«Império da língua portuguesa: ascensão e queda?» [António de Macedo, PÚBLICO, 28.01.2013]

publicoQuando Cristo foi crucificado por volta do ano 30/32 da nossa era, o Império Romano ocupava uma vasta área que abrangia desde a Ásia Menor até à Península Ibérica, incluindo a maior parte da Europa e todo o Norte de África. Com o correr dos tempos, e devido à inevitável vitalidade que as línguas têm como coisas vivas que são, o latim popular falado na Dácia acabou por se transformar no actual romeno, tal como o falado na Itália no actual italiano, na Gália no actual francês, na Hispânia no catalão, castelhano, galaico-português, etc., etc.

Durante algum tempo o latim da Roma originária manteve uma aparência de identidade sustentada, sobretudo desde que a Igreja o adoptou como língua eclesiástica e litúrgica antes do início da Alta Idade Média; mas mesmo esse foi sofrendo alterações ao ponto de um estudioso de latim clássico ter dificuldade em entender um texto em latim eclesiástico do século XII ou XIII, por exemplo.

Imaginemos que um folgazão dessas eras, insuflado de ideias “ortografistas”, se lembrava de tentar impor ao latim de Roma uma “grafia unificada” misturando, com as inerentes “facultatividades”, as formas do latim popular gaulês, dácio, lusitano, itálico… Só esta ideia tonta dá vontade de rir, e obviamente nenhum estudioso no seu juízo perfeito a consideraria, a menos que se tratasse de um escritor de ficção científica que inventasse uma novela de “história alternativa” passada num universo paralelo, onde esse caricato fenómeno tivesse ocorrido com todas as suas delirantes (e quiçá interessantíssimas) consequências.

Bom, tudo é possível no fantástico universo das ficções, e tal fantasia até poderia dar origem a um trepidante filme em 3-D com imaginosos efeitos especiais e outros truques que encantassem as plateias.

Ora, por muito estranho que pareça, é isso mesmo que estamos a viver actualmente: um delírio de “ficção científica alternativa”, por obra de uns quantos políticos que decidiram reescrever a nossa história linguística sem atender às naturais e progressivas diferenças por que vai passando uma língua-mãe ao expandir-se no mundo, e à medida que os anos e os séculos transcorrem.

Não é possível espartilhar uma língua viva num colete de forças artificial e grosseiramente político fingindo que a língua-mãe e as línguas-filhas se vão manter sempre iguais e agrilhoadas a um mesmo “acordo”, parido por um pequeno grupo de minicérebros demenciais que não entendem o que é o futuro e, dentro da sua pequenês, só vêem uma estreita nesga do presente.

Tal como o latim irradiou de Roma para o mundo, o português irradiou de um ponto preciso da Europa, Portugal, e, à semelhança do latim do Império Romano, foi-se instalando em diversas geografias e mesclando-se com as respectivas etnias, línguas aborígenes e culturas, e por conseguinte modificando-se diversamente, consoante as áreas em contacto. É uma lei natural e não há que fugir-lhe.

O português falado no Brasil, por exemplo, sobretudo popular, tende cada vez mais a tornar-se uma língua diferenciada, tal como o testemunha o extensíssimo reportório de textos do folclore brasileiro reproduzindo os falares de habitantes do interior do Brasil, em que o português, mesclado com os falares autóctones, se tornou língua própria de vastas e inúmeras comunidades.

Como será o português falado e escrito em Angola, no Brasil, em Cabo Verde, em Portugal, em Moçambique, etc. dentro de cem ou duzentos anos? Não sabemos nem é nossa competência sabê-lo e menos ainda adivinhá-lo. Que nos baste o bom senso de observar a realidade que nos rodeia e compreendê-la e saber respeitá-la nos seus múltiplos matizes e naturais mudanças, lidando cautelosamente com as especificidades das suas variantes e diferenças.

Ora, isto é tudo quanto há de mais contrário à arrogante e pretensiosa atitude do malparido Acordo Ortográfico que à força bruta quer impor um modelo de grafia sem nenhuma base lógica, linguística, sociológica ou meramente humana que o sustente, uma coisa sem pés nem cabeça que no fundo se pulveriza em vários modelos – e cito apenas dois, porque existem, continuam a existir e até aumentam as diferenças ortográficas entre Portugal e o Brasil (para somente citar estes dois casos), como se pode ver na bem fundamentada exposição da Carta Aberta que em 6 de Janeiro de 2013 foi enviada ao ministro da Educação. Lendo-a, arrepiamo-nos e continuamos a interrogar-nos como foi possível levar a cabo semelhante crime.

O que sabemos é que este “linguicídio”, como já lhe chamou com trágico humor a dra. Madalena H. Cardoso, foi perpetrado friamente desde os anos “80 por conhecidos e sonantes nomes da nossa política. Passos Coelho, sem nenhum senso crítico, limitou-se a vir pendurado na última carruagem deste sinistro comboio-fantasma, arrastando a alma linguístico-cultural portuguesa por um trilho de lamacento enxovalho logo trilhado sofregamente pela chusma de interesseiros e/ou bajuladores do costume que esperam sempre lucrar alguma coisa com o delito.

Vejam-se por exemplo os mais de 250 canais de TV que nos entram pela casa adentro todos os dias, e cujas legendagens de filmes e séries-TV chegam a desorientar de tão confusas que ficam. Sendo frases curtas, sem contexto literário, tornam-se por vezes num enigma: se vemos duas personagens a correr e uma diz para a outra: “Para aqui”, ficamos sem saber se lhe está a dizer que se dirija para aqui (movimento), ou que fique parada aqui (ausência de movimento). Com o maior à-vontade a mesma curta frase pode ter dois significados opostos.

Pobre língua portuguesa, esfrangalhada de uma maneira tão boçal como interesseiramente obscura.

Língua que já foi grande na sua ascensão, na pena de Gil Vicente, de Camões, de António Vieira, de Pessoa…

Consentirão os portugueses na sua queda, agora, por obra desta nova “invasão dos bárbaros” que tudo quer nivelar pelo nível mais baixo, menos nobre e mais rasteiro?

António de Macedo

Ex-cineasta, escritor, professor universitário

[Transcrição integral de artigo de opinião de António de Macedo no jornal PÚBLICO de 28.01.2013.]

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19 comentários

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  1. Como linguista, o Antònio de Macedo è um excelente cineasta…

    Mais um ignorante que confunde diferenças lexicais com separação linguìstica. Não sei por que não sò se permite que gente que não sabe do que fala publique as suas asneiras em lugares supostamente sèrios como ainda se encontre quem as reproduza.

  2. @ Rosa Bueno
    Parafraseando um rifão antigo, quem não tem cedilha caça com guê. Vossemecê aqui não caça, caga. Ora aponte lá as batarias aos que parecem combater a estucha becharesca aí pelo seu sertão, que esses — como o tal Hernâni sem agá (deve ser da humidade tropical) — cascam no acordo com fito de fazer cagada ainda maior. Guarde-se para isso, homem.
    Cumpts.

  3. Mais um lúcido texto de António de Macedo, que merecia ser reproduzido e posto a circular. E mais um texto para atirar à cara dos patetas que embarcaram nas tretas do indiano Malaca e de outros índios ocidentais… O Brasil é um país independente há 200 anos, teve uma evolução histórica, social e cultural diferente da nossa, e isso repercutiu-se na língua tanto falada como escrita. O Brasil é um mosaico de povos e influências e oxalá assim continue. Portugal é outro país, noutro continente, noutro contexto social e cultural. Cada macaco no seu galho, portanto. Começa a ser irritante ver e ouvir certos ‘sábios’ brasileiros darem lições de português (e não só) aos pais da língua… Com o deslumbramento e a conivência, cá, dos idiotas úteis do costume.

    • Maria Manuela Lopes Félix Costa on 29 Janeiro, 2013 at 0:38
    • Responder

    Estou totalmente de acordo com o que o António Macedo disse, perfeito! Há por aqui umas pessoas que o criticam, mas, além de não conhecer, não devem ser PORTUGUESES concerteza. É incrível, mas é real, há ceguinhos metidos por vezes em sítios que duvidamos como lá foram parar… — Gostei mesmo muito do que o Sr. escreveu A.Macedo parabéns, é assim que me sinto também, obrigada. Cumprimentos

  4. Para: Bic Laranja, José, Maria Manuela Lopes Félix Costa:
    Muito obrigado pelas boas palavras de apoio e incentivo. Todos somos poucos para vencer a pesadíssima inércia dos portugueses, que são contra o AO90 mas se limtam a “ser contra” e ficam-se por aí.
    Veja-se esta impressionante e elucidaiva estatística-sondagem:
    https://www.facebook.com/questions/214510845276359/
    Não seria óptimo se os mais de 63 mil que clicaram contra o AO90, tivessem subscrito e enviado o texto da ILC?

  5. Até começou e inicialmente desenvolveu-se bem. O final denuncia-se colonialista, xenófobo e arrogante. Os mentores e articuladores do acordo foram incapazes de se livrar do colonialismo, da xenofobia e da arrogância também, razões que determinam a esterilidade tanto do movimento como das discussões em torno das maneiras de se escrever em Português. Em cada lugar existe uma força viva a comandar a fala e a escrita em benefício do entendimento que é para o entendimento que a língua serve, na Nazaré ou no Porto, no Brasil ou em Timor, nos Açores ou na Madeira. Quem continuar a preferir julgamentos ao entendimento, nunca verá que os excluídos da educação jamais poderão escrever como os privilegiados que têm acesso a ela e dão-se ao luxo de gastar rios de dinheiro para nada. E afinal, quem são os educados ou mal-educados de amanhã?

  6. Para nao falar que o google translate agora dá prioridade às palavras “brasileiras” do que às palavras portuguesas… é mais uma facada na morte lenta da lingua portuguesa… Vejam este blog de screenshots do google translate http://viva-o-acordo-ortografico.blogspot.com/

    • Jorge Teixeira on 29 Janeiro, 2013 at 18:38
    • Responder

    Microsoft, Google, Sun, etc., usam desde sempre a seguinte matriz de linguagem nas questões referentes a internacionalização e tradução dos seus produtos e respectivas interfaces gráficas:

    pt: Português do Brasil
    pt-BR: Português do Brasil
    pt-PT: Português de Portugal

    Para resumir uma história muito comprida, a língua cujo código é pt corresponde ao Português do Brasil. A variante regional de Portugal (pt-PT) é o Português de Portugal.

    Para resumir uma história ainda mais comprida, no caso do Google, quando o browser de um PC configurado para Português de Portugal envia um pedido, esse pedido vai identificado como preferindo resultados em “pt-PT”. O que acontece é que a Google não tem nenhum programa de tradução para “pt-PT”. Como tal, segue o algoritmo standard nestas coisas e diz “ok, não tenho estava variante regional mas ofereço a língua principal, a pt”. Acontece que pt é o Português do Brasil.

    Isto não é uma característica apenas do Google translator. Infelizmente, isto é o comportamento standard da generalidade do software.

    • Lúcia Vaz Pedro on 30 Janeiro, 2013 at 14:57
    • Responder

    Lamentável esta postura retrógrada e ignorante. A própria língua evoluiu ao deixar de pronunciar algumas consoantes mudas, não articuladas. Se assim não fosse, continuaríamos a utilizar as duplas consoantes em palavras como ‘abbade’ ou ‘agglutinar’ ou ‘céllula’.
    Os arcaímos são fruto dos que se recusam a aceitar a mudança, porque, para o fazer, tem de se estudar. E isso é complicado, principalmente para os pseudo-inteligentes que falam do latim. Estudei o latim durante 5 anos e, mesmo assim, recuso-me a ser um velho do Restelo. Estudai, senhores do templo. O tempo dos dinossauros já passou!

    • Bento (Galiza) on 30 Janeiro, 2013 at 18:52
    • Responder

    É lamentável que os mutiladores da língua, os acordistas acérrimos, a falta de argumentos, nos venham cospir aqui os seus insultos, menosprezos e tergiversações, além de umas doses de demagogia insuportáveis que não resistiriam uma mínima análise dialéctica. A senhora Lúcia, com esses pseudoargumentos, está-nos a dizer que línguas de cultura como o inglês e o francês são próprias do tempo dos dinossauros por serem bem mais respeitosas do que a nossa com os étimos latinos e por conservarem muitas letras que não se pronunciam. E o de dizer que não se quere aceitar a mudança por ter de estudar já é a súmula do cinismo, pois o acordismo é a concretizaçom, na ortografia, das teorias de ensino facilistas que pretendem eliminar todo e qualquer esforço do aprendizado e cujo epítome neste âmbito é “há que escrever como se fala” ou qualquer despautério semelhante. Continue a senhora com os seus dislates e os seus desprezos, a falta de qualquer argumento para contestar os nossos.

    • Maria José Abranches on 30 Janeiro, 2013 at 19:15
    • Responder

    Boa resposta, Bento da Galiza! A saloiice e a ignorância destes adeptos da mudança, só porque é mudança, é insuportável! Aposto que nem leram o AO90 nem a respectiva Nota Explicativa (Anexo II), porque dá realmente trabalho ler, analisar e avaliar o significado e as consequências desse “portento do saber linguístico” (!!!), asperamente denunciado e criticado pelas mais diversas personalidades e instituições credíveis e respeitáveis!

  7. Uma didascália ao comentário assinado por Vera:
    as duplas consoantes foram aprendidas e aplicadas pelas gerações que nos antecederam. Foram tempos de grandes nomes que levaram a nossa cultura além fronteiras. Grandes tempos de referência!
    O que a sua tola argumentação está a dizer, sem o saber porque não entende, é que as tolices dos promotores e assinantes do “aborto” não têm inteligência para aprender o valor dessas indefesas letras assassinadas no passado. Aprenderam mal as palavras e ficaram ressentidos. É tão lógico. Já reparou que quem entende as voltas da Português não foi convidado para fazer o trabalho? Claro! O negócio não tinha sido realizado.

    E o seu comentário disse tudo. Sempre que um tolo defende o crime que partilha, mais denuncia a tal tolice, que corre em busca de modas para dar nas vistas. Já agora uma sugestão: leia os Maias de Eça de Queiroz e reveja os tolos em Dâmaso. Se possível leia uma edição com duplas consoantes e veja se entende a falta que essas letras lhe fazem. Mas os Dâmasos de agora ainda são menores de cérebro, porque não sabem que o nosso irmão Francês, por exemplo, se orgulha muito das suas grafias. Acredite que algumas não são fáceis para os estrangeiros, mas eles não mutilam raízes para não derrubarem a árvore.

    São tão desprovidos de senso os comentários falados e escritos dos que destroem a Pátria-que é a Língua Portuguesa, que nem argumentação merecem!

    • Maria Miguel on 31 Janeiro, 2013 at 17:07
    • Responder

    Senhor António de Macedo, quero, de novo, aplaudi-lo!
    O seu artigo revela inteligência, sabedoria e sentido de Pátria!
    O Senhor é cineasta e linguista ou vice-versa… Mas será impossível concretizar a primeira qualidade sem o conhecimento expresso e oculto das palavras que se utilizam.
    Fico sempre à espera de mais!
    Obrigada

    • Jorge Teixeira on 1 Fevereiro, 2013 at 12:21
    • Responder

    Não se deve alimentar os trolls, por isso é provável que me arrependa de escrever este post. Mas sugiro que há pessoas que precisam de estudar o código de leitura e escrita do Português antes de defender o AO90.
    Vou usar para exemplo uma palavra de uso habitual pelos “professores” do AO90: “letivo”.

    Como se lê “letivo” em Português? Lê-se: le-ti-vo.
    Em “letivo” a sílaba “le” não é tónica segundo as regras de leitura do Português. Para a sílaba “le” ser tónica a escrita teria de assumir uma das seguintes formas:
    – “létivo”
    – “lectivo”
    – “leptivo”
    – “lehtivo”
    Qual a forma correcta? Bem, se não nasceu ontem, sabe que é “lectivo”. Porquê? Porque é a forma escrita que corresponde à evolução da língua. Teoricamente poderia ser uma das outras, mas as línguas não se restringem às regras de leitura e escrita. No entanto, também não se pode fugir às regras de leitura e escrita, e “letivo” será sempre pronunciado le-ti-vo.

    Se o AO90 passar a ser aplicado, não demorará muito para que as palavras comecem a ser pronunciadas como são escritas.
    A transformação está já a ocorrer. Os locutores de rádio e televisão já hoje vocalizam “a-ção” e “a-do-ção” e hesitam na “espétativa” e no “espétador”. Não tardará muito para que digam tudo correctamente “a-ção”, “a-do-ção”, “es-pe-ta-ti-va” e “es-pe-ta-dor” porque efectivamente é assim que se lê.

    • Jorge Teixeira on 1 Fevereiro, 2013 at 12:24
    • Responder

    Só para acrescentar que eu nunca conheci ninguém que pronunciasse “espétativa” e não “expectativa” e “espétador” e não “espectador” antes de aparecerem textos “escritos” em AO90.

    • Paula Braga on 3 Fevereiro, 2013 at 0:58
    • Responder

    Letivo: a silaba tónica e “ti”. Meu deus, aprendam antes de criticar. Eis a ignorância dos que criticam o AO. Estudem! Valha -nos deus, nao percebem nada disto.

    • Jorge Teixeira on 3 Fevereiro, 2013 at 16:19
    • Responder

    É de facto um erro alimentar os trolls. Mas não faz mal, a ignorância nota-se.

    • hippie on 3 Fevereiro, 2013 at 23:54
    • Responder

    @Paula Braga
    deus em minúsculas, AO em maiúsculas.
    Arrôto
    Ortográfico.

    enfim, são gostos.

    • Rui Miguel Duarte on 16 Fevereiro, 2013 at 14:53
    • Responder

    Cara LVP: velho do Restelo é um elogio. Ou não leu Os Lusíadas para o perceber? Pela parte que a mim e a outros nos toca, ficamos honrados com com tal comparação.

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