«Não estará o ‘Angolês’ já aí a chegar?» [semanário “Angolense” (Angola)]

Angola como Nação que já temos à mão precisa de uma nova identidade, distinta daquela desenhada pela potência colonial. Tal passará também, a meu ver, pela tangibilidade da comunicação. A função primeira da língua é comunicar ou passar a mensagem. Durante largos anos, os portugueses incutiram aos angolanos a ideia de que as línguas bantu eram sinónimo de desprestígio social. A nossa identidade milenar, que não se perdeu ao longo dos 500 anos de presença europeia, irá refundar-se numa nova forma de articulação oral que passa para a escrita e daí para uma nova norma.

Flag_of_Angola.svgOs desvios à norma (uso popular ou vulgar da língua) coabitarão com o uso normativo, sem que para tal surja uma nova língua ou essa desarticulação pode levar a nova forma de comunicar (por oralidade e escrita)? Os excessivos desvios, os empréstimos/ importações de outras línguas africanas (angolanas) e o génio criador/inventivo de novos vocábulos (neologismos) levarão ao surgimento do «Angolês»? Poderá ou não surgir em Angola, dentro de séculos, uma língua distinta do Português Europeu e da miríade de idiomas expressos no universo angolano?

Partindo de estudos sincrónicos e diacrónicos (evolução histórica) das línguas, atentos às tendências, autores como Carlos Figueiredo, Francisco Edmundo, G. Bender, Amélia Mingas, entre outros, apontam os desvios visíveis na utilização da Língua Portuguesa em Angola como propiciadores do surgimento de uma «nova» língua a que designam por «Angolês», «Português Angolano», etc..

Atendendo que as línguas têm sempre diferentes níveis de utilização (vulgar/popular, padrão/ norma e erudito/científico), evolução, transformação e gestação de novas identidades linguísticas, urge tecer algumas considerações a propósito da Língua de Camões falada em Angola.

O idioma Português não é mais do que a evolução de um conjunto de idiomas ibéricos que parte dos Celta, do Latim, do Castelhano, etc., que, em contacto com realidades linguísticas (morfológicas e fonológicas) africanas, americanas e asiáticas, delas tomou empréstimos e ganhou amplitude. O caminho trilhado pelas línguas ibéricas, até se chegar aos idiomas actuais, será, com o tempo, replicado nos países em que o Português chegou por via da colonização/imposição. Essa tendência pode ser observada em Cabo Verde, onde, do Português e das Línguas africanas da África Ocidental levou ao surgimento do crioulo, que já é língua nacional daquele país, coabitando com o Português, língua oficial. Por mais que defendamos a pureza da língua de Camões, teremos de nos vergar, um dia, à evidência e reconhecer facto semelhante em Angola.

O surgimento do «Angolês», ou outra designação que lhe for atribuída, será apenas uma questão de tempo, de maior criatividade dos falantes, uniformidade semântica dos vocábulos em todo o território e criação de um instrumento morfológico e sintáctico distinto das línguas que lhe dão origem (Português Europeu e línguas bantu e não bantu do território angolano).

Há hoje um novo paradigma linguístico que emerge nos nossos bairros, nas nossas sanzalas, nas aldeias, nas falas do povo que sente «ser mais importante comunicar do que as críticas dos gramáticos». Há uma nova língua que se vai distanciando cada vez mais da norma, que se expande através da música e da literatura, uma língua que é falada e que facilita a comunicação, que já é lida e muito cantada.

Vejamos o caso da expressão «Ontem levei uma torra de katrungugu e fiquei malayke». Será isso Português, uma gíria ou emergência de uma nova forma de comunicar, que se populariza cada vez mais?

Autores como Carlos Figueiredo (em «Projeto Libolo/Português de Angola») acentuam nos seus estudos que o «Angolense» ou Português de Angola é já um facto: «Ele já existe e só os conservadores, que continuam presos à norma europeia, é que não querem admitir isso». Figueiredo atesta ainda que «a confirmação científica do uso de desvios fixa definitivamente a mudança na língua (paradigma dominante), o que constatam já os estudos existentes em sociolinguística quantitativa ». Em Angola, sustenta, o desvio sistemático à norma padrão faz com que se passe de facto social a fenómeno (abrangente) ou seja de algo pontual para algo sistemático.

Angola como Nação que já temos à mão precisa de uma nova identidade, distinta daquela desenhada pela potência colonial. Tal passará também, a meu ver, pela tangibilidade da comunicação. A função primeira da língua é comunicar ou passar a mensagem. Durante largos anos, os portugueses incutiram aos angolanos a ideia de que as línguas bantu eram sinónimo de desprestígio social. A nossa identidade milenar, que não se perdeu ao longo dos 500 anos de presença europeia, irá refundar-se numa nova forma de articulação oral que passa para a escrita e daí para uma nova norma.

É a consciencialização do «homo angolensis» que se reflecte nos verdadeiros usos de fala de milhões de pessoas. O «Angolense » é e será tão-somente o «resgate da herança dos nossos antepassados africanos que foi maltratada, vilipendiada e subvertida durante séculos». Essa é a homenagem que todos nós lhes devemos.

Posto isso, as questões que coloco são:

1) Temos razões para continuarmos a alinhar com a norma internacional da Língua Portuguesa? Aqui a resposta é SIM.

2) Vamos a tempo de escolarizar todos os angolanos ao ponto de falarem o Português «camoniano »? A minha resposta é NÃO.

3)Teremos cada vez mais angolanos (escolarizados ou não) a falar a LP com laivos de africanismo? A resposta é SIM.

Em remate: vão coexistir os que tenderão para o «Português Europeu» e tantos outros (maioria) a marcarem a sua identidade milenar na língua oficial que falam, imposta pelo antigo colonizador, resultando num crioulo. A preocupação de alguns escritores angolanos de levarem, de forma explícita, essa identidade (antes representada apenas nas falas dos personagens) para o discurso escrito, marca já um ponto de ruptura ou anunciação de uma nova realidade tangível e inexpurgável. Há hoje a preocupação de os escritores não só escreverem as pronúncias (redacção difusa), mas atentos à grafia correcta, de acordo aos idiomas bantu e à semântica que encerra.

Que discurso deve levar hoje à escola/universidade um professor de Língua Portuguesa? Do meu ponto de vista, dizer que já temos uma nova língua (ainda não pautada/ normatizada) pode parecer um pouco arriscado. O melhor caminho é ir alertando (gradualismo) que há uma iminência que se vai clarificando com os estudos que se realizam neste domínio. Os estudantes de hoje serão os cientistas de amanhã. Quando tivermos estudos suficientes e um quórum que permita a apresentação do paradigma, ai sim sairemos (sairão) a público os anunciantes da nova língua que espero que caminhe em paralelo com aquela herdada da imposição colonial e que, felizmente, nos permite nesses dias, construir uma Nação num diverso mosaico cultural e etnolinguístico.

Quando os estudiosos definirem uma pauta sobre: como se deverá escrever as palavras (léxico próprio), quais as construções sintácticas, como se vocaliza e quais os significados (semântica), aí teremos uma nova língua, distinta daquelas que lhe deram origem. E isto não levará milénios para acontecer.

Nota: Essa reflexão contou com subsídios de vários amigos do facebook e podem ser lidos em www. mesumajikuka.blogspot.com

Comunicólogo e escritor. Texto originalmente publicado no jornal Semanário Angolense (Angola) a 5 de Julho de 2014

[Transcrição integral de artigo, da autoria de N. Talapaxi S., publicado no semanário “Angolense” (Angola) em 05.07.14. Reproduzido pelo jornal “Público” em 27.07.14, no âmbito da iniciativa «24 jornais escrevem sobre futuro do português» (ver “compilação” AQUI). Imagem (bandeira de Angola) de Wikipedia.]

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3 comentários

    • Jorge Pacheco de Oliveira on 1 Agosto, 2014 at 10:44
    • Responder

    “Ontem levei uma torra de katrungugu e fiquei malayke”.

    Este exemplo do autor do artigo apenas mostra que em Angola existem vocábulos que não existem em Portugal. Mais nada.

    De facto, o termo “torra”, embora pouco usado em Portugal, existe no nosso vocabulário, provavelmente com o mesmo sentido que tem nesta frase. Os termos “katrungugu” e “malayke” é que não existem, nem a letra K faz parte do nosso abecedário.

    Todavia, a frase constitui uma construção clara da língua portuguesa e não será pela presença de dois termos novos que se poderá dizer que estamos em presença de “angolês”.

    Diferente é a prática dos brasileiros que alteraram profundamente a sintaxe da língua, tornando algumas construções dificilmente reconhecíveis.

    A transformação das línguas, que alguns classificam como “evolução”, não tem nada a ver com um genuíno aperfeiçoamento da sintaxe e da ortografia, mas sim com algo bastante mais trivial : o analfabetismo.

    Foram os analfabetos que alteraram o latim e deram origem a várias línguas, cada povo à sua maneira. Foram os analfabetos do Brasil que alteraram o português. E se as autoridades angolanos deixarem, os seus analfabetos também darão origem a uma corruptela do português.

    Nos países anglo-saxónicos os analfabetos são em muito menor percentagem e as autoridades desses países têm orgulho no inglês que herdaram do colonizador e não se dedicam a corromper a língua.

    Nos países anglo-saxónicos os dirigentes fazem os possíveis por falar um inglês impoluto. No Brasil são os próprios governantes que falam mal o português. O antigo presidente Lula fala como um carroceiro, com perdão dos carroceiros. A actual presidente Dilma resolveu intitular-se “presidenta”, mostrando o seu nível de ignorância da língua.

    Em suma : se, no que respeita à língua, os brasileiros e os africanos têm alguma coisa de que se queixar do antigo colonizador é o facto de este não ter proporcionado às populações nativas o grau de literacia suficiente para não estragarem a língua que lhes foi deixada.

  1. JPO, parabéns pelo seu comentário! É um facto que os brasileiros não sabem falar nem escrever o Português usado pela restante CPLP. Inventam vocábulos, alteram a sintaxe da língua, dão erros de concordância verbal, etc. E gabam-se disso, afirmando que o seu Português é “colorido”… Pessoalmente não vejo nenhum colorido nessa incapacidade, mas enfim, cada povo é como é.
    Nós temos um presidente (acordista) que come de boca aberta, no Brasil “são os próprios governantes que falam mal o Português.”… Já é muito azar.

  2. É uma pena que não estaremos aqui (vivos) para assistir ao que virá daqui a 5 séculos, o mesmo tempo que os “tugas” ficaram em Angola.

    Quando vejo a escassa diferença entre Espanhol e Castelhano ou mesmo entre Português e Castelhano, atrevo-me sem esconder os dentes, em prognosticar uma nova língua, seja “Angolês” ou outro nome que os estudiosos do momento lhe atribuírem.
    Se a diferença entre línguas for apenas “do ponto de vista de construção” e não lexical e semântica, estaremos noutro mundo que não aquele que enxergo, pois estudos comparados entre a LP e outras línguas ibéricas e românicas não denotam alarmantes diferenças em termos de construções sintáticas.

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