«Ainda as facultatividades do AO90» [José Paulo Vaz, “a folha” (UE)]

logo_UE1. A base IV do Acordo Ortográfico de 1990(1) (AO) consagra um regime ortográfico facultativo quanto a determinados vocábulos, ou tipo de vocábulos. É um dos pontos mais frágeis do AO e que, só por si, permite pôr em causa a orientação científica que presidiu à nova «norma» ortográfica da Língua Portuguesa. Desde logo porque demonstrativo de que o AO falha redondamente o primeiro dos objectivos que se propunha: a «unidade essencial da língua portuguesa». Objectivo, de resto, também desmentido pela circunstância de o Acordo não ter sido ratificado por todos os países signatários e por não se mostrar sequer cumprida a norma imperativa do artigo 2.º, o que torna, pelo menos, discutível, do ponto de vista jurídico, a sua entrada em vigor. Argumentos que certamente não convencem os fautores e defensores do Acordo: porque simplesmente os não convence nenhum. Num país que ainda há poucas décadas se compreendia como «império colonial», a «Lusofonia» — espaço de uma língua falada por mais de 200 milhões de falantes em quatro continentes, etc. — tornou-se num dogma ideológico que dificulta um debate racional.

2. A disposição em causa é o n.º 1, alínea c), da base IV do AO de 1990, que diz o seguinte:

«Conservam-se ou eliminam-se facultativamente, quando se proferem numa pronúncia culta, quer geral quer restritamente, ou então quando oscilam entre a prolação e o emudecimento: aspecto e aspeto, cacto e cato, caracteres e carateres, dicção e dição; facto e fato, sector e setor; ceptro e cetro, concepção e conceção, corrupto e corruto, recepção e receção;»

A ideia de que a facultatividade aqui reconhecida é espacial, e portanto umas variantes são admitidas em Portugal e outras no Brasil, não encontra o mínimo apoio na letra da lei. O que a norma inequivocamente diz é que é facultativa a grafia das palavras quando a consoante se profere numa pronúncia culta ou quando oscila entre a prolação e o emudecimento. Note-se que a norma não diz que as consoantes se escrevem quando se pronunciam. Pelo contrário: conservam-se ou eliminam-se, facultativamente. Outras leituras desta norma, feitas por linguistas ou seja por quem for, são leituras ‘contra legem’, que visam corrigir a norma. Podem os linguistas não estar de acordo com o critério da alínea c) que enumera, exemplificativamente, os vocábulos sujeitos à regra da facultatividade. Mas uma lei não é um tratado de Linguística. As leis não vigoram pelos seus fundamentos, mas pelos seus comandos. Não é ao intérprete, por mais qualificado que seja na matéria, que cabe escolher a seu talante, dentre as grafias indicadas na norma, aquela que tem por conveniente, eliminando a outra. Por outras palavras, a facultatividade da ortografia, nos casos indicados na norma e em casos análogos, não é facultativa, mas obrigatória. É certo que esta facultatividade é um desastre do ponto de vista da língua, até por se tratar de uma norma aberta, pois a enumeração é meramente exemplificativa: por exemplo, acepção é inteiramente equivalente a concepção. E o problema ainda é mais grave se os instrumentos informáticos que aplicam o AO escolherem preferencialmente as variantes brasileiras, como tem sido o caso. De resto, o problema das facultatividades é inócuo para os brasileiros, que praticamente nada alteraram à sua ortografia e que ignoram as variantes portuguesas dos vocábulos, como se constata por uma consulta ao ‘Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa’(2) (VOLP) da responsabilidade da Academia Brasileira de Letras. O que seria correcto, isso sim, porque é inteiramente legal e minimizaria os prejuízos causados à Língua Portuguesa, seria pelo menos escolher as variantes admitidas que conservam as consoantes etimológicas que interferem na pronúncia das vogais a, e e o.

Os casos de facultatividade previstos no n.° 2 da base IV levam estas considerações ao absurdo: a simples possibilidade de eliminar o t em aritmética é uma demonstração aritmética de insanidade. No entanto, é esta insanidade que está prevista no AO de 1990.

A questão das facultatividades não tem sido bem compreendida e está longe de encerrada. Não tem razão o Paulo Correia no artigo publicado neste boletim, n.º 33, «duplas grafias», onde considera que os casos de «toiro/touro» e «síndroma/síndrome» são de dupla grafia. Não são. São duplas morfologias, porque as palavras têm o mesmo referente, mas pronunciam-se e escrevem-se de maneira diferente. Essa diferenciação era claramente feita pelos autores do Acordo Ortográfico de 1945(3), onde se lê:

Não se consentem grafias duplas ou facultativas. Cada palavra da língua portuguesa terá uma grafia única. Não se consideram grafias duplas as variantes fonéticas e morfológicas de uma mesma palavra.

Os autores do Acordo Ortográfico de 1945, uma plêiade de linguistas dotados de um imenso e sólido saber filológico, entre os quais se destaca o nome do insigne Prof. Francisco da Luz Rebelo Gonçalves, souberam diferenciar situações distintas, conferindo coerência — que agora totalmente falta — à norma ortográfica portuguesa.

3. A justificação que os autores do AO encontraram para este regime é desconcertante: «Torna-se, porém, praticamente impossível enunciar uma regra clara e abrangente dos casos em que há oscilação entre o emudecimento e a prolação daquelas consoantes» (4.4 das Notas Explicativas). Se não era possível formular uma regra clara do ponto de vista fonético, era absolutamente lógico manter o critério etimológico. Também neste ponto o AO é completamente incoerente.

Mas o regime das facultatividades e a opção fonética do AO não têm propriamente uma justificação científica ou um fundamento na história da língua, pois exprimem antes uma opção ideológica que não podemos silenciar: o seu intuito confesso de eliminar da Língua Portuguesa as consoantes não articuladas. E a esse propósito as notas explicativas do AO são inteiramente eloquentes: «É o critério da pronúncia que determina, aliás, a supressão gráfica das consoantes mudas ou não articuladas, que se têm conservado na ortografia lusitana essencialmente por razões de ordem etimológica». E as notas explicativas do AO — cuja responsabilidade, pela parte portuguesa, recai sobre o Prof. Malaca Casteleiro (autor do contestado dicionário da Academia, que, segundo os especialistas, encolheu a Língua Portuguesa, eliminando cerca de 30 000 palavras) — permitem-nos ir mais longe na compreensão deste problema: «A divergência de grafias existente neste domínio entre a norma lusitana, que ‘teimosamente’ conserva consoantes que não se articulam em todo o domínio geográfico da língua portuguesa, e a norma brasileira, que há muito suprimiu tais consoantes, é incompreensível para os lusitanistas estrangeiros.» A afirmação é infame, desde logo, porque não é verdadeira: a manutenção de certas consoantes não articuladas correspondia ao rigoroso cumprimento do AO de 1945. Pelo contrário, o AO de 1945, apesar de ser uma convenção internacional plenamente em vigor, foi abolido no Brasil, em 1955, por decreto do Presidente Café Filho(4), sendo reposta a ortografia anterior. Mas esta afirmação explica o critério fonético do AO de 1990: a cedência ao Brasil. É isso que explica — e só isso explica — que o AO de 1990 possa ter entrado em vigor sem a ratificação dos demais países de língua oficial portuguesa, situação que só desfavorece e desprestigia Portugal, pois Angola já indicou que não ratificará o Acordo. Há no AO de 1990, simultaneamente, servilismo e ignorância relativamente ao Brasil. Pois o diálogo luso-brasileiro é em grande parte um diálogo assimétrico. Ele situa-se num eixo que Eduardo Lourenço qualificou lapidarmente: «ressentimento e delírio». A maneira como nós vemos o Português é própria de um povo que fala e sempre falou a sua própria língua e a difundiu pelo mundo, o mundo de um «império» que no plano mítico-ideológico parece não ter terminado ainda. No Brasil, o  Português é a língua do colonizador. Não é, portanto, a mesma, nem poderia ser, a visão da «língua comum», pois os brasileiros parecem sobretudo interessados em acentuar divergências, quer na ortografia quer na sintaxe, afastando-se, muitas vezes conscientemente, da norma culta, procurando factores de diferenciação específica. O próprio preconceito brasileiro relativamente aos falares portugueses — que se reflecte na legendagem de tudo o que é português no Brasil e, no plano da escrita, na tradução de livros ou de notícias de jornais portugueses — revela que não será com servilismos e subterfúgios pseudocientíficos que só nos envergonham que se encetará um diálogo cultural verdadeiro, frutuoso e fraterno com o Brasil e se defenderá a «unidade intercontinental da Língua Portuguesa». O Acordo Ortográfico de 1990, que não unifica a ortografia e a distorce de forma inaceitável para uma das partes, em nada contribui para esse objectivo. Em vez de se procurar tornar igual o que é diferente, seria bem mais inteligente explicar e ensinar as diferenças, mantendo-as por cima dos preconceitos.

4. A Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 25 de Janeiro, entregou ao Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC) — típico exemplo de associação inteiramente privada que prossegue fins inteiramente públicos e é financiada com dinheiro do Estado através de fundações — a execução do AO de 1990, finalidade que prossegue com instrumentos ‘online’, como o Portal da Língua Portuguesa(5), o Vocabulário Ortográfico Português(6) (VOP) e o programa Lince(7). Como hoje quem escreve utiliza programas informáticos que procedem a uma filtragem electrónica automática, os tarefeiros do ILTEC tornaram-se nos donos da Língua Portuguesa, arrogando-se até o direito de fazer opções ilegais, eliminando a grafia de palavras — como «ceptro» — que segundo a lei têm ortografia facultativa e devem portanto constar de qualquer dicionário competente. A sanha anti-consonântica e anti-etimológica do ILTEC leva mesmo o Portal da Língua Portuguesa a eliminar palavras do léxico técnico-científico, como é o caso de ‘consumpção’, termo técnico da ciência jurídica que exprime uma situação particular, ideal ou real, do concurso de normas. Neste caso o p pronuncia-se, mas o vocábulo foi eliminado, consumido num vórtice de preconceitos pseudocientíficos.

5. Conclusão: a reforma ortográfica da Língua Portuguesa levada a cabo pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011(8) e que forçou — ilegalmente, na minha perspectiva — a entrada em vigor, em Portugal, do AO de 1990, nada trouxe de positivo à escrita da Língua Portuguesa, à didáctica do Português ou à forma como compreendemos e nos compreendemos diante da nossa língua milenar. Pelo contrário: as manifestas deficiências, incoerências, e até dislates científicos, do AO de 1990 e ainda mais das suas notas explicativas mancham indelevelmente este regime ortográfico e sobretudo os seus autores, como demonstrei à saciedade neste breve artigo em matéria de facultatividades. Mas a questão das facultatividades nem é o ponto mais grave: outros como homografia [tornando iguais palavras totalmente diferentes como espe[c]tador/espetador ou retra[c]tar/retratar, ente muitas outras], hifenização, incoerência ortográfica das famílias de palavras (como Egito/egípcio) perda de diacríticos absolutamente necessários — como o acento em «alto e p[a]ra o baile», devem levar ao repúdio, em bloco, do regime ortográfico actualmente em «vigor» e, como é óbvio, à sua revogação. A tudo isto acresce que o rotundo incumprimento do comando do artigo 2.º do AO — que manda elaborar um Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa — até 1 de Janeiro de 1993 — causará danos evidentes à terminologia técnica, científica e filosófica portuguesa e a todas as formas de utilização culta da língua.

Um só aspecto do AO é francamente positivo: é que o AO não é obrigatório! Na falta de uma norma equivalente à do artigo 3.º do AO de 1945, o AO de 1990 não tem força normativa fora das repartições e serviços oficiais. Os autores do AO acreditam tão pouco neles próprios que nem ousaram criar uma ortografia — foram afinal coerentes, na sua incoerência. Nem sequer viram que uma ortografia que não é obrigatória, não é ortografia… Uma lei que não se considera a si própria obrigatória não parece merecer grande respeito. E é com esta nota pessoal que termino estas breves notas críticas, que gostaria de dedicar a todos os que, em Portugal e no estrangeiro, resistem à nova ortografia: vou continuar a escrever e a publicar em português, em Portugal ou no estrangeiro, com a ortografia que considero correcta, que não é seguramente a do AO de 1990. É o que fazem em Portugal muitos escritores, jornalistas e editores, para já não falar de todos aqueles que, sem publicarem, fazem uma utilização quotidiana da língua: sigamos o seu exemplo de resistência e de coragem cívica.

José Paulo Vaz
Tribunal de Justiça

Jose_Paulo.Vaz@curia.europa.eu

(1) Portal da Língua Portuguesa — Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990: «Base IV: Das sequências consonânticas», [link].
(2) Portal da Língua Portuguesa — Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, [link].
(3) Portal da Língua Portuguesa — Acordo Ortográfico de 1945, [link].
(4) Câmara dos Deputados — Lei nº 2.623, de 21 de Outubro de 1955, [link].
(5) Portal da Língua Portuguesa — [link].
(6) Portal da Língua Portuguesa — Vocabulário Ortográfico do Português, [link]
(7) Portal da Língua Portuguesa — Lince: conversor para a nova ortografia, [link]
(8) Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, Diário da República, 1.ª série, n.º 17, 25.1.2011, 
[link].

[Transcrição integral de artigo de José Paulo Vaz n’ a folha, Boletim da língua portuguesa nas instituições europeias, n.º 40.]

[Nota: apesar de não ser muito recente, optámos por ainda assim publicar este texto, dada a sua relevância e pelo facto de praticamente não ter tido qualquer repercussão na Internet ou na imprensa desde a data da sua publicação original.]

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4 comentários

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  1. Magistral.

    • Hugo X. Paiva on 10 Fevereiro, 2013 at 23:33
    • Responder

    «ressentimento e delírio», em síntese.
    ……………..//………….
    Sublime.

    • José on 11 Fevereiro, 2013 at 17:31
    • Responder

    Muito bem! Mais um texto brilhante, pelo punho de José Paulo Vaz, contra o obscuro, confuso e criminoso AO. Sublinho a seguinte passagem, pois ela diz tudo sobre este delírio que nos querem impingir: “a simples possibilidade de eliminar o t em aritmética é uma demonstração aritmética de insanidade. No entanto, é esta insanidade que está prevista no AO de 1990”. Parabéns!

    • Maria José Abranches on 12 Fevereiro, 2013 at 18:28
    • Responder

    Um texto excelente: forte, assertivo, lúcido, bem documentado e solidamente argumentado! A contrapor às repetitivas inanidades brandidas pelos defensores do AO90.

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