO90 só foi possível – não só na sua indigente concepção, mas também na maneira intempestiva e autoritária com que nos está a ser imposto – porque a nossa ‘elite? (?!) política e a nossa ‘intelligentsia’ sempre desprezaram a nossa língua, no que só revelam os limites da sua cultura. Recordemos:
    «A Academia das Ciências de Lisboa deve ser talvez, de todas a suas homólogas europeias fundadas no século XVIII, uma das poucas que, na sua já longa existência de 222 anos, não conseguiu publicar um dicionário completo do seu próprio idioma.» (José Vitorino de Pina Martins, Presidente da Academia das Ciências, 15/12/2000)

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