«Ursamentu du Istadu» [Nuno Pacheco, “Revista 2”, 27.10.13]

NP_27Out2013O Orçamento que por aí se discute tem, logo nas primeiras páginas, a indicação de que seguiu as normas do acordo ortográfico de 1990. Compreende-se. De outro modo, como é que a troika o leria? Corre-se então o documento de uma ponta à outra e lá estão os exemplos da “novidade”: a palavra “setor” aparece escrita 5 vezes, “setoriais” 4, “subsetor” 1 e “subsetores” 20. Mas, relendo outra vez do princípio, eis que lemos também “sector” (114 vezes), “sectores” (27), “sectorial” (10), “sectoriais” (110), “subsector” (50) e “subsectores” (25). Isto nos textos e até nos quadros, que usam, indiscriminadamente, as diferentes variantes. A que se deverá tal miscelânea, querem explicar? Deve-se, muito simplesmente, ao seguinte: o acordo recente, chamemos-lhe AO90, tem a particularidade de consagrar as duas ortografias para “sector”, de tal modo que até o Ciberdúvidas, quando se refere à palavra, escreve amiúde “sector/setor”. Um livreco que anda por aí diz até, de forma clara, “que cada escrevente deverá, pois, optar pela grafia que lhe parecer mais correta” (sic). Que lhe parecer, vejam bem! Como no Orçamento terá havido vários “escreventes”, vê-se que as suas opções penderam mais para a grafia do português europeu ainda em vigor. Significativo.

stock-illustration-12074155-music-writing-conceptJá cansa falar disto, francamente, mas para lá do simples problema ortográfico (e a admissão de duplas grafias é contrária à própria noção de ortografia) existe um óbvio problema fonético. A pseudo-reforma “unificadora” que nos vendem finge ignorar que a escrita não é apenas uma convenção mas, também, seguindo os códigos da fala (neste caso, da portuguesa), um guia para a leitura. Se a uma pauta de música para, por exemplo, uma sinfonia, tirarmos alguns dos sinais gráficos usados para guiar os músicos na sua execução, a pretexto de “simplificar” nas pautas a escrita musical, teremos sérios problemas no dia do concerto. A escrita musical também teve reformas ao longo da história, mas mexer num padrão estabilizado sem cuidar do resto era e é um sarilho.

Se lermos “setor” à luz dos mesmos padrões que nos fazem ler de forma correcta “senhor”, “serrador”, “setenta”, “serviço”, etc., só podemos ler “s”tor” Nada nos leva a ler “sétor”. Isso ou, como já sucedeu em Portugal no passado, quando o “e” era geralmente aberto na leitura e se usava o acento circunflexo para alterar o seu som (“êle”, “pêso”, etc.), passaremos a ler “sénhor”, “sérrador”, “sétenta”, “sérviço”, etc. Além disso, como é público, há quem leia “séktôr”, “sétôr” ou “sêtôr”, já para não falar na forma como no Brasil, escrevendo-se “setor” (sem o c) se lê, habitualmente, “cêtôrr”. Isto põe, desde logo, um problema básico: ou em Portugal existe uma única forma de escrever “sector” e palavras afins ou, então, deixa-se ao “escrevente” a escolha. Malaquices, portanto, a que nenhum ser humano com um mínimo de inteligência deveria anuir.

É isso, adivinharam: um profundo disparate. A lógica é a mesma do “ai aguenta, aguenta” usado por um senhor para falar do povo e da austeridade. Cuida-se que, tirando as letras que se tirarem, o povo aguenta e fica tudo na mesma. A fala não se altera, garantem, só a escrita. Azar o deles: a fala anda associada à escrita mas não do modo que eles imaginam. Tirar o “c” a “efectivo” é um convite, por cá, a que a palavra se leia “ef”tivo”, como miseravelmente já por aí se lê. Aliás, como era perfeitamente óbvio que viria a acontecer.

sentido_proibidoNo exacto ponto em que se encontram os códigos vocálicos português e brasileiro, não há escrita que os unifique. O que o acordo ortográfico, na sua parlapatice unificadora, quer forçar é uma impossibilidade prática. A pretexto da simplificação, excluem-se letras que tinham, e têm ainda, a sua função para efeitos fonéticos. Problema nenhum, dizem. Toda a gente sabe como se diz a palavra, por isso simplifiquemo-la. Se se diz “sétor”, pode escrever-se “setor”. Ora experimentem usar a mesma técnica nos sinais de trânsito. Numa rua de sentido proibido tirem o sinal, confiando que toda a gente já o decorou, e vão ver o que acontece.

Um dia, quando o “escrevente” puder, livre de peias ortográficas, escolher as letrinhas a seu gosto, talvez o Orçamento do Estado venha a ser Ursamentu du Istadu. O que não andará muito longe, não só do “istadu” a que chegámos, mas em particular dos que teimam em fazer-nos passar por ursos.

[Transcrição integral de texto, da autoria de Nuno Pachecopublicado na “Revista 2”, suplemento do jornal “PÚBLICO” de 15.09.13. Destaques adicionados por nós. Imagens de iStock e Clássico HipHop Time]

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3 comentários

  1. — Deseja fâ-tura com o n.º de contribuinte? — disse a menina da loja.
    — Deixe lá a fâ-tura. Por agora chega-me só o recibo, obrigado.

    Cumpts.

  2. O que eu mais ouço na TV é “âtivar”, “âcionar”, “âcionista”… Já nem sei se é típico aí de Lisboa ou se já é uma consequência disto. No Porto sempre ouvi “àtivar”, “àcionar”, “àcionista”.

    É que se não fosse pela integridade etimológica, pelo menos que conservassem pelo valor diacrítico em muitas palavras e que até o compincha brasileiro admitiu. Uma sopa de contradições. Para somar a isto, só mesmo dar uma vista de olhos nos vocabulários da ABL e do ILTEC. No Brasil também existem as variantes factor, tacto, olfacto, óptica, afectar, susceptibilidade, electrônica… Para além das grafias únicas que já sabemos (decepção, percepção, receptor…). Ai, ai.

  3. Segundo Cagliari (1989, p.112): “A escrita cursiva só é menos difícil para quem está acostumado com o escrever e com o modo de traçar as letras de quem escreveu, é difícil ler o que os outros escrevem e, às vezes, até mesmo o que nós próprios escrevemos”.

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