«Juízo de valor» [Alberto Gonçalves, “DN”, 30.03.14]

DNlogoQuarta-feira, 26 de Março

Por mim, está encontrado o novo herói da querida língua portuguesa. E não, não se trata de um romancista, poeta ou académico. Trata-se, acreditem se puderem, de um magistrado, nem mais nem menos do que o juiz Rui Teixeira, célebre pelo processo da Casa Pia, que instruiu e do qual foi enxotado.

Agora arrisca-se a ser corrido da profissão em si, e tudo porque, há quase um ano, recusou um relatório escrito na mistela resultante do Acordo Ortográfico e ameaçou multar os serviços do Ministério da Justiça que não se dispusessem a reescrever o documento em português de gente. À época, o Dr. Teixeira sentenciou que, no tribunal dele, “os factos não são fatos, as actas não são uma forma do verbo atar, os cágados continuam a ser animais e não algo malcheiroso e a Língua Portuguesa permanece inalterada até ordem do contrário”.

É certo que, conforme lembra Henrique Monteiro num dos blogues do Expresso, a atitude do juiz é arrogante e os seus argumentos um nadinha ignorantes. Por um lado, duvido que o homem possa sequer multar os funcionários em questão sob o referido pretexto. Por outro lado, escolheu péssimos exemplos: o “c” de “facto” não é mudo e mantém-se; as palavras esdrúxulas não ficam sem acento.

Ainda assim, julgo que Henrique Monteiro, ao contrário do Dr. Teixeira, não viu o essencial. E o essencial é que uma trapaça tão injustificada quanto o AO não obriga à lisura dos respectivos opositores. A partir do momento em que, nas nossas costas, um bando de iluminados decidiu reduzir o idioma do padre António Vieira a uma aberração indigna do padre Borga, o princípio do vale-tudo está legitimado. Não há crime em distorcer, exagerar, falsear o poder destrutivo do AO desde que a recompensa seja a perturbação do dito. Por atabalhoado que fosse, o gesto do Dr. Teixeira representou um exercício de resistência, e mal faríamos se passássemos a discutir o modo como resistimos em vez de nos concentrarmos naquilo a que se resiste. A língua já sofre demasiado pelas vias informais da oratória política, do jargão jurídico, do dialecto futebolístico, dos clichés jornalísticos e do puro analfabetismo das “redes sociais” para que a deixemos entregue à tortura oficial infligida pelo AO. O Dr. Teixeira errou, mas a resignação é que é o verdadeiro acto falhado. Ou “ato”, que nem chega a tanto.

[Transcrição de parte da crónica semanal “Dias Contados”, de Alberto Gonçalves, no “Diário de Notícias” de 30.03.14. “Links” e destaques adicionados por nós.]

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2 comentários

    • Maria José Abranches on 3 Abril, 2014 at 0:30
    • Responder

    Estou com Alberto Gonçalves: «mal faríamos se passássemos a discutir o modo como resistimos em vez de nos concentrarmos naquilo a que se resiste.»

    Aliás tem imensa graça que, para ‘resistir’ ao AO90, seja indispensável conhecê-lo bem, usar os bons argumentos, enquanto que, para o aplicar acrítica, submissa ou entusiasticamente não seja necessário conhecê-lo, nem em boa verdade conhecer a língua que ele modifica. A prova deste ‘enlevo’ e desta submissão ignorantes está aí por toda a parte, como todos os dias podemos verificar (veja-se, por exemplo, a “Choldra Ortográfica” denunciada por João Roque Dias).

    E a tal “arrogância”, que tanto incomoda nos opositores ao AO90, considera-se justificada e natural quando se trata de IMPOR o AO90 ao país, no Ensino, na Administração, nos ‘media’, em especial na RTP – que nós somos obrigados a pagar -, sem discussão, silenciando e ignorando os argumentos autorizados de quem conhece a língua, bem como o sentimento espontâneo da maioria da população, que preza a sua língua!

    Resistir ao AO90, sem complexos, por todos os meios ao nosso alcance, denunciando também, quando for o caso, a “bufaria” renascente, é a única coisa séria que todos nós, portugueses, temos de fazer!

    • Maria Barbosa on 4 Abril, 2014 at 11:32
    • Responder

    E aqui temos, mais um exemplo:
    http://www.almedina.net/catalog/images/convites/IIJornadasInternsDtosHumanos.jpg
    Não obstante a nobreza da intenção, questiono-me sobre “O Papel” das “tetas” masculinas para alimentar os menos afortunados… Tenham Tectum! Tenham Juízo!

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