«Para os meus amigos acordistas» (parte I) [RV, “Diário de Coimbra”, 03.02.14]

dc_03022014Quando descobrem a minha aversão ao Acordo Ortográfico (AO90) alguns amigos espantam-se: “És contra o Acordo?!? Mas… a Língua tem de evoluir, não achas?”

Nesta pequena frase, muitas vezes dita com sincera simplicidade, traduz-se o enorme equívoco que constitui o AO90 — parte-se do princípio de que a norma ortográfica pode espartilhar a evolução de uma Língua, ou mesmo impedi-la por completo, ao mesmo tempo que se assume o AO90 como uma “evolução”. Ora, infelizmente para quem defende o Acordo, estas premissas estão erradas.

Veja-se, por exemplo, o Dicionário do Círculo de Leitores, na sua edição de 1985, onde faltam palavras como “telemóvel”, “internet” ou “bué”. Não foi preciso um acordo para as integrar, tal como também não será preciso um para os dicionários actuais incluirem “googlar” ou “selfie”.

Por outro lado, o AO90 é tudo menos uma evolução da Língua. A alteração da grafia de uma simples palavra devia limitar-se a fixar no papel, a posteriori, aquilo que fosse sendo consagrado pelo uso comum ou pela mão daqueles que melhor conhecem a Língua — os escritores. Com o AO acontece o inverso: milhares de palavras são alteradas por um acordo que não o é, ao sabor de critérios incoerentes. Em muitos casos as alterações impostas, além de serem um atentado à nossa identidade e fonte de um enorme caos ortográfico, acabam por alterar a própria pronúncia das palavras, pervertendo completamente o sentido da relação entre uma Língua e a sua norma escrita.

Outra reacção típica dos meus amigos é o sorriso divertido que acompanha a pergunta: “Então… queres voltar a escrever farmácia com ph?” É certo que o “ph” não parece incomodar ingleses e franceses, mas é evidente que não, ninguém quer regressar à ortografia de 1911. Por uma razão muito simples: sendo verdade que a norma escrita não impede a evolução da Língua, então toda a reforma ortográfica é realmente um transtorno desnecessário. Nas palavras do filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, “toda a reforma ortográfica é palhaçada”. Qualquer putativa vantagem que uma reforma ortográfica possa trazer será sempre largamente ultrapassada pelos seus inconvenientes: perda da estabilidade ortográfica, quebra de unidade entre gerações de escritores e leitores, dificuldades acrescidas no ensino da Língua. Regressar agora a 1911 seria tão incómodo como… “avançar” para 1990. Não será infinitamente mais simples ficarmo-nos por 1945?

“Sempre se mexeu na ortografia”, insistem os meus amigos. É verdade, mas em 1949 o Nobel da Medicina também foi atribuído a um procedimento cirúrgico que, hoje em dia, já não se pratica. À luz do simples bom senso, dir-se-ia que uma reforma como a de 1911 (já na altura tão contestada), seria impossível nos nossos dias. Infelizmente, como sabemos, bom senso foi coisa que não existiu quando alguém decidiu promover o Acordo Ortográfico.

Rui Valente

[Texto publicado no jornal “Diário de Coimbra” de 03.02.14. “Links” acrescentados nesta reprodução.]

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2 comentários

    • Rocío on 3 Fevereiro, 2014 at 17:37
    • Responder

    Nem mais, Rui. Também tenho (poucos, felizmente) amigos acordistas e utilizo esses argumentos com eles.
    Não sei porque lhes custa tanto compreender uma coisa tão lógica.

    • Maria José Abranches on 6 Fevereiro, 2014 at 0:07
    • Responder

    Obrigada pelo seu texto, Rui Valente. Gabo-lhe a paciência! É que eu já estou farta da estupidez nacional: como é que é possível que tanta gente ande para aí a repetir essas patetices da “evolução da língua”, reforçadas com esse arzinho “superior”acusando-nos de defensores do regresso ao “ph” e ao “y”, etc, etc…
    Mas esta gente não entende que alguém, muito mais esperto e interessado na porcaria deste Acordo, conhecedor da saloiice nacional, sempre ávida de modas, lançou essas tretas para os tolos e ignorantes repetirem alarvemente? E se estudassem um bocadinho a língua e lessem o dito “pasquim”, que passa por “tratado internacional” (coisa legítima… em que três países valem por oito…)?!
    Gostei de ouvir e ver Olavo de Carvalho, citado no seu texto: uma baforada de bom senso e de sanidade mental no meio de tanta estupidez, conformismo imbecil e inércia que por cá se vive!

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