«Importantíssima questão identitária» [Isabel Buescu, mensagem]

—-Mensagem original—–
De: anabuescu
Enviada: sexta-feira, 1 de Março de 2013 11:35
Para: ‘Tânia Duarte’
Assunto: RE: Blogue Europa – Parceria de Colaboração Representação Comissão Europeia em Portugal

Cara Drª Tânia,

Agradeço a sua mensagem, que li com toda a atenção. Enquanto professora da FCSH, instituição de produção e irradiação de cultura e conhecimentos, e enquanto cidadã deste país, não posso colaborar nem prestar qualquer apoio a um projecto ou “ferramenta”, como diz, que adere, para ser mais “moderno”, ao “Acordo” Ortográfico, que, como tantos linguistas e pessoas de cultura previram, veio lançar o caos ortográfico e uma verdadeira desortografia da língua.

Num país tradicionalmente pouco alfabetizado, este caos é a machadada final que, pelos vistos, não a fez pensar no verdadeiro alcance dessa decisão. Se é um projecto europeu, então escrevamos, com orgulho e sem complexos, em Português Europeu, e não numa “mixórdia” como é o “acordês”.

A minha contribuição é a seguinte:

1. Sou de há muito uma opositora total do “Acordo” Ortográfico que desfigurou, a um ponto irreversível, a Língua Portuguesa. Como dizia o conde de Vimioso no século XVII, nas suas Sentenças, “a ignorância gera monstros”. Foi isso que, infelizmente, aconteceu.

2. A utilização do AO, que assassina e empobrece dramaticamente a nossa língua, que foi uma imposição política contra a opinião de 99% dos linguistas portugueses, que representou uma cedência abjecta às imposições de grupos multinacionais da informática, que não está em vigor pois não foi ratificado por Angola, que foi uma oportunidade para muitas editoras fazerem dinheiro feio, adulterou e tornou irreconhecível a Língua Portuguesa.

3. Como universitários e intelectuais que somos – quer queiramos quer não, pertencemos a uma elite – temos uma adicional responsabilidade de saber pensar péla nossa cabeça e não compactuarmos com decisões políticas sobre a nossa Língua, que, como já se devem ter apercebido, veio lançar não uma unificação, mas o caos ortográfico, como está à vista, a destruição de uma norma linguística que laboriosamente foi sendo construída desde os gramáticos do século XVI, e que só favorece os interesses de terceiros.

4. O “Acordo” Ortográfico significa:

O “A”O significa
– precedência de critérios de natureza política e económica, nomeadamente interesses dos grandes grupos multinacionais de informática, sobre os critérios científicos (15 pareceres científicos são muito críticos, apenas um, do A. do “Acordo”, é elogioso);

– acto de indevido poder político, de resquícios coloniais, ao ser um acordo proposto e assinado por 2 países à revelia de todos os outros que, usando a Língua Portuguesa, alcançaram a independência política e não foram convidados a pronunciar-se sobre o assunto;

– neste momento, ao verificar-se a imposição do Português do Brasil, é um acto de colonialismo “ao contrário”

– imposição de natureza política sobre a língua, totalmente inaceitável;

– falta de consciência histórica, ao não considerar que as línguas são organismos vivos, com específicas derivas legítimas, e que por isso, quer o Português Europeu quer o Português do Brasil e todos os outros dos PALOPs não podem ser “acorrentados” a um espartilho absurdo, sem efeitos práticos e inaceitável;

– destruição da norma ortográfica, através de um sem número de facultatividades que minam a coerência linguística e anulam o efeito de “unificação” pretensamente perseguido;

– consequente instauração do caos ortográfico, como está aliás à vista nos meios de comunicação, nas instituições, nas posições pessoais;

– falência de um dos argumentos decisivos dos defensores de tal “Acordo”, ou seja, o argumento da unificação ortográfica;

– má-fé e falência do argumento de que um AO “facilitaria a comunicação e o fortalecimento do Português nas instâncias internacionais”. Não há incompreensão, através da língua, portuguesa, entre falantes portugueses, brasileiros e outros países de língua oficial portuguesa. A analogia internacional de casos semelhantes vale aqui: nunca um tal acordo foi necessário quer para o inglês, quer para o espanhol, quer para o francês. Com o português, estas são as 4 línguas que, através da expansão colonial, passaram para outros continentes;

– perda de identidade histórico-linguística, ao serem levadas a um nível residual, do ponto de vista ortográfico, as ligações ao Latim, ligações que distinguem a generalidade das línguas cultas europeias;

– desaparecimento do português europeu das instâncias políticas e culturais internacionais;

– desaparecimento do português europeu dos leitorados e Universidades estrangeiras com ensino de Português:

– desaparecimento do português europeu de instrumentos de comunicação como a Wikipédia, onde a chamada de artigos, nomeadamente em história e literatura, vêm em Português do Brasil, nem sequer o do Acordo Ortográfico, olimpicamente ignorado.

– Como historiadora, a pesquisa na Wikipédia deixou quase de ser eficaz para nomes e figuras menos conhecidas, pois o motor de busca vai directo a homonímias brasileiras, de indivíduos da actualidade (trabalho em Época Moderna, séculos XV-XVIII)

– ou a BBC (v. respectivo site), onde já só surge, entre as várias línguas, o “Brazilian”. O “Portuguese” desapareceu.

– Resistências no Brasil. Exemplo recente: 21 de Fevereiro de 2013: Antena 1: a escritora brasileira que ganhou o prémio Saramago este ano, interpelada directamente sobre a questão do AO na sua chegada a Lisboa para receber o prémio, , disse ter ficado a princípio “entusiasmada”, mas que agora é contra, em virtude do “encanto” que tem a diversidade do português nos vários cantos do mundo….

São estes (alguns)dos argumentos que deveriam ter sido sopesados na Assembleia da República portuguesa em 2008, quando uma petição contra o “A”O, com c. 130 000 aí foi entregue, e ignorado;

São estes (alguns) dos argumentos que qualquer Português advertido e de boa-fé deveria ter sopesado também, antes de, em consciência, ter tomado posição sobre esta importantíssima questão identitária – portuguesa e, portanto, europeia.

Desta forma, a sua nova “ferramenta”, que está a construir, deveria ter estes – e outros argumentos – em consideração, antes de avançar. Tudo quanto escrevi pode ser utilizado por V.Exª.

Desejando-lhe um bom trabalho, envio os meus melhores cumprimentos

Ana Isabel Buescu

Prof. Associada – Departamento de História FCSH-UNL


—–Mensagem original—–
De: Tânia Duarte [mailto:tania.duarte@excentric.pt]
Enviada: quinta-feira, 28 de Fevereiro de 2013 16:48
Assunto: Blogue Europa – Parceria de Colaboração Representação Comissão Europeia em Portugal

Exmo(s) Sr(s) Professores da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

A Representação da Comissão Europeia em Portugal lançou uma nova ferramenta de comunicação: o Blogue Europa (http://ec.europa.eu/portugal/blogue_europa/index_pt.htm).

Vimos, por este meio, convidar-vos a ler, reflectir e comentar os contributos já lançados, na expetativa de que este Blogue se torne um espaço de reflexão e partilha.

No papel de contratante especializado organização e dinamização do blog, gostaríamos desde já de nele vos convidar a participar, uma vez que é nossa intenção fazer desta uma iniciativa partilhada com os parceiros da Representação, tanto de longa data como mais recentes.

A nossa sugestão é a de que prepararem um pequeno texto vosso (1500 a 5000 caracteres, em português, inglês ou francês), versando sobre um tema de dimensão europeia, que poderá ser uma reflexão inicial ou uma reacção a um contributo anterior. Sendo a natureza do blog naturalmente propícia a uma evolução rápida dos assuntos tratados, esperaríamos, não obstante, que o Ano Europeu dos Cidadãos de 2013 fosse uma das linhas de força dos contributos a colocar em linha.

Na certeza de que este projecto poderá contribuir para uma melhor comunicação das entidades e para um aprofundamento da relação com o cidadão, esperamos que nele possam aceitar participar.

Agradecendo desde já a disponibilidade e, na expetativa de um contacto, despeço-me com os melhores cumprimentos

M/Cumpts

Tânia Duarte
Gestora de Projecto

EXCENTRIC
Av. Eng. Duarte Pacheco nº 19 – 6º Esq
1070 – 100 Lisboa
Tel: + 351 21 380 25 20
TM: +351 93 255 55 27
web: www.excentric.pt

[Troca de mensagens recebida por email, da autora, com sugestão de publicação.]

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5 comentários

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    • Jorge Teixeira on 3 Março, 2013 at 18:13
    • Responder

    Muito bem escrito. Apoiado.

  1. Por definição dizer «português» supõe dizer «europeu». Se o significado a tirar do significante tiver de ser mais específico pode sempre adjectivar. O fundo a que caímos é de tal maneira degradante que já nos vemos na contingência de reforçar o próprio «português» com «europeu» para desfazer dúvidas que se nem deviam pôr. «Português» basta-se a si mesmo com sentido de europeu; por definição não é nem será dos trópicos. Nos trópicos é que pode haver necessidade de reforçar com «português» para distrinça doutros gentios. Todos entendem a lógica desta realidade, mas muitos renegam-na por malícia, estupidez, ou desleixo com essa bastardia da «lusofonia».
    Quanto à Tânia Excentric, não sabe simplesmente escrever «expectativa».
    Cumpts.

  2. Fabuloso e impecável, o texto da Professora Ana Isabel Buescu. Se fosse um abaixo-assinado, eu punha já a minha assinatura por baixo.

    • Maria José Abranches on 5 Março, 2013 at 12:47
    • Responder

    Obrigada, mais uma vez, Professora Ana Isabel Buescu! O espírito crítico e a liberdade individual de pensamento, herança do Século das Luzes, ainda não morreram de todo na nossa “elite” universitária e intelectual!
    Oxalá o seu exemplo envergonhe os que pactuam com esta aberração: estão sempre a tempo de mudar de rumo, pois reconhecer o erro é também uma prova irrecusável de inteligência.

    • Hugo X. Paiva on 5 Março, 2013 at 22:55
    • Responder

    Estou com o Bic, Portugue^s e’ isso mesmo. Quem quiser chamar Portugues ao “brasile^s” que apresente ” brasiles” abrangente, passivel de ser entendido no nosso lexico.(Isto sem considerar a semantica).

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