«Uma fervente sopa de letras» [Nuno Pacheco, “revista 2”, 24.03.2013]

PublicaNP170313

Na semana passada, falou-se aqui dos Colóquios da Lusofonia na sua vertente lúdica e ostensivamente passeante. Mas, para que não se julgue que os seus promotores não têm objectivos mais profundos, convém ler o documento Manifesto contra a crise: a língua como motor económico (no Brasil escrever-se-ia “econômico”, é bom notar), no tal portal aqui já indicado (http://lusofonia.com.sapo.pt/, “Colóquios da Lusofonia”, “AICL historial”). Ali se diz o seguinte: “Uma vez que a unificação da ortografia permite a divulgação do mesmo texto em vários países, a disponibilização das obras literárias mais representativas de cada país aos outros países não só facilita o acesso recíproco a todas as literaturas lusófonas, mas permite a publicação de edições únicas que poderão entrar em vários mercados livreiros.” Ora há dias, no Fórum Pára ou para – onde pára e para onde vai a língua portuguesa?, uma tradutora resumiu o problema numa frase singela: antes, eram precisas duas traduções, uma para Portugal e outra para o Brasil; hoje, com o acordo ortográfico (AO), são precisas duas traduções, uma para Portugal e outra para o Brasil. Espanto? Nenhum. Se palavras como activo ou directo serão agora escritas de igual modo (“ativo” e “direto”), outras como recepção ou ruptura mantêm-se tal qual no Brasil mas mudam em Portugal para “receção” ou “rutura”. Isto já para não falar das mudanças vocabulares naturais, derivadas do uso corrente nos dois países: aluguer ou aluguel; cancro ou câncer; libertar ou liberar; planear ou planejar; maquilhagem ou maquiagem; dobrar ou dublar; esclavagista ou escravista; desenhador ou desenhista; registar ou registrar; camião ou caminhão; comboio ou trem; nave espacial ou espaçonave; aterrar ou aterrisar; casino ou cassino; e um milhão de eteceteras. Sendo assim, a quimera das edições comuns só pode existir como delírio.

Não é problema de hoje. Há mais de um século, quando saiu a décima-terceira edição das Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano, o editor achou por bem apensar-lhe uma nota para explicar que aquela edição era feita “segundo a quarta, de 1877, a última em vida do seu autor”, porque edições posteriores teriam adulterado a grafia e, nalguns casos, a obra. Estávamos, é bom notar, antes da revolução ortográfica de 1911 (devida a um homem que, por sinal, nem sempre usava a mesma grafia nos seus escritos: Gonçalves Viana) e o que edições sucessivas fizeram à obra de Herculano foi trocar-lhe palavras ao sabor das modas do momento (e Portugal, no capítulo da deriva ortográfica, não tem paralelo no mundo). Houve casos em que se trocaram apenas palavras: cousa por “coisa”; sapato por “çapato” (isso mesmo, não o contrário); paiz por “país”; dous por “dois”; mas a ânsia de mudar levou os editores a alterar mesmo “as formas do autor com prejuízo até do sentido”. Os exemplos são curiosos, cómicos ou delirantes. Onde Herculano escreveu orgulho insensato puseram “orgulhoso sensato”; trocaram riso por “sorriso”; escarnida por “escarnecida”, não por “nunca”; bons por “uns bons”; aborrido por “aborrecido”; eminente por “imminente”; essa mariolada por “esse mariola” e possivel por… “impossivel”. Foi possível, sim. E, por isso, um editor atento e honesto quis devolver ao autor a graça da sua escrita. Hoje, curiosamente, é o contrário que se passa. Com mil e um malabarismos ortográficos, ninguém se incomoda já com o que um autor possa escrever.

Dois exemplos recentes, de sinal contrário. O livro, aliás excelente, de José Pacheco Pereira, As Armas de Papel, foi revertido integralmente para a nova norma – isto embora o autor seja um reconhecido adversário do AO, ao passo que a editora, a Temas & Debates é ferrenha adepta do dito. Resultado: citações de documentos dos anos 1960 e 70, que deviam ser ortograficamente fiéis ao original, surgem “atualizadas”. Alguém se imagina a escrever “refratários” (pág. 278) ou “objetivo” (pág. 366) na década de 70 do século passado? Já o Expresso, que como se sabe defende e propagandeia o AO, editou este ano os três volumes de O Que a Censura Cortou “de acordo com a antiga ortografia” a pretexto de se tratar de uma reedição. O que permite que não se leiam textos escritos há quarenta anos como se tivessem saído das mãos da oficina de Malaca & Bechara. E é aqui que estamos: numa fervente sopa de letras, sem tino nem destino.

[Transcrição integral de artigo da autoria de Nuno Pacheco publicado na revista “2” (suplemento do jornal “Público”) de 24 de Março de 2013, página 40.]

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6 comentários

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    • Carlos Costa on 25 Março, 2013 at 16:16
    • Responder

    Foi justamente ao constatar o que Nuno Pacheco refere, a propósito do último título de Pacheco Pereira, que tomei a decisão de não comprar o livro. Há cerca de uma semana fiz o mesmo com o trabalho das historiadoras Irene Pimentel e Cláudia Ninhos sobre Portugal, Salazar e o Holocausto (publicado também pela Temas & Debates). Doravante, irei proceder do mesmo modo com qualquer livro cujo texto verificar ter sido revertido para “acordês”.

    • Eduardo Abreu on 25 Março, 2013 at 18:41
    • Responder

    Fiz o mesmo que o Carlos Costa. E vi os livros do Luís Miguel Rocha, que comprei. Ainda não conheço a prosa, mas sei uma coisa: não vou ler em ‘acordês’, porque o Luís Miguel não escreve em ‘acordês’. E só isso já justifica comprar e ler os livros.

  1. Desde há largos meses que abro e folheio os livros que me interessam procurando as marcas do português acordita. Se por acaso os olhos se me tropeçam num “objetivo” ou “atual” largo-o como se peçonha tivesse. Felizmente que ainda há editoras que resistem, porque para outras, como as do grupo leya, nem o letreiro da livraria do Diário de Notícias é sagrado. Foi arrancado ao Rossio. Devia ser uma consoante muda.

    • Luís Ferreira on 26 Março, 2013 at 12:42
    • Responder

    [OFF-TOPIC]

    Reviewed: Does Spelling Matter? by Simon Horobin

    http://www.newstatesman.com/culture/2013/03/reviewed-does-spelling-matter-simon-horobin

    (lido no http://dererummundi.blogspot.pt/2013/03/does-spelling-matter.html )

    • Jorge Teixeira on 26 Março, 2013 at 15:02
    • Responder

    Um livro do Pacheco Pereira em acordês? Fantástico, uma vez que o autor é contra o AO90!

    • Carlos Costa on 27 Março, 2013 at 16:37
    • Responder

    Jorge, desculpe, mas será que J. Pacheco Pereira é assim tão anti-AO90?… Não sei se estarei a ser injusto, mas quaisquer autores que assim pensam podem e devem pressionar as respectivas editoras, recusando-se a serem editados em “acordês”…

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