Revisão… da matéria dada?

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Depois de, no ano passado, o GT-AO90 ter ouvido durante largos meses as mais variadas pessoas, ter lido os contributos deixados pelos cidadãos, ter elaborado um relatório final, eis que será agora proposta a criação de um novo Grupo de Trabalho (desta vez, de iniciativa governamental) sobre, essencialmente, o mesmo tema.

Que me desculpem os Senhores Deputados, mas: para que é preciso repetir tudo outra vez? Não estiveram com atenção? Não houve tempo? Não se ouviu já gente suficiente? Não foi possível chegar a conclusão nenhuma? É que isto faz-me lembrar aquelas aulas antes do teste, em que o sumário era “Revisão da matéria dada”. Com a diferença de que neste caso será dar a matéria toda outra vez.

Já todos percebemos que o “acordo ortográfico” é um embaraço político e diplomático de proporções estrondosas, uma bota gigantesca e pesada, cheia de atilhos, fivelas e molas que não sabem como hão-de descalçar.

Já todos percebemos que se tratou de um absurdo engendrado por uma meia dúzia de académicos que não tinham mais nada que fazer e acharam que umas reuniões além-fronteiras era mesmo o que vinha a calhar, sobretudo apondo à sua “obra” os bonitos e pomposos rótulos de “evolução da Língua”, “expansão da Língua”, “facilitação da aprendizagem”, “unificação” e outras coisas no estilo.

Já todos percebemos que não é uma coisa séria nem consistente. Parte de pressupostos errados, não demonstra nada do que afirma, é um conjunto de excepções transvestidas em regras mal explicadas, é uma autêntica nódoa em termos académicos. Foi aprovado ignorando todos os pareceres relevantes das entidades competentes (não incluo como parecer relevante aquele que emanou de um dos seus autores, como é evidente). Não é credível e a prática demonstra-o todos os dias.

Já todos percebemos que é completamente inútil. Não serve para as editoras fazerem edições únicas, não serve para o Português ser admitido como língua oficial da ONU (já agora, e recordando uma outra falácia recente na pessoa de um senhor que supostamente lá trabalhava e enganou meio mundo com todo o desplante, pergunto-me por que é que basta evocar a ONU para engolirmos com a maior facilidade qualquer patranha que nos queiram impingir??), não serve para facilitar a aprendizagem aos nativos nem aos estrangeiros e, nunca é demais repeti-lo, não serve para unificar a língua coisíssima nenhuma, porque a Língua já não é “unificável” a esta altura (há muita gente que fica triste com isto, eu sei, mas é a verdade e mais vale aceitá-la de uma vez; basta ler três frases de legendas do mesmo filme em Pt-Pt e em Pt-Br para se ver que as diferenças são gritantes, com ou sem “acordo ortográfico”).

Já todos percebemos que não é uma “evolução” da Língua, porque a verdadeira evolução não acontece no laboratório, dá-se na vida real. O que a verdadeira evolução demonstra, isso sim, é que o português de Portugal e o do Brasil já não irão convergir para uma mesma Língua outra vez, com ou sem esta engenhoca linguística sem sentido. Não serve de nada andar a “atirar culpas” para um lado ou para o outro. Essa separação linguística já aconteceu e já não é reversível, com ou sem pozinhos de perlimpimpim ortográficos. O que não constitui desgraça alguma. Se a Língua é uma das expressões mais básicas da cultura de um povo, qual é o problema da diversidade cultural, há alguém que me explique?

Já todos percebemos que Portugal é o grande sacrificado no altar dessa tal “unificação” (ou “aproximação linguística”, ou seja qual for o rótulo bonito e pomposo que lhe queiram colar). Com todo o respeito e admiração pelo Brasil — país ao qual, de resto, reconheço toda a legitimidade para fazer da Língua o que quiser e muito bem entender dentro das suas fronteiras —, não me venham dizer que é sequer remotamente comparável a alteração de uns acentos e hífenes com a horripilante carnificina linguística a que assistimos aqui. Essa mesma carnificina linguística só não é evidente nos restantes países de Língua oficial portuguesa porque, bem… alguém por acaso vislumbra a aplicação do “acordo ortográfico” nesses países?

keeping-cards-castes-from-going-downJá todos percebemos que foi aprovado quando os Senhores Deputados (salvo raríssimas e muito honrosas excepções, aliás facílimas de constatar consultando o que foi dito na altura) nem sabiam bem em que consistia para se pronunciarem devidamente sobre o assunto. Não poria objecções a que se ouvisse tudo outra vez, se por acaso fosse para ouvir realmente, destrinçando a triste realidade por entre a magnífica propaganda com que foi alardeado desde o início. Se por acaso achasse que o motivo para tal dedicação à matéria era um genuíno interesse pela Língua Portuguesa e por aquilo que é de facto melhor para os seus falantes e escreventes. Mas, infelizmente, tenho a sensação de que se trata apenas de uma operação de cosmética, uma “lavagem” aos olhos do povo, para no final “validar” uma de duas coisas, qual delas a pior: ou que o AO90 é uma verdadeira maravilha e já devia era estar em pleno vigor há muito tempo; ou toca a pôr uns toques de maquilhagem nos sítios devidos e a branquear o assunto com uma “revisão” ficando, na prática, tudo na mesma (ou muito pior, na verdade, porque entretanto com mais uma aldrabice nacional a tapar o Sol com a peneira). Porque para fazer a única coisa aceitável — acabar com o “acordo ortográfico” de vez —, não é preciso recapitular tudo: está à vista de todos que o AO90 não serve a ninguém (não incluo, obviamente, as pessoas a quem está a encher os bolsos, porque essas, evidentemente, não contam).

Portanto, Senhores Deputados, se querem realmente resolver a questão, é suficiente reverem o que já foi dito e darem uso efectivo a algo que, pelo menos anatomicamente, já têm: a coluna vertebral.

Hermínia Castro

[Nota: estas observações (pessoais) dizem respeito ao único texto até agora publicado dos três projectos de RAR já anunciados pela comunicação social. Aguardemos pelos restantes.]

[imagens de 123RFDragos Roua]

 

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6 comentários

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    • Maria Miguel on 9 Janeiro, 2014 at 1:06
    • Responder

    Mais uma excelente exposição sobre um caso tão enredado, que só de Polícia deveria ser! Todos os argumentos contra a maltratada Língua Portuguesa já foram divulgados, mas têm que continuar a ser trazidos à luz de cada dia. Caríssima HC, diga-nos, este texto seguiu para os Deputados? Ele não pode, não deve ficar só aqui!

    Porque há memórias que parecem ser congeminadas em “estufa” à base de ingredientes voláteis que se apagam bem rápido. É preciso agitá-las. Incomodá-las.

    O uso do Português está uma lástima. No meu correio electrónico o corrector está em Português do Brasil. Neste sítio está o corrector que rejeitamos, que me sublinha o que escrevo como aprendi. Não entendo!… Sei também que não entendo de informática, mas mais valia não haver nenhum corrector accionado. No meu computador o corrector é o certo porque não o substitui.

    Assim, a acentuação do Brasil, subtilmente, vai pegando e quem pouco sabia de regras portuguesas, não tardará a acentuar com acento circunflexo onde deverá estar o agudo.
    E de onde virá o uso de “à séria”? que se ouve, até na publicidade! Até uma veterana locutora da RTP, com a mão apoiando o queixo, estilo possivelmente exigido pela imagem, diz “à séria”, como o dirá um respeitável iletrado, que ouve a coisa e a repete porque acha que é de bom tom!…
    Cumprimentos
    MM

    1. «Neste sítio está o corrector que rejeitamos, que me sublinha o que escrevo como aprendi. Não entendo!… »

      Desculpe mas está a fazer confusão. O corrector ortográfico a que se refere é o que tem instalado no seu computador, evidentemente. Não existe algo como “o corrector ortográfico de um sítio” (website), automaticamente. Caso queira alterar essa situação, no seu aparelho e para qualquer fim de escrita electrónica, queira consultar a nossa página http://ilcao.com/?page_id=5097, instalando os respectivos, correctos correctores ortográficos.

    • Maria José Abranches on 9 Janeiro, 2014 at 16:47
    • Responder

    Muito bem, HC! Subscrevo do princípio ao fim! E vou divulgar o mais possível este texto, já que a imprensa parece andar a dormir.

    Muito se tem discutido ultimamente a educação, as políticas, iniciativas e directivas do MEC e a “escola pública”, e tudo isto sem pôr em causa a “indecente”, “cretina” e “ruinosa” aplicação do AO90 no ensino nacional! E até há – cúmulo do ridículo – quem venha defender a “escola pública” em “acordês”!!!
    Será toda esta gente visceral e irremediavelmente analfabeta?! Sim, porque só analfabetos podem ficar impassíveis perante uma língua de cultura caricaturalmente desfigurada na sua representação escrita!

    Estamos fartos! Chega de “brincar” à democracia: seja qual for a sua área política, cá estaremos (e disso nos lembraremos aquando das próximas eleições, europeias e nacionais) para ver se ainda há políticos com a tal “coluna vertebral”:

    «Portanto, Senhores Deputados, se querem realmente resolver a questão, é suficiente reverem o que já foi dito e darem uso efectivo a algo que, pelo menos anatomicamente, já têm: a coluna vertebral.»

    • Maria Miguel on 9 Janeiro, 2014 at 22:56
    • Responder

    Muito lhe agradeço, JPG!
    Tratarei do assunto! Mas só agora entendi como se faz.
    MM

  1. Cito, de “post” aqui publicado no passado dia 1 de Agosto, as únicas formas – viáveis, exequíveis, credíveis, sérias – de dar seguimento (consequente) aos trabalhos do GTAO :

    «-A apresentação, por parte de um único Deputado ou de vários, de um projecto de lei de conteúdo e objectivos similares aos da nossa ILC, conforme previsto na alínea b) do Art.º 156.º da CRP. Isto evidentemente, desde que fique garantida a liberdade de voto, ou seja, que em sede de reunião de líderes de grupos parlamentares se convencione a abolição da “disciplina de voto” neste projecto de lei em concreto.
    -A constituição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (cf. Art.º 178.º – 4 CRP), requerida por 46 Deputados, com a finalidade de investigar todos os procedimentos do processo legislativo que conduziu à aprovação da RAR 35/2008 (II Protocolo Modificativo) e tendo por (óbvia) consequência a apresentação de uma iniciativa legislativa em conformidade.
    -A apresentação de um pedido de fiscalização da constitucionalidade e da legalidade da RAR 35/2008, do II Protocolo Modificativo e/ou do próprio AO90, por parte de (pelo menos) 23 deputados de todas ou de pelo menos duas bancadas parlamentares. (cf. Art.º 281.º – f) CRP).» (cf. http://ilcao.com/?p=11360)

    Qualquer outra “solução”, mais ou menos espectacular, mais ou menos verborreica, não passará disso mesmo, ou seja, em termos que toda a gente possa entender claramente, não será mais do que simples conversa fiada .

  2. Muito bom texto.
    Se quisessem mesmo unificar, pelo menos, a grafia (em 98%, vá), seria assim: http://www.elsonfroes.com.br/tractado.htm

    Enfim, falácias e mais falácias, mas nós ainda cá estamos. Já que há novo grupo, oxalá não seja mais um empate. Confiemos nas boas intenções de Seufert e companhia, entre outros. Ao mesmo tempo, alguém que fure os pneus do BMW da Canavilhas, essa alma perdida.

    Por vezes imagino como viria Fernando Pessoa toda esta situação. Já na altura viu a coisa a descambar, em 1911. Hoje, acho que se exilaria na Nova Zelândia.

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