«Filólogos por inerência de cargo?» [Graça Maciel Costa, “blog” Inflorescências]

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Resposta a Gabriela Canavilhas

Exma. senhora deputada, Gabriela Canavilhas,

Sem o respeito que me não merece no exercício das suas funções, mas com o respeito que me merece como ser humano que é, permita que clarifique alguma confusão que V. Exa faz sobre a língua que ambas usamos.

Ponto nº um: a identidade da nação não se resume ao hino e à bandeira, ela faz-se principalmente pela língua. Ninguém emigra ou viaja com uma bandeira nacional a tiracolo, ou a trautear o hino a cada hora, mas todos somos identificados assim que abrimos a boca. Penso que não é difícil para si concordar comigo. Era isto que o grande Fernando Pessoa – concordamos no adjectivo – difundia quando disse, “a minha pátria é a língua portuguesa.”

Ponto nº 2: a unicidade da língua só é possível nos países que partilham o mesmo idioma e um idioma faz-se pela palavra escrita e falada. Ora, o Brasil não fala nem escreve o nosso português, ao contrário dos restantes países da CPLP. E, por incrível que lhe pareça, acrescento que por opção própria, do Brasil, dado nunca terem implementado as várias reformas ortográficas, criando a desvinculação, que V. Exa tanto parece temer, à nossa norma. Ora, diz o bom-senso e a inteligência que a unicidade só se consegue em algo que nos é próximo, nunca no que é dissemelhante, e se a maioria dos países da CPLP – com a única excepção do Brasil – escrevem o Português de Portugal, estamos a unificar o quê ou com quem?

Ponto nº 3: diz V. Exa, e muito bem, que «ninguém manda na língua, ninguém decreta a Língua». Assim sendo, por que razão nos é imposto um acordo absurdamente desnecessário – como o comprova o ponto número dois – por quem não tem a devida qualificação – e falo em qualificação porque é V. Exa quem fala em «especialistas» de uma língua, no caso em apreço, o Alemão. Acaso sois vós, deputados, filólogos por inerência de cargo? E não sendo, como o não são e se comprova por esta borrada pomposamente denominada de “acordo ortográfico”, porque é que não deram ouvidos aos muitos pareceres negativos – todos, com excepção do “progenitor” desta xaropada – sobre esta farsa de acordo? Sem resposta a esta questão, reservamo-nos, nós, os utilizadores e falantes da língua, o direito de questionar as verdadeiras motivações para a imposição do dito acordo.

Ponto nº 4: disserta, ainda, V. Exa sobre as capacidades de comunicação de excelsos poetas como Fernando Pessoa, «o Camões» e «o Homero» – antes do mais, nunca se diz “o Camões”, ou qualquer outro escritor, afinal de contas e ao que se sabe, nunca V. Exa estudou ou sequer almoçou com Luís Vaz de Camões, muito menos com Homero. Sem entrar em citações escusadas, o que disse está aí para quem quiser ouvir, deixe-me informá-la de que os grandes clássicos da literatura, como Camões e Homero, são estudados aprofundadamente por universidades em todo o mundo – ao contrário de cá, que se corta a cultura e o conhecimento a foice e machado. Devo mesmo comunicar-lhe encarecidamente que Camões, esse outro grande poeta português, é considerado, nas universidades dos EUA, como um poeta fenomenal e que a métrica decassilábica de “Os Lusíadas” é um feito do outro mundo. Parece que por cá é de somenos importância.

Ponto nº 5: infelizmente caiu na esparrela comum, ou seja, de quem não tem melhor e mais fidedigno argumento, de dizer que, e volto a citar, «nem nos lembramos que se escrevia farmácia com “ph” e que era a referência grega, não é? Portanto, nós perdemos essa referência na farmácia». Exa. senhora, no caso em questão, o “ph” foi substituído por uma consoante com o mesmo som, ou seja, a alteração não desvirtuou a fonética. O mesmo já não podemos dizer da queda livre das consoantes falsamente mudas – e falo em queda livre porque caem como tordos, onde o acordo o afirma e onde outros, menos instruídos sobre o dito, acham que é capaz de ter caído. Quando a consoante que abre a vogal que a precede é retirada, a vogal fecha e a palavra deprava-se. E, como disse Fernando Pessoa – creio que não terá coragem para o contrariar – através de um seu heterónimo, Bernardo Soares, “… a ortografia também é gente. A palavra é vista e ouvida».

Para finalizar, não me parece que a afirmação de Portugal se fará por um abjecto e desnecessário desvirtuamento da língua e que a tão propalada unificação – por causa de um só país – seja, sequer, possível. Posto isto, podemos concluir que o fim deste aborto ortográfico terá de ser, forçosamente, o caixote do lixo.

Graça Maciel Costa

[Transcrição integral de “post” (de 01.03.12), da autoria de Graça Maciel Costa, publicado no “blog” Inflorescências.]

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13 comentários

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    • Luis Almeida on 3 Março, 2013 at 16:13
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    Tendo em conta o personagem a quem tão excelente resposta é dirigida, receio que mais uma vez se esteja a “atirar bolotas a porcos”.

    • Jorge Teixeira on 3 Março, 2013 at 18:09
    • Responder

    Além da imbecilidade do “ph” persiste-se nesta falsidade das consoantes “mudas”. As ditas consoantes “mudas” raramente são mudas.
    A maior parte dos “c” mudos, não são mudos. Como em acção. As pessoas em Portugal pronunciam ac-ção, mas a sílaba “ac” é aspirada, dando um som parecido com áção mas que não é igual a áção. Chamar a isto uma “consoante muda” é um disparate.
    Tal como as palavras começadas por “H”. A maioria das palavras começadas por “H” não tem um “H” mudo, tem a sílaba inicial com um som aspirado, difícil de traduzir em escrita, daí se falar sempre no “H aspirado”.

  1. São bolotas, são. Se houver resposta não há-de não ser senão «moi».
    Cumpts.

  2. Obviamente apoio e subscrevo o puxão de orelhas que Graça Maciel Costa dá à senhora deputada, pelo seu mau comportamento humanístico-cultural.
    Como não é bonito nem curial fazerem-se processos de intenções, abstenho-me de exprimir a minha dúvida de que a lição lhe sirva de proveito.

  3. Excelente. Grande Graça Maciel Costa. Relativamente a esta ex-ministra da “Coltura”, nem vou tecer considerações, pois é ente não merecedor de alguma, a partir do momento em que pronunciou este engulho: “tauromaquia é um importante evento cultural e patrimonial português”.

  4. A deputada Gabriela Canavilhas gosta sempre de louvar a inicativa de levar ao parlamento esta discussão… blá blá blá, sobretudo se forma jovens com argumentos aguerridos… fica-lhe bem dizer isto, porque afinal é uma “tia” de esquerda. Só que estala o verniz quando não resiste a utilizar o seu tom insuportavelmente paternalista e professoral, explicando aos meninos, qual excelsa línguista, os mistérios insondáveis acerca da língua e ortografia que eles ainda não apreenderam.

    A citação do Fernando Pessoa é do mais manipulativo que se pode arranjar, bem ao género do tipo de falsos argumentos utilizados pelos defensores do AO90 – um apelo imediato ao pathos, contando com a adesão do interlocutor desprevenido.

    Santa ignorância…

    Porque é que a reforma ortográfica de 1911 foi inquestionávelmente “boa”? Qual seria o problema de escrever Cysne e não cisne? Serão os ingleses ou os franceses irremediavelmente estúpidos por não “simplificarem” as suas ortografias? Será que países como a Hungria, a República Checa, A Holanda… terão línguas de 2ª categoria, por não as “afirmarem no plano internacional”? Que critério é que define a “afirmação da língua portuguesa no mundo”? (será o abandono progressivo dos consulados e lectorados de protuguês um pouco por todo o lado?)

    Enfim…

    É por demais evidente que esta senhora já se comprometeu há muito com este AO90, e que toda a argumentação, por mais convincente e razoável que seja, não a irá comover.

  5. Excelente resposta a de Graça Maciel Costa.
    Parabéns

    • Maria Miguel on 4 Março, 2013 at 0:25
    • Responder

    Caríssima Graça Maciel Costa, subscrevo as suas observações.
    Obrigada

    • Hugo X. Paiva on 4 Março, 2013 at 1:47
    • Responder

    Perolas a porcos e’ o que e’.
    Parabe’ns a’ Graca Maciel pelo texto.Canavilhas ja’ entrou com opiniao encomendada, e como tal nada mais lhe resta do que tornar publica a sua ignorancia.

    • maria coelho on 4 Março, 2013 at 12:09
    • Responder

    Eu acho tudo isto uma treta. Espero que alguém de bom senso e com poderes “nos mandantes”, acabem de vez com esta tentativa de assassinato da língua que nos identifica. Não sou avessa a mudanças, mas para melhor, mas estamos a mudar para pior já há tempo demais, parem p.f.

    • Elmiro Ferreira on 4 Março, 2013 at 13:17
    • Responder

    Eu, muito sinceramente, ainda espero que as pessoas enredadas nesta teia acordista acordem da sonolência, ou ganhem vergonha na cara, conforme o caso. Vejo por aí gente toda aplicadinha a cumprir o “Acordo” de quem eu esperava outro exemplo. Por isso, maior é a minha admiração por pessoas como Vasco Graça Moura, Graça Maciel Costa, Isabel Buescu, João Roque Dias, entre outras. E digo que esperava outro exemplo, pois assim deveria ser – a instrução especializada, os cargos ocupados, as funções de estado não deveriam servir apenas para se enfeitarem.

  6. Muito bem, Graça. Parabéns.

    Deputada se fosse a senhora falava o menos possível. Quando vocês falam ou fazem alguma coisa é para lesar Portugal.

  7. “Porque é que a reforma ortográfica de 1911 foi inquestionávelmente “boa”? Qual seria o problema de escrever Cysne e não cisne? Serão os ingleses ou os franceses irremediavelmente estúpidos por não “simplificarem” as suas ortografias? Será que países como a Hungria, a República Checa, A Holanda… terão línguas de 2ª categoria, por não as “afirmarem no plano internacional”? Que critério é que define a “afirmação da língua portuguesa no mundo”? (será o abandono progressivo dos consulados e lectorados de protuguês um pouco por todo o lado?)”

    Completamente, Jorge F.; e que bem nos faria escrever “theatro” e “pharmácia”, não só para se ter um melhor entendimento da etimologia como noutras nações mais evoluídas, mas também para tornar o ensino de línguas importantes como o inglês e o francês muito mais fácil. Eu próprio, tendo dupla-nacionalidade (às vezes bem me apetece esquecer a portuguesa) e um ambiente bilingue (português-inglês) em casa, tenho dificuldades em saber escrever algumas palavras inglesas, precisamente por não ter a certeza se é com y ou com i, se leva ff ou f, m ou mm… Porque, apesar de tudo, nativo mesmo nativo sou em português! Os malacas diriam “coitadinhas das criancinhas inglesas. Como saberão elas que “effective” é com dois éfes e que o l em “salmon” é mudo?? Que esforço de memorização!!”. Enfim, falácias. E esta gente esquece-se que 1911 foi, “supostamente”, para se acabar com o ANALFABETISMO, ou seja, tornar a língua uma coisa fácil para ANALFABETOS. Ora, em plena era contemporânea, com a ortografia estabilizada, argumentos de outrora são o mesmo que chamar de estúpidos e analfabetos aos pobres portugas. Mas pronto, foquemo-nos nisto! Oxalá nos estejamos a rir disto tudo daqui por uns tempos.

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