«Uma língua que se vai desfazendo» [F. J. Viegas, revista “Ler” de Junho 2013]

logobadge1Nota prévia: a ILC pela revogação da entrada em vigor do “acordo ortográfico de 1990” não se revê em qualquer espécie de posição “revisionista” em relação ao AO90. O projecto de lei que pretendemos submeter a votação parlamentar não refere “revisão” alguma do texto daquele “acordo”, nem explícita nem implicitamente, mas apenas a revogação da RAR 35/2008, isto é, do instrumento que determinou a sua entrada em vigor a 1 de Janeiro de 2010.

«A entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990 fica suspensa por prazo indeterminado, para que sejam elaborados estudos complementares que atestem a sua viabilidade económica, o seu impacto social e a sua adequação ao contexto histórico, nacional e patrimonial em que se insere.»


revistaLERA «verdadeira história» do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa começou quando entre nós? Alguns meses, talvez um ano, depois da publicação, em Diário da República, da resolução do Conselho de Ministros (RCM n.º 8/2011) que determinava a sua entrada em vigor a 1 de Janeiro de 2012. Nos 20 anos anteriores (desde 1990), houve períodos em que se discutiu  o Acordo Ortográfico com maior ou menor ferocidade, empenhamento,  entusiasmo, dramatismo, paixão, desinteresse ou ingenuidade — mas o assunto não faria as primeiras páginas dos nossos jornais, nem sequer os rodapés das televisões. Menciono os rodapés das televisões, e em especial da chamada «televisão pública», e sobretudo da assim designada «televisão pública com antena internacional» porque não há memória de tão profundo e desavergonhado ataque à nossa língua nos meios de comunicação como a ortografia, a sintaxe e o desleixo geral que esses rodapés transmitiam (na altura, nesta revista, por exemplo, propôs-se uma autoridade para vigiar esses erros). Aliás, nenhuma estação de televisão, pública ou privada (mas sobretudo tão inchada dos seus «pergaminhos públicos», que são periodicamente muito úteis), creio que em todo o mundo, foi tão orgulhosa dos seus erros ortográficos e da sua impunidade. Creio que continua a ser.

Durante esses 20 anos, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AOLP) foi negociado entre academias (ressalvando o facto de a portuguesa ser de uma irrelevância total), linguistas e políticos. Sabia-se que havia uma vasta «maioria moral» contra o AOLP, constituída por escritores, jornalistas, também linguistas e políticos, e unida por motivos diversos- desde a ideia de que a adopção do Acordo significaria uma cedência ao Brasil, até argumentos filológicos e políticos de peso. Mas o assunto não interessava à imprensa; e o que não interessa à imprensa — é preciso notar que há pessoas analfabetas que chegam frequentemente ao cargo de director de jornal– também não interessava ao País que, de repente, a partir de 2011, se viu confrontado com manuais escolares conformes ao AOLP, e com a proximidade da entrada em vigor do mesmo acordo em todos os documentos da Administração Pública.

E, como sempre acontece entre nós, passou-se da aceitação amorfa e bovina para a guerrilha e para a indignação total que deveriam ter ocorrido durante os 20 anos anteriores ou, pelo menos, na altura em que o Governo da época resolve escolher uma data (Janeiro de 2012) para que o AOLP entrasse em vigor.

Os factos são estes, a que poderíamos acrescentar que o AOLP está cheio de normas ridículas que deveriam ser corrigidas ou simplesmente rasuradas (e são coisas bastante simples, quer em matéria de acentuação, quer na queda de consoantes mudas), que o Estado português não deveria ter avançado sem garantir que Angola ou Moçambique tivessem assinado o acordo (como se verificou, tardiamente, na altura em que o Brasil decidiu adiar a data de entrada em vigor definitiva do AOLP) e que – mais importante ainda – o AOLP não deveria ter entrado em vigor sem que estivesse encerrado o Vocabulário Ortográfico Comum, meta que ainda não se vislumbra. Infelizmente, o Estado português não olhou a meios para poder declarar estar na linha da frente, até na questão da adopção de um acordo ortográfico. Não admira: é cada vez mais difícil encontrar, nessas esferas, alguém que escreva com sujeito, predicado, complemento directo e algum conhecimento do nosso dicionário culto.

O jornalista Pedro Correia traça, em Vogais e Consoantes politicamente Incorrectas do Acordo Ortográfico (edição Guerra & Paz), o destino do AOLP: parar, corrigir, refazer. É o que vai acontecer, se quisermos, algum dia, falar de uma língua comum aos países que a têm como emblema.

No auge do poder da chamada «linguística oral & estrutural» a filologia era desvalorizada e condenada ao patamar do reaccionarismo. Quando se chamou a atenção (nesta revista, por exemplo) para idêntica desvalorização do ensino da Literatura nos programas de Português, a associação profissional respectiva estabeleceu que ensinar Literatura não tinha nada a ver com o ensino do Português. Tamanho absurdo não causou indignação (e foi igualmente pequena a que recebeu a decisão, do Ministério da Educação da época, em 2010, em não considerar a existência de erros ortográficos em provas de Português, uma inovação pedagógica de truz). O resultado é este: uma língua que se vai desfazendo.

[Transcrição integral de artigo, da autoria de Francisco José Viegas, publicado na revista “Ler”, número de Junho 2013. O texto, originalmente “ao abrigo do AO90”, foi corrigido automaticamente  com a extensão “desacordo ortográfico” para Chrome. “Links” e destaques inseridos por nós.]

[Imagem da capa da revista copiada da respectiva página no Facebook.]

[Via João Roque Dias, citando “post” no “blog”Chove. Transcrição a partir de ficheiro PDF alojado em Box.com.]

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4 comentários

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  1. Este cavalheiro deixou as drogas?

    • Elmiro Ferreira on 17 Junho, 2013 at 0:01
    • Responder

    Uma tristeza, uma profunda tristeza é o que sinto, caro Francisco José Viegas. Claro que o senhor é livre de adoptar a ortografia que bem entender na sua escrita, mas eu, que gostava de o ler, não sou obrigado a lê-lo e deixei de o fazer. E possivelmente quem ficará a perder serei eu, mas não tenho toda essa elasticidade, ou plasticidade, para aceitar ver a Língua que me ensinaram a respeitar ser abastardada e mutilada, em nome de sonhos de grandeza, sonhados por outros que não os portugueses.
    Não sou especialista de coisa alguma, menos ainda linguista, ou filólogo, mas gosto de ler em português de Portugal os escritores portugueses. Aos escritores brasileiros leio-os, sem precisar de tradução, em português do Brasil e isso não me incomoda… a diversidade enriquece a Língua Portuguesa, como sabe. O que me dana é assistir a esta situação degradante que o dito “Acordo Ortográfico” veio instalar. Mas não vou por esse caminho de assacar culpas a este ou àquele. A revista LER segue o AO90? Então, passem muito bem. É essa a minha resposta aos “acorditas”, sejam revistas, jornais ou livros. E, pelo caminho, subscreverei os requerimentos que aparecerem e se proponham mandar para o lixo esse aleijão ortográfico. Sem bovinidades.

    • Alexandre Costa on 17 Junho, 2013 at 15:22
    • Responder

    Por essas e por outras deixei de comprar a Ler. Faço, aliás, o mesmo sempre que me deparo com um livro em “acordês”… Atitude radical? Talvez, mas como o Elmiro Ferreira bem referiu, não consigo fazer das tripas coração e digerir textos de autores portugueses (ficção, poesia, ensaio, o que quer que seja…) vertidos nessa “coisa”.

    • Zahiruddinbabur on 17 Junho, 2013 at 19:18
    • Responder

    Curioso é este senhor ter sido qualquer-coisa-da-cultura-só-para-enfeitar no Governo e, na altura, não só não ter dito nada disto como nem sequer o contrário: “eu pessoalmente não uso” num membro do Governo que o implementou ( (ir)responsável pela Cultura!) já era suficientemente mau; dizer que não gosta, não usa, mas zelar para que seja usado já parece física quântica: espinha bífida é o que eu lhe chamo (das raparigas louras diz-se outra coisa).

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