Na sexta-feira, o Acordo Ortográfico foi discutido no parlamento. Infelizmente, daí não resultou a possibilidade de suspender a sua aplicação. O Acordo não é uma questão ortográfica. É uma questão política. Não é ortográfica porque não cumpre o seu próprio propósito de unificar a ortografia. Sem o Acordo, a semelhança ortográfica entre Portugal e Brasil era de 96% das palavras; com o Acordo, passa a 98%. Ou seja, quase nada. Sendo que as confusões se multiplicaram. E já muita gente as enumerou.
O Acordo nasce de duas coisas: do delírio português de que existe uma entidade chamada ‘Lusofonia’ que pode ter um grande peso geopolítico mundial, e da ambição do Brasil em ser uma potência.
As duas casam bem, porque desde há muito que os portugueses só entendem a sua imaginada grandeza como algo para além de Portugal: antes era o império, agora é a Lusofonia (noutras versões, a Europa). A coisa vai tão longe que chega muitas vezes ao ponto da anulação do país. O padre António Vieira, perante a ameaça espanhola de 1663, aconselhava D. Luísa de Gusmão a esquecer Portugal e mudar-se para o Brasil para fundar o V Império; D. Rodrigo de Sousa Coutinho, no fim do século XVIII, dizia que a parte europeia de Portugal não era a “mais importante”, pelo que a rainha Maria devia ir para o Brasil; D. João VI fugiu mesmo para o Brasil quando Napoleão cá entrou em 1807, e não queria voltar. Hoje, também a Lusofonia só pode sonhar em ser um actor geopolítico graças ao Brasil.
É típico da elite portuguesa. Como o campónio que esquece as origens, sonha com os grandes espaços, a Europa, a América. Tudo menos o Portugalzinho triste e acanhado.
Diz que o Acordo é preciso para o português passar a língua oficial da ONU. Pois há um acordo muito mais simples: cada país escreve como quer.
O inglês, cuja ortografia varia de país para país e é das mais contra-intuitivas, não precisou de nada disto para ser a mais importante língua do mundo.
O preâmbulo do Acordo diz que ele é essencial para o “prestígio” da Lusofonia. Prestígio era recusar a adesão da Guiné Equatorial à dita Lusofonia.
Mais uns litros de petróleo e uns quantos bancos salvos da falência não justificam tal coisa.
[Transcrição integral de artigo, da autoria de Luciano Amaral, publicado no jornal “Correio da Manhã” em 01.03.14. “Links” e destaques adicionados por nós.]
2 comentários
Nem mais! As palavras certas para designar este enredo ridículo em que nos meteram!
Luciano Amaral é um colunista lúcido, que costumo ler há vários anos. Este artigo no Correio da Manhã (que por sinal e em máhora adoptou o AO90) está milhas à frente do artiguinho pateta do Henrique Monteiro no Expresso.
Aliás, Henrique Monteiro está sempre do lado menos consensual das questões. Escreve contra o Tribunal Constitucional, está a favor dos cortes nas pensões… A coluna dele no Expresso online tem a elucidativa designação “Chamem-me o que quiserem”. Dá ideia de que aquilo que escreve é propositadamente controverso, para suscitar a participação dos leitores… Seja assim, ou não, tornou-se um colunista desagradável.