«Desacordo» [Abel Neves, PÚBLICO, 15.01.2013]

Publico_AbelNeves-15Jan2013Não tenho armas afiadas para entrar nesta batalha, e sou fraco, mas cá vou. Este texto breve não é de ciência nem de sabedoria académica. Não poderia sê-lo porque, simplesmente, não sou nem cientista nem académico. Convivo em desacordo com o Acordo Ortográfico do Inverno de 1990 e não é tanto pelos espectadores passarem a ser espetadores ou os actos se mudarem em atos ou o Egipto passar a ser Egito. No português daqui – a geografia é bela – o Egipto sem pê é como sacar o deserto aos faraós. Surripiar o pê do Egipto é quase antiestético. Deixem-me gostar e escrever o Egipto como sempre foi para mim. É que não sinto que a Língua esteja a querer mudar o seu aparato escrito só porque uns tantos trouxeram a necessidade de lhe padronizar algumas formas para que, à leitura, o lusófono de uma praia em Cabo Verde esteja apreendendo exactamente o mesmo que um outro lusófono nas vielas de São Paulo ou no escadório do Bom Jesus em Braga. A unificação talvez seja melhor para as empresas e congressos que arrastam a Língua nos seus comércios – supondo que haja preguiça para ler as mesmas palavras escritas com diferença – mas a verdade – sejamos honestos – é que, seja onde for, os lusófonos apreendem exactamente o mesmo com a mesma palavra grafada com distinção. Pelo visto, e lido, serão poucas as palavras a suprimir, por exemplo, no caso da extinção das consoantes não pronunciadas. Diz-se que pouco mais de seiscentas num universo de cento e dez mil. É o receio anunciado da desagregação ortográfica? Não será preferível defender a singularidade, a riqueza da língua, em vez do propósito da unicidade?

Não sou da época em que se escrevia ‘theatro’ ou ‘choreographia’ ou ‘auctores’ e ‘escriptores’ ‘distinctos’ com as suas ‘phrases’. A cena era ‘scena’ e o ‘scenario’ mostrava-se com os seus ‘pannos’. Há cem anos ‘applauso’ tinha dois pês e nada garante que não venha a recuperar o pê perdido daqui a outros cem se se entender que o reforço do pê na pronúncia deve estimular na escrita a sua vibração. Aqui e acolá, a escrita vai mudando, sim, a língua, falada e escrita vai-se refrescando e recompondo com os climas e os modos de ser das gentes que se dão ao gosto de trocar as voltas às palavras, aceitando-as no sabor das falas, no alinhamento das páginas, e, clarinho como a água, a Língua com os seus dizeres de voz e ortografias mudará sempre que lhe apetecer porque a Língua é um dragão vivo e anda ao ar, mas conservá-la com as suas diferenças e, sobretudo, longe dos impulsos mexeriqueiros de uma certa política, é o que parece mais sensato.

A favor ou contra o Acordo, os gramáticos terão bons argumentos para dar continuidade às regras de uma Língua e estaremos simpáticos com uns ou com outros. A Língua, porque não é morta, é que parece continuar aquém ou além das argumentações, mas certo é que as leis impõem acertos, preservações ou aceitação de desvios, podendo vencer um propósito em função de interesses pouco linguísticos. É só um pensar também ele nada científico ou académico.

No abrigo onde estou – no teatro e na literatura – é-me fácil conviver com o Acordo e o motivo é simples: é aceitável que os dramáticos e os ficcionistas mantenham os delírios da língua. Continuarei a escrever como mais ou menos vou sabendo, sem a letra do Acordo. A Língua continua acordada, e bem. Não serei preso por isso, mas… e a leitura por aí? E os que terão de escrever sem a crença ou o gosto das novas regras, afinal não muitas e parecendo pãozinho sem sal? Estar em desacordo permite-me também estar simpático com quem não quer abusar-se com o novo uso ortográfico… fora d’horas, isto é, fora de uma boa oportunidade que poderá imaginar-se para um dia com outras e bem melhores propriedades.

Pode ser mesmo que haja pouco a considerar no item da conservação ou supressão das consoantes mudas – ou o que não se pronuncia não se escreve – porque se lê que muito do que está é para ficar. Então por que não se deixa em paz o pouco que não se pronuncia mas que se lê? E o que dizer sobre a supressão ou a manutenção do hífen? Um caso ou outro que se altera? Alfabeto com 26 letras? Está bem, venham de lá o capa, o dáblio e o ípsilon, e vamos adiante.

A sensação que dá o Acordo é o de ter de vestir-se uma farda que pode nem alterar muito a figura, mas até também por isso mesmo não valha a pena usar-se por desfigurar o corpo firme, estabelecido e sem vantagem na alteração. A não ser, claro, por obscuros motivos que a ingenuidade não consegue descortinar. Próximo de ser ingénuo, abdico de procurar as tão nobres razões que norteiam a defesa do Acordo. As trinta e poucas páginas do documento talvez esclareçam pela sua linguagem naturalmente técnica, científica e, por tal, arrumadora. Eu cá, ignorante como sou das certezas linguísticas, fico carregado de dúvidas e a pensar se tudo isto não será, simplesmente e afinal, um factor de perturbação.

E por via das dúvidas, vale a pena subscrever a Iniciativa Legislativa de Cidadãos, ILC. Aqui: cedilha.net/ilcao

Abel Neves

Dramaturgo e escritor

[Transcrição integral de artigo de Abel Neves no jornal PÚBLICO de 15.01.2013.]

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1 comentário

    • Hugo X. Paiva on 16 Janeiro, 2013 at 4:18
    • Responder

    Morno!

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