«Processo Retro-ortográfico Sem Curso» [Octávio dos Santos, PÚBLICO, 26.12.2012]

artigo Octávio[…]

… O maior dos quais é, obviamente, o denominado “Acordo Ortográfico de 1990”. Seria de perguntar a todas as centenas, a todos os milhares que grita(ra)m nas ruas contra as decisões do actual Governo se também… escrevem contra a (continuação da) aplicação do AO90 — uma decisão específica, concreta, daquele. Seria de perguntar a todos aqueles que, sem qualquer noção do ridículo de que se cobrem, se insurgem contra a (eventual) privatização da RTP e/ou alienação de um dos seus canais, classificando tais hipóteses como “inconstitucionais” ou “sem igual em toda a Europa”, se não consideram igualmente, e mais ainda, contra a constituição — a da “República Portuguesa” ou qualquer outra — e indigna de uma nação do Velho Continente a alteração leviana de algo tão básico na identidade, na estrutura, na actividade de um país como o é a ortografia, alteração essa que se traduz num autêntico “Processo Retro-ortográfico Sem Curso”.

Enfim, é de perguntar a todos aqueles que sugerem, ou acusam mesmo, os actuais governantes de serem “fascistas” e que os ameaçam com hipotéticos golpes militares, se: antes de mais, sabem ou se lembram como é que era, e o que implicava, o verdadeiro fascismo, mais concretamente a sua versão portuguesa salazarista-marcelista; e se eles próprios exercem o mais básico acto de antifascismo que é… não escrever segundo o “aborto pornortográfico”. Que é, mesmo, neofascista e neocolonialista; os seus criadores, os seus proponentes e defensores são, mesmo, neofascistas e neo-colonialistas. Quem tem dúvidas pode dissipá-las ouvindo Fernando Cristóvão numa entrevista concedida em 2008, que esclarece o que pensam os “acordistas” sobre o processo legislativo num regime democrático — em que, supostamente, as leis não são dogmas nem mandamentos, e, logo, são alteráveis e revogáveis — e a independência, a soberania — cultural e não só—dos países africanos de língua oficial portuguesa: “(…) Porque é que Angola também não há de ter uma ortografia diferente? E porque é que Moçambique qualquer dia não…? E a Guiné, lá por ser pequenina, não há de ter uma ortografia? Onde é que nós vamos parar? (…) O acordo tem de se fazer porque nós temos duas ortografias, não podemos continuar assim, e a continuar assim qualquer dia temos cinco ou seis. Qual é a língua que resiste a tanta ortografia? [O Francês, que tem 15, e o Inglês, que tem 18!] (…) Confesso que, perante a urgência de haver uma ortografia unificada, eu não entendo como é que há tanta teimosia em querer emendar uma coisa que ainda por cima é uma lei. (…)”

Depois disto, ainda acreditam em “25 de Abril sempre?” E escrevem “Abril” com “A” maiúsculo ou minúsculo?

Octávio dos Santos

[Transcrição parcial de artigo de opinião da autoria de Octávio dos Santos. In “Público” de 26.12.12. “Link” não disponível.]

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3 comentários

  1. Là vamos nós de novo: não sei quantas ortografias terá o inglês, parece-me que uma só, com diversas grafias variantes de vocábulos isolados (em todo caso, menos do que entre PB e PE). Mas vá lá, admitamos que tenha dezoito, que seja.

    Já o francês, não há a menor dúvida: tem uma só ortografia, ditada com mão de ferro pela Académie Française, que determina até como há de ser feita a tradução de vocábulos estrangeiros de uso corrente.

    • Maria Miguel on 27 Dezembro, 2012 at 21:26
    • Responder

    Agradeço ao autor deste texto (que muito admiro pelo seu trabalho) a energia e a justiça com que expõe o anedótico assunto que está a contribuir para um rol de
    erros e confusões sem igual.

    Uma tomada de posição a sério está a tardar!
    E se Angola comprar a RTP e outros média o que irá acontecer?
    E a maior parte dos portugueses ficará sem saber o que esteve na base do disparate?

    • Hugo X. Paiva on 28 Dezembro, 2012 at 3:38
    • Responder

    Mário A. Perini, a Brazilian linguist, has said:

    “There are two languages in Brazil. The one we write (and which is called “Portuguese”), and another one that we speak (which is so despised that there is not a name to call it). The latter is the mother tongue of Brazilians, the former has to be learned in school, and a majority of population does not manage to master it appropriately…. Personally, I do not object to us writing Portuguese, but I think it is important to make clear that Portuguese is (at least in Brazil) only a written language. Our mother tongue is not Portuguese, but Brazilian Vernacular. This is not a slogan, nor a political statement, it is simply recognition of a fact…. There are linguistic teams working hard in order to give the full description of the structure of the Vernacular. So, there are hopes, that within some years, we will have appropriate grammars of our mother tongue, the language that has been ignored, denied and despised for such a long time.”

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