Um depoimento comentado (1ª parte)

O que se segue é uma transcrição anotada (1.ª parte) do depoimento de José António Pinto Ribeiro, advogado, ex-Ministro da Cultura, perante o Grupo de Trabalho parlamentar sobre o AO90, em audição realizada em 23 de Maio de 2013.

A transcrição (de gravação áudio) foi executada por Hermínia Castro e as anotações, comentários e “links” são da autoria de Maria José Abranches.

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(…) Gostava de referir, muito sumariamente, aquilo que são os pressupostos digamos, na minha cabeça, da minha vinda cá. Em primeiro lugar explicar que existe um acordo ortográfico. Esse acordo ortográfico resulta de uma negociação levada a cabo por pessoas nomeadas para o efeito pelo Estado português, através dos seus órgãos competentes [quem e por quem?], e que esse acordo ortográfico foi aprovado em 16 de Dezembro de 1990, portanto, no âmbito de uma reunião da CPLP [a primeira Cimeira (constitutiva) da CPLP ocorreu a 16 e 17 de Julho de 1996, em Lisboa: data da criação da CPLP – 17 de Julho de 1996) e foi depois aprovado pelo Governo português, porque um representante seu subscreveu [a assinatura, por Santana Lopes, Sec. Estado da Cultura: Lisboa, 16 de Dezembro de 1990] mas foi depois aprovado pelo Governo português, foi depois aprovado pelo Parlamento português [RAR n.º 26/91: “Aprova, para ratificação”- 4 de Junho de 1991], e foi depois aprovado pelo Presidente da República português [ Mário Soares, Dec. n.º 43/91, 23 de Agosto 1991- “É ratificado o Acordo Ortográfico…”; “Referendado em 7 de Agosto de 1991”: pelo Ministro da Presidência, Joaquim Fernando Nogueira, em nome do Primeiro-Ministro, Aníbal Cavaco Silva] E essa coisa aconteceu relativamente ao acordo ortográfico, de modo que em 1991 – o acordo ortográfico é de 1990 –, em 1991 todos os procedimentos internos de aprovação estavam concluídos [DR – I SÉRIE-A, N.º 193 – 23-8-1991] e também estava concluída já o depósito dos instrumentos de ratificação [publicado em que D.R.?] junto da entidade que tinha competência para receber essa ratificação. E essa entidade que tinha essa competência era por acaso o Ministério dos Negócios Estrangeiros português [Art.º 3.º do AO90], e portanto era em Portugal, era em Lisboa que esses instrumentos de ratificação tinham de ser depositados.

Portanto, o Governo português, o Estado português, através destes três órgãos, o Governo, o Parlamento e o Presidente da República, sempre o Governo do momento, o Parlamento do momento, a maioria do momento e o Presidente da República do momento, como é evidente, aprovaram tudo [como “donos da língua”, sem consultar os especialistas ou os cidadãos, abusando da confiança dos eleitores e sem respeito pela Constituição].

Em 1998, verificou-se que a entrada em vigor, prevista para 94 [ 1 de Janeiro de 1994, Art.º 3.º do AO90], não se podia ter verificado e fez-se um I Protocolo Modificativo ao acordo ortográfico. Esse acordo, feito em 17 de Julho de 98, veio também a ser assinado por um representante do Governo português [Jaime Gama] e depois veio a ser aprovado pelo Governo português, e depois veio a ser aprovado por uma deliberação do Parlamento português, da Assembleia da República [RAR n.º 8/2000], e depois também aprovado pelo Sr. Presidente da República [Jorge Sampaio], através de uma resolução do Presidente da República [Dec. do PR  n.º 1/2000, referendado pelo Primeiro-Ministro, António Guterres] Tudo isso foi concluído no ano 2000 [link para: DIÁRIO DA REPÚBLICAI SÉRIE-A n.º 23 — 28 de Janeiro de 2000].

Verificou-se que o acordo ortográfico não podia entrar em vigor, o artigo 3.º, 2.º e 4.º do acordo ortográfico impunham umas regras de entrada em vigor que não foram cumpridas, não interessa. [Dos 4 artigos iniciais sobra intacto apenas o Art.º 1.º! “Não interessa”: e assim se trata a “legalidade” deste AO90!]

Não era fácil a entrada em vigor em 1994 quando havia processos de ratificação interna que pressupunham que os Estados todos tivessem parlamentos a funcionar, havia Estados que estavam em guerra civil, havia Estados que não tinham ainda um processo de pacificação e de institucionalização das suas instituições que permitissem esse funcionamento e portanto era banal, normal, razoável pensar que, apesar da vontade e do desejo de que em 93, 94 já estivesse tudo pacificado [“vontade e desejo” de Portugal e do Brasil, únicos envolvidos e interessados neste AO90], que isso não tivesse acontecido e portanto não houve ratificação. Em 98, percebendo-se isso, alteraram-se uns pressupostos [um acordo internacional modificável ad libitum, para satisfazer os seus promotores – Portugal e Brasil] da entrada em vigor e estabeleceu-se que a entrada em vigor, que o acordo ortográfico entraria em vigor quando estivesse ratificado por todos os Estados signatários, que eram na altura sete. [Mantém-se a necessária elaboração de “um vocabulário ortográfico comum… no que se refere às terminologias científicas e técnicas”.] Em 2004, numa nova reunião, também da CPLP, veio a verificar-se, em 26, 27 de Julho, em São Tomé, [no documento diz-se: “Feito e assinado em São Tomé em 25 de Julho de 2004″.] veio-se a verificar que o acordo ortográfico não tinha sido ratificado por toda a gente, como era evidente, por todos os Estados, e portanto não podia entrar em vigor.

Também se verificou que ele não permitia a adesão ao mesmo de Timor, de Timor-Leste, que se tinha entretanto tornado independente, e também isso foi modificado. [Na altura, todas as notícias dos OCS noticiaram a adesão de Timor-Leste à CPLP e nenhum referiu sequer a “troca” de 8 por 3 países signatários para que o AO90 entrasse em vigor em todos eles. Nas discussões em plenário foi da adesão de Timor que se falou, não da eliminação da regra da unanimidade.(*)] Fez-se um novo Protocolo Modificativo, um II Protocolo Modificativo, esse II Protocolo Modificativo foi aprovado pelo Governo, foi assinado por um representante do Governo português [António…? (assinatura ilegível)], do Governo de 2004 [de Santana Lopes?], foi depois aprovado pelo Governo português, depois foi aprovado pelo Parlamento português [RAR n.º35/2008, 16 de Maio de 2008], e depois foi aprovado pelo Presidente da República [A. Cavaco Silva, Dec. do PR n.º 52/2008, referendado em 22 de Julho de 2008, pelo Primeiro-Ministro José Sócrates].

Ou seja, este acordo ortográfico, na peça inicial, no primeiro modificativo e no segundo modificativo foi aprovado, sempre com largas maiorias, pelo Parlamento português, sempre por três Presidentes e três governos que não eram sequer de maiorias iguais. O primeiro Governo que o aprovou era um Governo de maioria PSD. O segundo Governo, que aprovou o II Protocolo Modificativo era um Governo que não tinha maioria, que era um Governo do PS, e portanto não tinha maioria mas estava, o Governo era do Partido Socialista, era chefiado pelo engenheiro António Guterres, que na altura era líder parlamentar quando foi aprovado o acordo ortográfico de 90, 91, e depois o acordo modificativo foi aprovado em 2004 pelo Governo que na altura estava a funcionar, o Primeiro-Ministro era na altura o doutor Pedro Santana Lopes e foi depois aprovado pelo Governo, o XVII, se não estou enganado, pelo Governo presidido pelo engenheiro José Sócrates e foi aprovado pelo Parlamento e aprovado por… O que eu quero dizer é que o acordo ortográfico foi ratificado, sufragado sistematicamente por o poder instituído, pelos órgãos legítimos para o fazerem, e sempre sem qualquer problema.

Gostava de dizer que não me pronuncio sobre a bondade ou não bondade deste acordo. Sim, é possível sair do euro, sim, é possível sair da União Europeia, sim, é possível sair do acordo ortográfico. Mas não é uma questão que se me ponha e portanto não venho aqui falar-vos sobre nada que tenha a ver com isso.

O Governo português, repetidamente, o Parlamento português e o Presidente da República português repetidamente acordaram, decidiram, ratificaram, aprovaram, já depositaram os instrumentos de ratificação [MNE : 13 de Maio de 2009, segundo o Aviso n.º 255/2010, publicado no DR, 1ª série – n.º 182 – 17 de Setembro de 2010]  uma vez e outra vez, não vejo que essa questão seja susceptível de ser colocada.

Acho que posso dizer alguma coisa que me parece que é importante para o Grupo de Trabalho. A única razão por que o Grupo de Trabalho existe, suponho eu, é porque existe alguma recalcitrância da parte de sectores obviamente relevantes da sociedade portuguesa no que diz respeito ao acordo ortográfico [“alguma recalcitrância”? É assim tão extravagante que a AR sinta necessidade de ouvir os cidadãos eleitores, numa questão com esta gravidade?]. Apesar de o acordo ortográfico estar aprovado por quem está, com toda a legitimidade, como disse repetidamente, há um sector intelectual que, não só, há um, houve um abaixo-assinado, houve uma petição feita à Assembleia da República, que recolheu, sim, 1% da população, não são 10, quer dizer, foram 100 mil assinaturas; se formos 10 milhões de habitantes, isto é 1% da população, mas não deixa de ser 1% da população que se mobiliza, portanto da população que se dá ao trabalho de assinar, de ir fazer estas coisas. [Isto é uma falácia! “10 milhões” menos os menores de idade menos os analfabetos (totais e funcionais) menos quem não tem acesso à Internet menos todos aqueles que ignoram o assunto. 1 milhão, se tanto. (*)]

E portanto suponho que a razão por que existe este Grupo de Trabalho, ele exprime sociologicamente a existência de uma resistência da parte de sectores à aplicação, ao acordo ortográfico e eu pessoalmente tomei conhecimento disso, claro, no exercício de funções, porque houve pessoas que me vieram pedir que, apesar de aprovado nos termos em que estava, que não, que eu fizesse tudo o que eu pudesse para que nós saíssemos do acordo ortográfico. E portanto acho que, aquilo que aqui se exprime é, digamos, ainda essa resistência.

(continua…)

(*) Comentários acrescentados por JPG.

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4 comentários

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  1. A saliva que este tratante gasta para dizer que uma ratice que ninguém pediu e ninguém quer está ratificada, e em cima disso que está ratificada e outra vez ratificada, é o cuspo que cola um débil tratado internacional cujas partes signatárias de todo em todo o não ratificam.
    A jactância da legitimidade do Poder delegado em eleições sem mais querer atender aos apelos e à vontade dos eleitores em matéria jamais discutida nem nunca sufragada pela nação diz tudo acerca destes trastes alapados à res publica.
    Pff!

    • Elmiro Ferreira on 16 Junho, 2013 at 0:03
    • Responder

    Subscrevo, por inteiro, o comentário de Bic Laranja.

  2. É um dos argumentos preferidos dos acorditas, dizer que é legal porque é legal, dizer que é indiscutível que é bom e bonito e fecham a porta à discussão. Que é ilegal sabemos todos, mas se repetirmos muitas vezes que é legal, talvez se esqueçam e aceitem o dogma. (não me espantaria se um destes dias visse dogma escrito sem o “g”).

    • Jorge Teixeira on 17 Junho, 2013 at 12:36
    • Responder

    Hoje em dia a mentira não tem limites. E são estas pessoas ministros.

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