«Acordo Ortográfico | A Geografia das Curvas»

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Do quanto abomino o acordo ortográfico

Não estou isento de erros, mas escrevo desde há muitos anos. Escrevo desde que me lembro de ter sentimentos para expressar, primeiro em papel e à mão, e depois nos computadores. Escrevo muito para além daquilo que é público. Na verdade, a minha escrita conhecida é pouca, e pouco entusiasmante. A melhor, guardo-a para públicos muito seleccionados. A necessidade de escrever conteúdos técnicos, fruto do meu percurso académico, roubou-me à prosa. Mas ainda a pratico quando posso.

Respeito todas as línguas, porque cada cultura encontra nelas, na sua forma escrita ou oral, a maneira de transmitir sentimentos, emoções. O amor é transmitido pelos gestos, sim, mas também em muito pela linguagem. Em cada cultura, em cada língua, transmitimos aos nossos filhos, aos nossos amigos, às nossas metades, o quanto os amamos através das palavras que lhes dirigimos e das pequenas anotações escritas que lhes deixamos. Os bilhetinhos – porventura com um tímido “gosto de ti” – fazem parte das nossas memórias. Crescemos com eles.

A língua é conteúdo das nossas memórias. Não somos quem somos sem memória, e as memórias não são desprovidas de palavras. Mesmo que sejamos fotográficos na forma de empacotar coisas nos neurónios, dessas imagens saltitam palavras. Das minhas memórias pulam vogais e consoantes. Todas elas. Com igual importância. As mudas e as barulhentas. Amo-as a todas. É com elas que construo as minhas ideias.

Observo a forma como muitos aceitam, passivamente, aquilo que reputo como um forte ataque às minhas consoantes. Com uma agravante. A de não serem apenas as minhas consoantes, mas as de todos aqueles que as usam. Assusta-me essa passividade. De um momento para o outro, destruiram-se as ideias. Não amarão, as pessoas, a sua língua? Não terão consideração pelas suas memórias? Por aquilo que são? Não me detenho sequer nas muitas razões técnicas para considerar abjecto o acordo ortográfico, porquanto a linguística não é competência minha, mas entristece-me que sem o contestar se aceite reduzir a beleza das nossas palavras. Uma palavra não é apenas uma junção de letras. É um pouco de nós, porque dizemos algo com elas.

À medida que avança, por entre escritores e falantes amorfos, esta peste ortográfica, temo que se ataque também quem jura amor às suas consoantes. Ainda há países onde os cristãos não são livres, e escondem-se na penumbra para poder orar ao seu Deus. Houve momentos na história – e ainda há – em que culturas foram dizimadas e era preciso esconderem-se para sobreviver. Passando o exagero que a comparação encerra, será que num futuro próximo também aqueles que insistem em falar do Egipto, da Recepção, da Acta, das coisas Óptimas e das Acções, que insistem em Adoptar, que resistem no respeito pelos meses (Senhor Agosto, como tem passado?), terão, também eles, de se recolher em segredo para escrever bom português? Irei eu encontrar-me, um dia, refugiado com um punhado de amigos a desfrutar de boa escrita, com medo de que sejam encontrados em minha posse papeis escritos com a grafia que amo?

Tremo pelo português que será ensinado às nossas crianças. Tremo por nós, que rodeados de grafias tristes teremos de nos esforçar muito para que a corrente não nos leve, não nos confunda, não nos crie a dúvida sobre se aquele hífen está ali bem ou não. Tempos difíceis. Mais ainda. Se durante tantos e tantos anos ninguém se parece ter preocupado com o português tão incorrecto que se tem escrito, e por tanta gente em tantos lugares – até em alguns de relevância e notoriedade -, não deixa de parecer uma roupa de mau corte, que mal nos assenta, esta perseguição para tudo escrever ao abrigo de uma patetice, como se a patetice fosse tão reconhecidamente grande que a pressa para a impôr fosse muita, para que, como em tantas outras coisas que conhecemos, as asneiras se tornassem, aparentemente, irreversíveis. Triste isso, tanto quanto a única irreversibilidade que conheço é a morte. E mesmo essa, só do corpo.

É por um português correcto que me bato. É uma causa que me move. Feliz seria se também a vós movesse. E se algum dia alguma coisa por mim assinada tiver uma ortografia à qual não me associem, não me estranhem. Não fui eu. Foi alguém que me traiu, que me corrompeu o texto e, mais grave, nos traiu a língua. A língua não evolui por tratado ou acordo imposto. A língua evolui quando sentimos que precisamos de algo mais para dizer alguma coisa. Naturalmente, progressivamente.

João

[Transcrição da página Acordo Ortográfico do “site” A Geografia das Curvas.]

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4 comentários

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  1. Não compreendo como Portugal não abandona este Acordo Ortográfico. Argumentar que a grafia portuguesa e a grafia brasileira colocam obstáculo para o entendimento é algo fora da realidade. O problema é que o texto foi elaborado apelas por dois homens: Antônio Houaiss – da parte do Brasil – e João Malaca Casteleiro – da parte de Portugal – elaboraram essa monstruosidade.De lá até 2008 nenhum especialista fez qualquer revisão no texto, o qual foi aprovado sem que os especialistas soubessem como estava o texto. Todos acreditavam que uma equipe trabalhou seriamente na elaboração do texto oficial, o que de fato não ocorreu. A Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897, só contava com um especialistas entre os seus 40 membros: Antônio Houaiss. Atualmente, a ABL conta com um único especialista: Evanildo Bechara.

    Enquanto a Academia Brasileira de Filologia, fundada em 1944, conta com 40 membros, todos especialistas, foi deixada de lado na elaboração do texto oficial do Acordo Ortográfico. Em 1969, foi fundada a Associação Brasileira de Linguística, a qual conta com 4.000 membros. Também ela foi deixada de lado na elaboração do Acordo Ortográfico, bem como a Associação de Linguística Aplicada do Brasil, fundada em 1990 e com 3.000 membros foi deixada de lado nesta discussão.

    Para piorar, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras saiu com cerca de 30 erros, e ninguém consegue tirar dúvidas por ele, dada a incoerência. Acredito que em Portugal a situação seja ainda pior. Quando ainda em 2009, a Porto Editora lançou o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, este já se mostrava bem diferente do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (brasileiro). Piorou a situação quando a Assembleia da República resolveu que o Vocabulário Ortográfico do Português do Instituto de Linguística Teórica e Computacional deveria ser o vocabulário oficial. Já eram três vocabulários em desacordo entre si. Para fechar com chave de ouro a Academia das Ciências de Lisboa lançou o Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua Portuguesa.

    A Associação Portuguesa de Linguística não havia sido consultada para dar seu parecer técnico sobre o assunto. Por que não tomam uma atitude mais coerente? Portugal ainda pode decidir.

  2. Por favor, alguém me pode tirar, sumariamente, isto a limpo de uma vez por todas?

    “(…) mas lembre-se de que a proposição do Acordo foi convocada pela Academia das Ciências de Lisboa, e não pela Academia Brasileira de Letras. ”

    Quão verdade é isto? Não há quota parte brasileira? É mesmo tudo devido ao Malaquinha e companhia que se lembraram um dia e pronto? É que se for, mais triste tudo é.

    1. Caro @SH, as informações sobre essa (importantíssima) questão são tantas e tão contraditórias consoante as fontes são diversas. Por exemplo:

      «O professor Carlos André Pereira Nunes lembra que a iniciativa do acordo ortográfico é brasileira. “Começou com o professor Antonio Houaiss e continua com outros linguistas”, diz.» (http://www.cruzeirodosul.inf.br/materia/538782/mudancas-nas-regras-da-lingua-portuguesa-serao-reavaliadas)

      As opiniões dividem-se, por conseguinte, e muito provavelmente jamais viremos – neste como em qualquer outro caso de incidência exclusivamente política – a saber “a verdade, toda a verdade”.

  3. Uma coisa que deve ser levada em conta: o professor de português é o responsável pelo ensino da ortografia nas escolas, ao passo que os linguistas estão nas faculdades e universidades cobrando dos alunos algo que eles não conhecem. Uma ortografia confusa atrapalha no ensino de um aluno por mais atento que seja. Por que devemos adotar essa ortografia se, não menos de 7 vezes, tanto o Brasil quanto Portugal já rejeitaram? Cada um tem suas peculiaridades. Podemos perceber que mesmo aqueles que defendem o Acordo Ortográfico não têm domínio das regras. Assim, para que adotá-lo?

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