“A Caminho (de lado nenhum)” [carta de Rocío Ramos à Ed. Caminho]

meuselonAO1De: Rocío Ramos
Para: Editorial Caminho (Leya)

Bom dia,

Chamo-me Rocío Ramos, sou espanhola e faço parte do (cada vez maior) número de pessoas que são contra o AO90. Aliás, estou integrada no grupo de pessoas que trabalham na ILC contra o tal Acordo.

Escrevo-vos sabendo que nada vou solucionar com isto mas apenas para desabafar e para que fiquem conhecedores do meu enfado.

Um dos motivos (o principal deles) de eu começar há 10 anos a estudar Português foi o desejo de ler a obra de Saramago na Língua na qual ele escrevia. Poderá parecer uma razão estranha (já me disseram isso muitas vezes) mas, para mim, é tão válida (ao menos) como qualquer outra.

Tenho (e li) quase todos os livros de Saramago em Castelhano mas me faltam ainda bastantes em Português e … não é que cada vez mais fico na ideia de já não os conseguir todos?

E isso porque os senhores têm a grande sorte de vender muito. É claro que a obra de Saramago e ele próprio merecem que assim seja (para mim é o maior escritor português de sempre, que me desculpem Camões, Eça, Pessoa…) mas o vender muito faz com que as edições em Português sejam cada vez mais difíceis de encontrar nas livrarias sendo substituídas pelas escritas em “acordês”. Quer dizer: é difícil encontrar edições anteriores à vossa adesão ao AO90.

A Caminho deve estar a par da forte oposição que sempre houve ao AO90, parece até que o Brasil vai adiar a entrada em vigor do Acordo até 2016 e ninguém, mas é que mesmo ninguém, é capaz de perceber a asneira que o AO representa uma vez que não serve nem para uma única das coisas que era suposto servir, muito menos para aquela que se supunha ser a mais importante: a “unificação” do Português escrito (chamam unificar a criar milhares de duplas grafias mais das que já existiam?!) Até dava para rir se o assunto não for tão sério.

Eu posso entender os autores e editoras que vendem pouco. Eles/elas pensam, erradamente, que se todos escrevem/publicam numa única variante de Português “abrirão mercado” e os livros vender-se-ão mais e melhor. Santa ignorância!! Mas… e os autores e, sobretudo, as editoras (como a Caminho) que vendem livros aos milhares? Que desculpa têm para terem sido tão rápidos a aderir um Acordo contrário à riqueza cultural e patrimonial de Portugal?

Sei que Saramago não se importava muito na altura com o AO90. Mesmo sem gostar parece que o aceitava com resignação (coisa estranha, ao menos para mim, vinda de um homem que nada tinha de resignado perante as injustiças e os erros de todo tipo). Não sei o que ele pensaria hoje, após este tempo de semi-implantação do AO e após ver o nefando resultado de dita implantação. Duvido que continuasse resignado mas isso, claro, é apenas conclusão minha (que gosto de honrar a memória dele). O que é verdade e pode ser confirmado é que a editorial Caminho traiu a Língua portuguesa.

O Raimundo Silva da “História do cerco de Lisboa” quis escrever um “NÃO” que teria mudado a História… A Caminho devia ter tido a coragem de esquecer os interesses económicos e dizer “NÃO”, alto e bom som, a este infame Acordo Ortográfico.

Continuarei, é claro, à procura dos livros de Saramago que me faltam escritos em bom Português ou então, ficarei à espera de que o AO90 seja revogado para comprar as edições futuras que venham a publicar de volta à escrita correcta.

Cumprimentos,

Rocío Ramos

[Cópia recebida por email, envio CC para ilcao@cedilha.net.]

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13 comentários

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    • Isabel Coutinho Monteiro on 17 Dezembro, 2012 at 18:14
    • Responder

    Parabéns a Rocío Ramos. Se alguém pensa que são poucos os leitores a actuar como ela, desenganem-se. Eu também me recuso a comprar os livros que andam por aí a ser publicados em “acordês”. Tenho praticamente todos os livros de Mia Couto e Saramago, mas deixei de comprar os livros mais recentes destes autores desde que os acordizaram. Espero poder vir a adquiri-los um dia.

    • Maria Miguel on 17 Dezembro, 2012 at 19:11
    • Responder

    Parabéns, de novo, Rocío!

    • Pedro Marques on 17 Dezembro, 2012 at 19:42
    • Responder

    Pode procurar nos Alfarrabistas. Pode ser que tenham os livros que pretende. Quanto ao facto de o Saramago se ter deixado levar pelo acordo, o facto é que não foi o acordo, mas sim a jornalistazinha de meia tigela com quem ele casou que lhe fez mal.
    Obrigado por continuar a combater connosco este acordo nefasto para a língua portuguesa. Também queria acrescentar que este acordo não foi criado com as finalidades que se lhe conhecem, mas para estupificar mais o povo, e para nos vergarmos ao Brasil…

    • Ricardo Raposo on 17 Dezembro, 2012 at 20:04
    • Responder

    Ainda há poucos dias ia comprar o livro de culinária mais recente do Jamie Oliver e vi que estava escrito com o (des)acordo. Recusei o livro e comprei uma edição anterior, escrito em Português correcto. Deixei isso expresso ao balcão da Leya do Rossio (Lisboa).

    • Jaime Branco on 17 Dezembro, 2012 at 20:15
    • Responder

    Também felicito Rocio Ramos! Não consigo conceber que tamanha injúria, tamanha afronta tenha sido cometida sobre um valor e um património reconhecido internacionalmente: a Língua Portuguesa. Mia Couto nunca disse que era a favor ou contra, disse apenas que as pessoas habituam-se a tudo e ele, quando escreve, tanto pode ser com ou sem AO, depende do que lhe sair. Não se preocupa. Sinceramente, esperava bem mais do Emílio! Já Pepetela (angolano de origem portuguesa), aquando da sua vinda a Portugal há vários meses, e questionado por uma das nossas doutas televisões, foi o que se esperava. Disse ele: Acordo Ortográfico? Não sei nada disso e não estou minimamente preocupado! Escreverei SEMPRE como aprendi, nada vai mudar na minha forma de escrever!
    Coloca-se a questão: as Editoras (as maiores beneficiárias desta “negociata”) terão a liberdade de alterar, por exemplo, novos livros de autores que prefiram escrever como o Ricardo Araújo Pereira, que na Visão, no final da sua crónica semanal, aparece sempre o seguinte : Ricardo Araújo Pereira escreve de acordo com a antiga ortografia. E se o autor nada disser, a Redacção tem autoridade para alterar?? Sinceramente, não sei!
    Todos sabemos que as línguas evoluem, vão-se modificando, mas como sempre aprendi, alteram-se por influência dos falantes, lentamente e naturalmente. Sim, é desta forma que se vão alterando, não por Decreto político-governamental!
    Se a Caminho ou quem quer que seja estiver interessado(a) em ler Os Lusíadas publicados em 1870, posso facultar a obra…e confrontar-se-ão com as modificações ocorridas Naturalmente, Lentamente e por influência de quem falava Português naquela época e o que foi sendo modificado até 2012!!
    Curiosidade : neste momento, Portugal é o ÚNICO país da lusofonia a utilizar o inconcebível AO. No mínimo…estranhíssimo!!!

    • Hugo X. Paiva on 17 Dezembro, 2012 at 22:01
    • Responder

    Acerca de Mia Couto:http://ilcao.com/?p=6518#comments

    • Hugo X. Paiva on 17 Dezembro, 2012 at 22:08
    • Responder

    Sarmago:http://educacao.uol.com.br/ultnot/2008/02/26/ult105u6258.jhtm

    • Basilio Ramos on 17 Dezembro, 2012 at 22:32
    • Responder

    Saudo o comentário desassombrado desta Sr.Espanhola que pede messas a essas Portuguesas que se vão escondendo não fazendo o comentário que se impunha contra este vil acordo que pelos vistos só nós continuamos usar.Lamentável.

    • Maria José Abranches on 17 Dezembro, 2012 at 22:44
    • Responder

    Obrigada, mais uma vez, Rocío! É de gente assim, vertical, que esta nossa sociedade está cada vez mais carenciada! Também eu descobri, com uma imensa alegria, uma após outra, as obras de Saramago. Mas a “Claraboia” (palavra que não conheço…) não vou ler certamente, a menos que surja uma edição com a ortografia correcta! É uma vergonha usarem o único prémio Nobel da língua portuguesa, já desaparecido, para vulgarizar o AO90, o maior atentado jamais perpetrado contra o Português de Portugal!

    É uma maçada ter de folhear os livros, as revistas, etc. (quanto aos jornais já conhecemos os traidores!) para verificar se estão ou não com a “ortografia pateta” (vd. Graça Moura)… É que eu não compro, nem leio, nem vejo, mesmo “online”, nada que esteja mal escrito! E as televisões nacionais com escrita “apatetada” também não vejo! Não se perde nada, aliás!…
    Acho mesmo que é um insulto ao destinatário oferecer livros em “acordês”, por isso, neste Natal convém estarmos atentos!

    • Pedro Marques on 18 Dezembro, 2012 at 2:10
    • Responder

    Maria José Abranches esteja atenta às citações de autores como Camões, ou Fernando Pessoa pela internet e verá que são tão graves como a que falou do Saramago.
    Jaime Branco o Região de Leiria altera mesmo os textos dos autores.

    • Jorge Teixeira on 19 Dezembro, 2012 at 11:44
    • Responder

    Do que me lembro o ponto de vista do Saramago era de que, atendendo à idade dele, quando o AO90 estivesse em vigor ele já estaria morto, e que depois da sua morte as pessoas fizessem o que entendessem. Podemos ou não concordar com o seu ponto de vista, mas não é um apoio ao AO90. É apenas o ponto de vista “os portugueses são malucos e não a vale a pena perder tempo com eles”.

    • Alexandre Vieira on 14 Janeiro, 2013 at 23:49
    • Responder

    Tenho feito exactamente o mesmo que a Rocío Ramos. Agora, sempre que me dirijo a uma livraria e encontro um título ou títulos que me interessam, faço uma breve análise ao texto. É muito simples: se estiver em “acordês”, não compro. Recuso-me a financiar editoras que capitularam perante semelhante aberração.
    Tal como já foi dito no início desta caixa de comentários, se todos os leitores (potenciais clientes, portanto) em desacordo com o AO 90 seguirem o mesmo princípio sempre que se lhes depare um livro em “acordês”, o efeito junto das editoras não tardará a fazer-se sentir. É apenas mais uma forma de pressão, eficaz e cirúrgica qb.

  1. Acho hilariante esta parte do que escreveu Saramago:

    “Para o Nobel, é importante decidir “o que se quer”, frisando que a língua portuguesa “não é condenada à situação do húngaro, [idioma] fechado em fronteiras de onde não consegue sair”.”

    A sério, o húngaro?

    O László Krasznahorkai, entre 2006 e 2013, teve 4 novas traduções para inglês; o Peter Nadas, 3; o Imre Kertész, 5; o Sandor Marai, 3; o Péter Esterházy, 2; o Frigyes Karinthy, 1; a Magda Szabó, 1; o Antal Szerb, 4; até o Gyula Krudy, que faleceu em 1933, conseguiu 3 traduções nesse período. Nada mal para uma língua que não consegue sair das suas fronteiras.

    E os grandes escritores da língua portuguesa vivos, entre 2006 e 2013, foram traduzidos para inglês quantas vezes?

    O Mia Couto, 5 vezes – este está de parabéns, mas será que os outros conseguem manter o ritmo? O, Ondjaki, 2; mas o pobre Pepetela, 1 só; o Agualusa, à boleia do Independent Foreign Fiction Prize, 4, mas nenhum desde 2010, a magia gastou-se depressa com ele. Se acrescentarmos o Luandino Vieira, a Ana Paula Tavares, a Paulina Chiziane, a o Arménio Vieira, a Conceição Lima, e o Germano Almeida, conseguimos melhorar a média africana? Ah, olha só, 0 para todos.

    E no Brasil? O grande Ferreira Gullar, 0; o medíocre Dalton Trevisan, 0; o excelente Rubem Fonseca, 2; Nélida Piñon, 1; João Ubaldo Ribeiro, 1.

    E cá por casa? A Agustina, considerada por Luiz Pacheco superior a Saramago e Lobo Antunes, tem exactamente 0, ou, como diriam os ingleses, fuck all; o Lobo Antunes, 5; Gonçalo M. Tavares, 4; o Vasco Graça Moura, 0; João Tordo, 0; o José Luís Peixoto, 3; a Lídia Jorge, 0; a Teolinda Gersão, 1; o valter hugo mãe, 0.

    Portanto, toda a lusofonia combinada, três continentes, todos os grandes laureados do Prémio Camões vivos, não conseguem melhor do que uma língua falada por 15 milhões. E o AO90 vai mudar este tétrico panorama como? Pagando aos estrangeiros para lerem os nossos autores?

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