«Bases da Ortografia de 1885 são mais modernas do que o AO90» [por Afonso Loureiro]

goncalvesvianaApenas mais uma acha para a fogueira que há-de queimar o AO: demonstrar que os argumentos agora apresentados a defender a modernidade da primazia da fonética sobre a escrita já eram considerados coisa ultrapassada no séc. XIX.

Já em 1885 se apresentavam projectos de reformas ortográficas do Português, algumas das quais com as variantes agora propostas de substituição de algumas letras, como a de Gonçalves Viana e Vasconcelos  Abreu.

No entanto, para que a ortografia fosse de facto uma ortografia e não uma espécie de Deus-dará ortografo-fonético, a ortografia não se fundamentava na pronúncia. Destaco os seguintes pontos, retirados das bases propostas por estes autores para reger uma ortografia:

[citação]
3.º A ortografia é o sistema de escrita pelo qual é representada a língua dum povo ou duma nação num certo estado de evolução glotológica.

4.º Esta representação deve ser exacta para todo o povo, para toda a nação e portanto deve respeitar a filiação histórica.

5.º É evidente, pois, que a ortografia não pode ser especial dum modo de falar, quer este seja dum só indivíduo, quer duma província ou dialecto da língua.

6.º Em virtude disto a ortografia não pode representar a pronunciação, que por certo não será una; há-de representar a enunciação, a qual é sempre comum ao povo, à nação que fala uma só língua como seu idioma próprio e exclusivo.

7.º Na ortografia, por consequência, não se pode fazer uso de sinais que indiquem pronúncia de uma qualquer letra vogal, excepto quando essa vogal careça de ser pronunciada com modulação especial para a distinção conveniente do emprego sintáctico do vocábulo, ou aínda (e menos vezes em português) para distinguir na grafia única modos diferentes de silabização.

8.º Para se representar a enunciação carece-se de acentuar graficamente o vocábulo, e a ortografia deve ser tal que, subordinada às leis de acentuação na língua falada, mostre para qualquer vocábulo a sua sílaba tónica a quem desconheça o vocábulo que lê.
[/citação]

Sucintamente, a pronúncia rege a ortografia até ao ponto em que se procura grafar regionalismos ou sotaques. A ortografia deve ser una. A pronunciação das palavras não deve apresentar dúvidas nem para os vocábulos desconhecidos.

É exactamente o oposto do que se propõe o AO90. Grafias múltiplas, escritas de acordo com o sotaque regional, facultatividades e ambiguidades. Moderno, portanto.

O futuro do AO90 será propôr que em Lisboa se grafe coâlho e em Coimbra se continue a grafar coelho.

Mais adiante, os autores advogam a substituição dos th,ph e ch pelos seus equivalentes fonéticos – que não alteram a pronúncia, e ainda a redução das letras dobradas, como os gg em todos os casos, e os nn e mm em casos especiais.

Se para tal estiverem predispostos, recomendo-vos a análise do panfleto “Bases da Ortografia Portuguesa” publicado pela Imprensa Nacional. Está disponível no projecto Gutenberg, ou no link abaixo.

http://purl.pt/437/6/l-11025-5-v_PDF/l-11025-5-v_PDF_T-C/l-11025-5-v_tT-C.pdf

Afonso Loureiro

[Texto recebido por email, via “formulário de contacto“. Publicação aprovada pelo autor. Imagem de “Frenesi”, loja de livros antigos.]

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3 comentários

  1. Considero essas propostas das Carolinas Michaëlis e afins já foneticistas, mas é a minha opinião. Mais interessante, a meu ver, será por exemplo o preâmbulo do dicionário Caldas Aulete. Hoje, usa-se o argumento matarruano de “se não fosse assim ainda escreveríamos pharmacia, com ph” como se isso fosse uma coisa progressista. “Ai que retrógrados e pouco evoluídos são os ingleses e os franceses”… ninguém se atreve a dizer semelhante disparate.

    Mas, por analogia com o que o caro Bic Laranja e outros já disseram, mexer mais no ovo já mexido sai porcaria.

    • Alberto Mininho on 25 Novembro, 2013 at 9:32
    • Responder

    A respeito da simplificação das grafias pharmacia, phrase, theatro… e o argumenton de “se não fosse assim ainda escreveríamos pharmacia, com ph” , se quiser, pode ler este meu comentário anterior:

    http://ilcao.com/?page_id=1199&cpage=1#comment-24836

    Cumprimentos.

  2. Que tenha sido pronunciado /p/ ou /f/ em latim… Ortografia não é a mera representação dos sons. Nenhuma língua no mundo é 100% fonémica. O ph era uma pista da origem e mais um auxiliar naquilo que é a percepção das famílias de palavras. O mesmo com tantos étimos perdidos, como o “hippo” e “hypo” que se tornaram meros “hipo”, bem como o “philo” e “phyllo”, tornando-se “filo”. Como eu digo, cada um tem a sua opinião, isto é daquelas questões onde não há uma verdade universal e cada qual que analise e se posicione. Mas entre ter memória visual de palavras com marcas etimológicas e os esquemas mentais que nos fornecem, e ter memória visual de palavras que só “representam” sons (como se num alfabeto de 20 e poucas letras isso fosse algum dia possível), fico-me pela primeira. É por memória visual que lemos, o que é independente das letras que a palavra contenha; não lemos sílaba a sílaba, sendo que com 12 anos de escolaridade obrigatória e com todos os estudos sobre o assunto, não se pode pôr a questão da “literacia” como em 1911 e que está a acontecer com o AO90 e as “propostas” do xô Ernani. Quem me disser que se lembra de alguma vez ter tido dificuldade em escrever “directo” ou “homem” em criança que atire a primeira pedra. Pois claro que não tiveram. Viram a palavra uma vez, associaram-lhe um som, fixaram para a vida. Complexidade justificada na língua não é capricho erudito, é civilização e pensamento.

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