Carta de António de Macedo ao Primeiro-Ministro


Para: Gabinete do Primeiro-Ministro
Data: 12 de Dezembro de 2012
Assunto: Orgulhosamente…?

Exm.º Senhor
PRIMEIRO-MINISTRO

Tomo a liberdade de vir junto de V. Ex.ª para abordar, pela segunda vez, a questão do ruinoso Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) que nos vem assolando devastadoramente e provocando o mais que óbvio e gritante descalabro em áreas tão sensíveis como o ensino, a cultura e a comunicação social, para apenas citar as mais visivelmente afectadas.

Na Audiência Parlamentar de 12 de Julho de 2012, concedida a representantes de uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o AO90, a Senhora Deputada Conceição Pereira (PSD) asseverou que a língua portuguesa representa o nosso mais rico património, e reconheceu que a aplicação do AO90 constitui uma temática fracturante na sociedade portuguesa.

Ora, a sociedade portuguesa atravessa uma fase crítica de várias situações fracturantes, como V. Ex.ª sabe melhor que ninguém, para que precisemos de mais uma que tão profundamente afecta a nossa identidade linguístico-cultural, ou seja, a língua portuguesa tal como é falada e escrita em Portugal — património de valor inestimável cuja bárbara adulteração privaria a Europa e o Mundo de um elemento básico fulcral, identificativo de um país a quem o mundo tanto deve pelo que desvendou ao longo da saga dos Descobrimentos, com suas inúmeras consequências científicas, culturais e sociológicas. Sem esquecer, que de todos os países de língua oficial portuguesa, foi Portugal o primeiro e único a receber o Prémio Nobel de Literatura, pela pena de um português que não precisou do descabeçado AO90 para escrever e publicar a sua prestigiadíssima obra.

No dia 13 de Maio de 2010, dia de Nossa Senhora de Fátima, V. Ex.ª pediu desculpa aos Portugueses pelo erro de ter apoiado o Governo de então, de José Sócrates, em medidas que tinha a consciência de não virem a ser bem recebidas. É uma atitude bonita e rara num político, Senhor Primeiro-Ministro, e que só o dignifica: reconhecer perante o seu próprio povo que errou. Como disse Séneca, e mais tarde repetiu Santo Agostinho, errar é humano — mas perseverar no erro é diabólico.

Instantemente lhe solicito, Senhor Primeiro-Ministro, que não persevere no erro e afronte a raiz de todos estes males, extirpando-a urgentemente com a dignidade e a frontalidade do alto cargo que ocupa. Basta ouvir a voz de todos os Ministros signatários da Declaração Final da VII Reunião dos Ministros da Educação da CPLP, de 30 de Março de 2012, onde eles dizem claramente que «a aplicação do AO90 no processo de ensino e aprendizagem revelou a existência de constrangimentos que podem, no futuro, dificultar a boa aplicação do Acordo», finalizando por reconhecer a importância de se proceder a um «diagnóstico relativo aos constrangimentos e estrangulamentos na aplicação do AO90».

As resistências em Portugal multiplicam-se. Alguns dos principais órgãos de comunicação social bem como conceituadas editoras, além dos mais prestigiados autores, recusam-se a aplicar as “regras” (?) do AO90, os sítios na Internet dedicados a este desastre e repudiando-o são incontáveis, e os desconcertantes episódios neles diariamente relatados revelam bem a extensão do caos que afecta e perturba professores e alunos e outros agentes da nossa cultura — o que só vem provar que o defeito não está numa mera fase de transição e de temporária falta de habituação, mas num grosseiro vício intrínseco, inerente às contradições e aos dislates internos de que padece o AO90.

O processo ainda está a tempo de ser travado, ou pelo menos suspenso, até se proceder à conclusão do diagnóstico preconizado por TODOS os Ministros da Educação da CPLP.

O Brasil, face às pressões das acções populares de protesto, adiou sensatamente a entrada em vigor do AO90 (quiçá sine die, se nos recodarmos da forma como agiu perante o Acordo de 1945), Angola e Moçambique não ratificam e continuam a escrever em português correcto, os outros países da CPLP, pelo que julgo saber, não dão mostras de grande entusiasmo pelo AO90… Em suma: ficámos lamentavelmente (teimosamente?) isolados no contexto da CPLP.

Um antigo antecessor de V. Ex.ª, também Chefe do Governo português, num discurso que proferiu em 18 de Fevereiro de 1965, perseverou no erro de ignorar as evidências e afirmou que prosseguiríamos «sem alianças, orgulhosamente sós».

Orgulhosamente sós?

O julgamento da História é implacável.

Já pensou, Senhor Primeiro-Ministro, na resposta que um dia, no futuro, dará aos seus netos quando lhe fizerem a incómoda pergunta sobre que espécie de herança cultural — nomeadamente a língua portuguesa falada e escrita em Portugal — V. Ex.ª consentiu que se legasse às futuras gerações?

Esperançado na boa compreensão e na decisiva acção de V. Ex.ª, permito-me subscrever-me,

Com os meus melhores cumprimentos.
António de Macedo

Ex-cineasta, escritor, professor universitário
Doutorado em Sociologia da Cultura (FCSH-UNL)

«Mensagem enviada ao Primeiro-Ministro, em complemento da que lhe enviei em 13 de Junho de 2012

[“Post” do autor na rede social “Facebook”. Recebido por email. Links e imagem adicionados por nós.]

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6 comentários

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    • Manuela on 12 Dezembro, 2012 at 16:52
    • Responder

    Que texto maravilhoso, um grande abraço ao António de Macedo.
    O acordo é “tão bom” que o próprio Brasil, que ajudou a inventar, nem sabe que ele existe. A população está completamente alheia a essa bobagem.

    • Natália Moreira on 12 Dezembro, 2012 at 18:20
    • Responder

    Ao ler o texto fiquei confundida. Diz-se que o acordo data de 1990 e que o Engº. José Sócrates o assinou. Há aqui qualquer coisa que não entendo nesta época o governo, eleito em 1987 e que durou até 1991 era presidido pelo nosso actual Presidente da República. Como é que ele assinava uma coisa da responsabilidade de outro chefe do Governo? Não é que eu morra de amores pelo Engº. José Sócrates ou que o Acordo Ortográfico me seja simpático. Longe disso…. Até hoje ignoro-o uma vez que os países dos PALOPS, Angola e Moçambique se recusaram a assiná.-lo não podendo por isso entrar em vigor. Mas é da mais elementar justiça dizer a verdade quando se comentam erros do passado e sobre ela se dão informações. E esta forma de fazer política em Portugal repugna-me em que se diz e manda dizer… concluo, por isso, que era bom se pudessemos viver sem politicos e os mandássemos todos às urtigas. Embrulhadinhos uns nos outros, atadinhos com um cordel ficavam bem era no meio do Tejo. Coitado do Bugio decerto que iria morrer de vergonha pela companhia!

  1. Natália Moreira, comentário #2:
    Convém ler as coisas com atenção. O que se diz na minha carta é que Passos Coelho, em 2010, apoiou o Governo de então (2010), chefiado por José Sócrates, não se diz que José Sócrates assinou o AO90. O que José Sócrates assinou como Primeiro-Ministro foi (entre outras coisas) a contestada Resolução do Conselho de Minisros n.º 8/2011, em 9 de Dezembro de 2010, que impôs o AO90 a partir de 1 de Janeiro de 2012 ao Governo e a todos os serviços, organismos e entidades sujeitos aos poderes de direcção, superintendência e tutela do Governo, e no ensino. O AO90 foi aprovado em 1991 pela Resolução da Assembleia da República n.º 26/91, quando Cavaco Silva era Primeiro-Ministro e Mário Soares era Presidente da República.

    • Pedro Marques on 13 Dezembro, 2012 at 3:02
    • Responder

    Santana Lopes Secretário de Estado da Cultura de Cavaco Silva que assinou o Acordo AO90!

    • MJesus on 13 Dezembro, 2012 at 14:36
    • Responder

    Mensagem emocionante, Senhor Professor António Macedo!
    Apetecia-me ir bater à porta das residências do presidente da República e do Primeiro-ministro e entregar nas mãos das respectivas mulheres as suas Cartas e todas as outras que gritam gritos de revolta e de perplexidade perante o mutismo arrogante daqueles que eu realmente gostaria de ver “atadinhos” conforme expressa Natália Correia. Eu também os queria ver assim , mas sob o tectos das pontes, sem dinheiro e sem agasalho. (que me seja perdoada a falta de pontuação)

    O que me parece é que não haverá grandes Mulheres atrás destes dois homens que cito. Lamento!
    Se Eva Peron agia conforme os documentários, faz-nos muita falta esta latina. Há uns tempos que me deu para repudiar também as “maridas” dos homens mais actuantes deste cenário vergonhosamente corrupto.
    Cumprimentos

    • Elizabeth Pereira Gabas on 16 Dezembro, 2012 at 21:12
    • Responder

    “Quiça sine die” mesmo!!! Engavetado, morto e enterrado para todo o sempre! Esse ‘coiso’ é (foi) como modinha esdrúxula de passarela, aquela que não pega nem se tem coragem de usar. O Brasil é conhecido por não ser um país sério, porque não leva a sério nem o que é sério, imagine uma piada, uma grande lorota como o AO…”aqui tudo em se plantando, dá”…tudo aqui nasce, cresce, mata-se e amanhã ninguém se lembra de nada. Agora é “força na peruca pra rodar essa baiana”, pra cima dessa politicalha daí e acabar definitivamente com a palhaçada!

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