«Português ou Brasileiro? Não eis a questão» [por Marcos Bagno]

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PORTUGUÊS OU BRASILEIRO? NÃO EIS A QUESTÃO
Por MARCOS – 10/06/2013 às 09:42

O ato social, cultural e político de nomear uma língua é um processo muito mais complexo e conflituoso do que a maioria das pessoas imagina. Antes de tudo, justamente por ser um ato político, ele escapa alegremente do domínio restrito dos especialistas em linguística e exige uma abordagem sócio-histórica bem embasada. E quando aplicamos essa abordagem às diferentes situações sociolinguísticas do mundo, encontramos, no mínimo, duas tipologias bem distintas: (1) línguas iguais com nomes diferentes e (2) línguas diferentes com nomes iguais.

Para ilustrar o tipo (1), vamos examinar o caso do híndi e do urdu. O urdu é a língua oficial do Paquistão. Como língua falada, o urdu é praticamente indistinguível do híndi, língua oficial mais importante da Índia. A diferença entre as duas línguas está no fato de que o urdu é utilizado como língua escrita por falantes muçulmanos e se escreve numa forma ligeiramente adaptada do alfabeto persa que, por sua vez, é uma variante do alfabeto árabe. O híndi, por sua vez, se escreve no alfabeto devanágari, originalmente empregado para o sânscrito, e é utilizado pelos falantes de religião hindu. A rivalidade histórica entre Paquistão e Índia, que gerou guerras sanguinárias entre os dois países, junto com a divisão religiosa, é o que explica a atribuição de nomes diferentes a um único sistema linguístico.

A situação das línguas da Índia e do Paquistão se reproduz em certa medida na antiga Iugoslávia. Depois da sangrenta divisão da antiga confederação socialista em diferentes pequenos Estados independentes, a língua que sempre se chamou servo-croata recebeu três nomes distintos: sérvio, croata e bósnio. As diferenças entre o sérvio e o croata sempre se restingiram à escrita: os croatas, católicos romanos, empregam o alfabeto latino; os sérvios, católicos ortodoxos, empregam o alfabeto cirílico; os bósnios, muçulmanos, empregam tanto o alfabeto latino quanto o cirílico. Com a criação dos Estados independentes da Croácia e da Bósnia, a língua, que para os linguistas é um sistema único com variedades locais que não impedem a intercompreensão dos falantes, passou a ser designada com nomes distintos, nomes de países, de nações.

A situação se inverte no tipo (2) e fica clara quando analisamos o caso da chamada “língua árabe”. Por razões de natureza religiosa, o que os falantes de “árabe” chamam de “árabe” é a língua na forma como ela se encontrava quando o profeta Maomé redigiu o livro sagrado do Islã, o Corão, no século VII. Essa língua, também chamada de “árabe clássico”, é uma língua morta, não é falada por ninguém como idioma materno, está restrita à literatura religiosa. Nos diferentes países chamados “árabes”, existem formas de falar tão diferentes entre si quanto, por exemplo, o português e o italiano, sem possibilidades de intercompreensão entre seus falantes, e não poderia ser de outra maneira. É uma ilusão ideológica achar que num território imenso, que vai do extremo ocidental da África até a fronteira do Iraque com o Irã, passando por todo o Oriente Médio, se fala uma só e única “língua árabe”.

No entanto, essa ilusão ideológica é sustentada pela própria cultura “árabe” tradicional, já que na maioria dos 22 países “árabes” o sistema educacional se dedica exclusivamente ao ensino do “árabe clássico” e de sua forma mais modernizada, o “árabe-padrão”, enquanto que os chamados “dialetos” particulares falados nos diferentes países não recebem apoio institucional nem são valorizados, embora sejam as verdadeiras línguas maternas nacionais. É inconcebível que 300 milhões de pessoas, distribuídas por um território tão dilatado, falem uma mesma e única língua “árabe”.

O caso do português também entra nessa segunda situação, ou seja, línguas diferentes do ponto de vista estrutural e dos usos (fonológico, morfossintático, semântico, pragmático etc.), mas que recebem o mesmo nome. Já sabemos que o nome das línguas não depende das opiniões dos especialistas. No caso do Brasil, ocorreu, na década de 1930, uma tentativa de designar a nossa língua majoritária como “brasileiro”, mas o projeto de lei que previa essa designação se afogou no meio do turbilhão político que acabou por instituir o Estado Novo e a ditadura de Getúlio Vargas.

Uma análise racional pode partir da seguinte pergunta: por que, 500 anos depois do desmoronamento do Império Romano, a bibliografia especializada já reconhece a existência de “línguas” como o francês, o castelhano e o português, mas não reconhece, 500 anos depois da expansão marítima portuguesa, a existência de diversas “línguas” derivadas do português quinhentista? Por que a mesma porção de tempo vale para uma classificação (línguas românicas: francês, espanhol, português etc.) mas não vale para outra (“variedades” do português)?

As pesquisas linguísticas empreendidas no Brasil têm demonstrado amplamente que o português europeu e o português brasileiro já são duas línguas diferentes, tanto do ponto de vista estrutural (fonológico, morfossintático, semântico), quanto do ponto de vista pragmático, discursivo etc. Seja qual for o nome que se dê a cada uma dessas línguas, o importante é reconhecer sua diferença e, principalmente, reconhecer que o português brasileiro é uma língua plena, autônoma, um sistema linguístico perfeitamente regrado e que nada tem de inferior a língua nenhuma do mundo, muito menos ao português europeu. Pelo contrário, o português brasileiro apresenta características únicas, que atraem a atenção dos linguistas estrangeiros, intrigados com esses fenômenos estruturais que isolam a nossa língua dentro do conjunto geral das línguas românicas.

A designação da nossa língua como português ou brasileiro depende única e exclusivamente de continuarmos ou não amedrontados por um fantasma colonial que teima em assustar ideologicamente aqueles que ainda consideram o povo brasileiro uma “mistura de raças” e, por isso, um povo incapaz de ter sua língua própria.

Marcos Bagno

[Transcrição integral (conforme original, na ortografia utilizada pelo autor) de “post”, da autoria de Marcos Bagno, publicado em 10.06.13 no “blog” Preconceito Linguístico. “Links”, destaques e sublinhados inseridos por nós. Imagem de Wikipedia.]

[Nota: as entradas “wiki” que inserimos neste texto são em Castelhano (ou em Inglês) porque não existe Wikipedia em Português-padrão.]

[“Link” recebido por email, de Ângelo Morais, via formulário de contacto.]

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9 comentários

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  1. Não tenho bem a certeza do intuito deste post, mas sempre achei piada a este sonho de muitos brasileiros em um dia poderem dizer que têm uma língua própria, numa de dar um ar de seriedade e antiguidade enquanto nação. É triste, e é triste a comparação com o latim. Eu percebi 100% do que o senhor escreveu, e tenho a certeza que entenderia 100% se o dissesse. Se me colocarem um texto em latim sou capaz de entender algumas palavras por associação, mas daí a entender um texto vai um longo passo. Está na hora de perceber que a língua é a mesma, mas não há necessidade de se standardizar seja o que for a uma escala global, é insano. Se são línguas diferentes, o que dizer do alemão suíço e do alemão da Alemanha? O que dizer das enormes variedades de formas de se falar árabe? Enfim, uns sonham com a uniformização utópica com o falso argumento de que sem ela tornar-se-ão línguas distintas, mas outros caem no ridículo oposto, dizendo que já o são. Haja moderação. Cumps

    1. Este post não tem qualquer intuito em especial. É só um dos 799 aqui publicados (ou reproduzidos) até agora.

  2. Adição: Ele realmente falou do árabe, mas deve ser tão conhecedor da língua como eu da fisiologia de bivalves.

    Também reparei que esse é o senhor de há uns tempos, o tal que quer é vender os seus livros.

    Enfim, pelo menos há brasileiros lúcidos.

    “Algumas questões.
    1. Não sabia da diversidade interna da “língua árabe”. Mas a extensão geográfica, sozinha, não a explica. Fala-se inglês (ou “norte-americano”, quem sabe) da Flórida ao Alasca. O Brasil também é um bom exemplo.
    2. Português e brasileiro são línguas distintas? Você diz que sim, mas não explica por quê. Fato é que nos compreendemos mutuamente, às vezes com certa dificuldade, mas bem melhor do que com os italianos, para usar o exemplo que você aplicou à “língua árabe”. Além disso, as eventuais dificuldades parecem ser mais de sotaque – se aplicariam, talvez, ao diálogo de um peão gaúcho com um boiadeiro nordestino.
    3. Enfim, a distinção entre “línguas” parece ser não apenas “política”, mas um tanto arbitrária. Questão de demarcar a linha divisória em um continuum. O que se fala em Santana do Livramento é português, espanhol ou uruguaio? Ou será “santanês”?
    Abraço.”

    • Maria Miguel on 10 Junho, 2013 at 20:34
    • Responder

    A publicação deste texto revela a-personagem-tipo que o escreve: ausência de conhecimento (desesperado interesse material) disfarçado de uma introdução,
    cuja intenção é baralhar o sentido crítico de quem aqui navega em defesa da Pátria.

    É com exposições deste calibre, baseadas em “realidades” longínquas,
    que só podem ser argumentadas por especialistas de gema,
    que se vai mentindo aos brasileiros e aos portugueses.

    Só falta este “tipo” propor a criação de mais umas tantas línguas como o angolano, o maçambicanês, etc.

    Que dizer do Francês de França, da Bélgica e do Quebec? (exemplos que acrescento aos registados por SH.

    Cumprimentos

  3. Idioma e alvo errados. O gajo que verta a arenga em brasileiro para vender o peixe aos caipiras em Brasília. Aqui ninguém lhe compra nada.
    Cumpts

    • Jorge Teixeira on 11 Junho, 2013 at 11:47
    • Responder

    Que lhe chamem brasileiro e boa-viagem.
    Mas deixem-nos em paz.

    • Jorge Pacheco de Oliveira on 11 Junho, 2013 at 14:33
    • Responder

    Nota-se que este senhor Marcos Bagno (lê-se “bágueno” ou “bánho”?) sofre, de facto, de um preconceito linguístico. Mas o problema é dele e de alguns brasileiros que preferem dizer que falam “brasileiro” e não português.

    Por mim estejam à vontade. Avancem lá com a respectiva proposta de lei no Brasil. Agora que têm uma “presidenta”, talvez seja boa altura para verem reconhecida a pretensão. Para muitos portugueses isso seria uma benção.

    De facto, se no Brasil passarem a falar “brasileiro”, torna-se desnecessário de uma vez por todas o aborto ortográfico, que não serve para outra coisa senão abastardar a língua portuguesa legítima.

  4. Em meio ao turbilhão, cada um faz a política que lhe apetece. Discordo humildemente da opinião do professor, ao passo que continuo o respeitando muito.
    Eu falo português brasileiro e entendo qualquer português escrito, com ou sem acordo ortográfico. Aliás, não sei de qual “brasileiro” o professor fala, porque moro na Bahia e não consigo conversar fluentemente com um gaúcho de Uruguaiana. Seguindo o mesmo raciocínio, significa que deveria o Brasil particionar o português brasileiro também?

  5. Já digo há muito: dentro de alguns séculos o Português será tido como originário do Brasil, da mesma maneira que dizemos agora, com a maior das convicções, que a Fenícia é o actual Líbano, ou que o Português vem do Latim.

    Vejam bem o seguinte exemplo:
    -Não passa nas rádios nem televisões Portuguesas, o grupo é dele, as músicas são feitas por ele, a guitarra foi feita para ele, anda sempre com a nossa bandeira, e
    não existe nenhum músico brasileiro que chegue sequer aos calcanhares.

    Deixo aqui (mais um) Cristóvão Colombo:
    http://www.youtube.com/watch?v=JNQPhfISnBs

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