«Nenhum acordo nunca unificará» [Daniel Deusdado, “JN”, 03.07.14]

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1. Talvez interesse ao meu amigo leitor do nosso JN saber que me deu, Deus, a maravilhosa oportunidade de visitar muitas cidades do Mundo e em todas elas procurar os seus museus e assim descobrir a alma das pessoas e dos espaços. Nenhum me marcou tanto como o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. E lá encontrei um sonho. Porque vi as Palavras nas paredes, grandes, gigantescas, belas, artísticas, ou pequenas e coloridas, em formato de poemas, em formato de quebra-luz, em todas as formas e feitios. Quadros para ler com as melhores palavras do meu português querido, do nosso português brasileiro, africano de qualquer outra derivação.

Numa das instalações artísticas do Museu, um maravilhoso céu de palavras e vozes, as melhores vozes, liam, em quase escuridão, poemas e frases-monumentos. Algumas estão dentro de nós, na memória, e já nem sabemos que estão lá. De Camões a Vinicius ou Mia Couto, Pessoa e seus heterónimos e outros tantos, é absolutamente extraordinário esse momento em que sentimos as palavras a correrem-nos pelas veias, não porque entram pelos olhos e nos provocam um arrebatamento do coração, mas sim porque entram pelos ouvidos e vão direitas ao sangue – e ele ferve de emoção.

No Museu da Língua, as Palavras são música porque as vozes que as interpretam nos esmagam de beleza. E de todas as vozes da língua portuguesa, nenhuma voz me arrebata mais do que ouvir Gal Costa com aquele tom de Primavera com que sempre canta ou diz – Gal lendo português seja-ele-qual-for. Não me lembro já se foi ela quem leu este poema de Sophia Mello Breyner Andresen que me pôs em paz com este dilema: como gostar mais de ouvi-los a eles, adoptivos, que a nós, originais portugueses da língua de Portugal?

“Gosto de ouvir o português do Brasil / Onde as palavras recuperam a sua substância total / Concretas como frutos nítidas como pássaros / Gosto de ouvir a palavra com as suas sílabas todas / Sem perder sequer um quinto de vogal / – Quando Helena Lanari dizia “o coqueiro” / O coqueiro ficava muito mais vegetal”.

É esta maravilhosa diferença entre nós e eles que nenhum acordo nunca unificará.

[Transcrição parcial de crónica, da autoria de Daniel Deusdado, publicada no “Jornal de Notícias” de 03.07.14. “Links” inseridos por nós. Este texto foi transcrito com a ajuda da extensão Chrome “Desacordo ortográfico”. Agradecimentos a Hélder Magueta pelo apontador que nos enviou via Facebook.]

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1 comentário

    • Maria Miguel on 5 Julho, 2014 at 17:34
    • Responder

    Belíssimo!

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