«A Viúva e a Virgem» [por Janer Cristaldo (Brasil)]

Escreve um leitor: o “benfeito” devemos ao pandemônio causado pela última reforma ortográfica. Escreve um outro: “Você está dizendo que a regra é equivocada. Concordo com você. Recuso-me a escrever “benfeito” e outras coisas. Mas o fato é que a regra mudou. Caso uma pessoa escreva “bem-feito” em um concurso público, ao invés de “benfeito”, terá pontos descontados por erro de ortografia. A Veja não é uma instituição pública, contudo, e, por isso, a menos que tivesse tomado a bandeira da pureza gramatical – opondo-se a uma reforma colocada em vigor por um semi-analfabeto – não vejo por qual razão deveria ser criticada por seguir a norma atual”.

Pode ser! Mas jornalista deveria raciocinar além dos gramáticos responsáveis pela reforma espúria. Se bem-feito deriva de bem-fazer, não pode ser benfeito. Ainda no ano passado, escrevia Thaís Nicoleti, no Uol:

Num primeiro momento após a implantação do Novo Acordo Ortográfico, entendeu-se que a forma “benfeito” substituiria a grafia “bem-feito”, preservando o sentido de “feito com esmero, com cuidado”. De acordo com esse primeiro entendimento, a forma “bem-feito” deixaria de existir. Não foi o que ocorreu.

A ideia era fazer a aglutinação tomando por base palavras da mesma família etimológica, como “benfeitor” e “benfeitoria”. Embora a mudança obedecesse a um critério lógico, a forma “benfeito” parece ter sido rejeitada pelos usuários. O fato concreto é que, na errata do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (e já na versão eletrônica), figura o verbo “bem-fazer”, com hífen, cujo particípio é a forma “bem-feito”.

O “Vocabulário” não é um dicionário, portanto registra os vocábulos sem indicar suas possíveis diferenças semânticas. O dicionário “Houaiss” traz, no entanto, a informação precisa. Registra as duas formas, “benfeito” e “bem-feito”, indicando o sentido exato de cada uma delas.

A distinção é simples: “bem-fazer”, com hífen, é fazer com esmero (“ trabalho bem-feito”, “corpo bem-feito”, “unhas bem-feitas” etc.) e “benfazer” é fazer o bem, fazer caridade (“Tinha benfeito aos pobres”, ou seja, “Tinha beneficiado os pobres”). O termo “benfeito” pode ainda ser um substantivo (sinônimo de “benefício” ou “benfeitoria”).

Não por acaso o dicionário Houaiss admite benfeito, afinal Antonio Houaiss é o responsável por esta reforma esdrúxula. Seu dicionário é demagógico, aceita o errado para parecer popular. Um só verbete desqualifica todo o dicionário: Houaiss admite as formas “adéqua”, “adéquam”. Com isto, absolve milhões de analfabetos. A reforma teve por finalidade não simplificar a língua – em verdade a complica, por suas incoerências – mas sim facilitar a vida dos analfabetos.

Fosse só isso não era nada. Uma reforma ortográfica é como a mudança da tomada de dois pinos para uma de três. Parece uma bagatela, mas rende milhões a vivaldinos que sabem que a mais eficaz forma de roubar não é roubar milhões de poucos, mas roubar centavos de milhões.

Tudo parece tão inocente, não é verdade? Coisinhas banais, como tirar um hífen aqui, um acentinho lá. Mas pense no que vem embutido com a reforma: novas edições de dicionários, reedições de toda a literatura, incluindo nisto os livros escolares e os paradidáticos, a galinha dos ovos de ouro dos editores. Um acentinho aqui, um hifenzinho ali… e o movimento de milhões de reais na indústria do livro.

Esse é o verdadeiro significado da reforma. A universidade e a imprensa brasileiras se renderam vilmente aos mercadores da língua. Não há sanções para quem não aceitar a reforma. Se não há sanções, pode-se continuar escrevendo como se escrevia. Se a universidade e os jornais – não falo dos editores, que são os principais beneficiados – continuassem grafando como sempre se grafou, o acordo espúrio iria águas abaixo.

Penso, inclusive, que se um estudante seguisse a antiga grafia no vestibular, não poderia ser reprovado. Se o fosse, poderia muito bem recorrer na Justiça. Digamos que um vestibulando faça uma péssima redação segundo a nova ortografia. E outro produza um excelente texto utilizando a antiga? Terá melhor nota o que usou a reforma do Houaiss? Seria uma injustiça berrante.

De minha parte, ignoro a tal de reforma. Sei que milhões de portugueses – isto é, os criadores da língua – fecham comigo. Que mais não seja,como dizia o saudoso Nestor de Hollanda, o acento diferencial é fundamental. Sem ele, não se consegue distinguir uma viúva de uma virgem.

A virgem diz “ai”.

[Transcrição integral de “post” da autoria de Janer Cristaldo, professor, jornalista e escritor brasileiro, publicado no seu próprio “blog” no dia 03.12.12.]

[Fomos alertados para este texto através de comentário do nosso leitor e apoiante Gilrikardo, a quem agradecemos pela atenção.]

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12 comentários

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    • Maria Miguel on 4 Dezembro, 2012 at 16:03
    • Responder

    Um só adjectivo para louvar este texto, e com maiúscula: Magnífico!!!!!!!!!!!
    Adjectivo? Talvez ainda se denomine assim esta palavra!

    Que estas lições de Português sejam enviadas para os doutores e engenheiros que assinaram a venda do nosso Idioma, desde os santanas, aos presidentes da República, até aos indignos deputados que se vendem para votarem o que lhe sé pedido.

    Quanto aos negociantes-gatos pingados, bem, eles não dormem só a magicar onde irão arrancar petróleo. O seu negócio é inventar e descobrir fragilidades para poderem aparecer com propostas que escondem caixões. É mais ou menos parecido com doenças e vacinas. Primeiro faz-se a vacina, a seguir sugestiona-se a doença. É lucro certo.
    Foi o que aconteceu. Pobre Língua Portuguesa! Tem andado tão descuidada, mal-amada, desde os anos 80, que acabou por abrir caminho aos vírus!
    Acreditemos que, após esta gripe, que é um processo de limpeza, voltemos a ter as palavrinhas limpinhas.

    Quanto à nossa tutela e companhia, que representa a defesa dos bens comuns, que, para o efeito, abusivamente usufrui de paraísos luxuosos e, por isso mesmo, lamacentos, só se ocupa em semear indignidades. Ela que deveria saber ler e interpretar para ocupar tais cargos, é seleccionada por fazer parte dos alfabetizados disfuncionais.

    Cumprimentos

  1. Notável! Isto sim, o que o Brasil tem de dar ao Português: inteligência e esclarecimento para manter o primor do idioma. Pena só, ser tão raro.
    Desenganem-se, pois, os serventes do libanês.
    Cumpts.

    • Hugo X. Paiva on 4 Dezembro, 2012 at 20:01
    • Responder

    http://www.correiodopovo.com.br/Noticias/?Noticia=444534

    • Hugo X. Paiva on 4 Dezembro, 2012 at 21:46
    • Responder

    Bic,o que é libanês?

    • Pedro Marques on 5 Dezembro, 2012 at 12:23
    • Responder

    Libanês é um cidadão do Líbano, penso que seja a isso que o escrita fina queira dizer.

  2. O Houaiss era libanês.
    Cumpts.

  3. Seguindo o comentário n.º 4, leio na remissão:
    « Entre os estudantes do ensino superior [brasileiro], 38% não dominam habilidades básicas de leitura e escrita, segundo o Indicador de Alfabetismo Funcional.»
    Ora bem, são 200 milhões de tucanos, não é verdade?
    De 200.000, xis são universitários; só 62 em cada 100 deste xis parece que lidam bem com o português (lá lidarão melhor ucom m qualquer crioulo); a somar a xis teremos uns quantos professores universitários, um punhado de eruditos que haja de de boa cepa, talvez meia dúzia de jornalistas bem amanhados… — Esqueço-me dalguém? Pois somem-se esses também.
    Pois cá está. Achai o valor de xis, adicionai-lhe a pitada de migalhas de suso dicta e, quantos tucanos falam realmente português?!…
    Tomai por fim atenção que não é neste «mercado» que o/a Houaiss espera(va) vender dicionários. As ordens de compra são de foro institucional. No fim são os analfabetos que pagam. Mas com o dicionário Houaiss evita-se de lhes chapar nas ventas que são analfabetos:
    «Um só verbete desqualifica todo o dicionário: Houaiss admite as formas “adéqua”, “adéquam”. Com isto, absolve milhões de analfabetos. A reforma teve por finalidade não simplificar a língua – em verdade a complica, por suas incoerências – mas sim facilitar a vida dos analfabetos. ».
    É bonito, não é?
    Cumpts.

  4. Lá atrás são 200.000.000, òbviamente.

    • Pedro Marques on 5 Dezembro, 2012 at 15:45
    • Responder

    Não escrita fina, é mesmo nojento, asqueroso, e dá vontade de apertar o gasganete e não só a essa gente.

    • Hugo X. Paiva on 5 Dezembro, 2012 at 23:24
    • Responder

    Tenho a mais completa convicção de que é um dever de todo brasileiro letrado, mais ainda daqueles que tiveram a oportunidade de concluir uma pós-graduação, empenhar-se com todo o vigor para que os índices vergonhosos de analfabetismo funcional neste país _ 76 % dos adultos entre 15 e 64 anos _ venham a diminuir, num futuro próximo. É com esse propósito que criei esta página à qual você é muito bem-vindo ( ou bem-vinda ) Volte sempre. Abraços, Stella Maris

    http://www.stellabortoni.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=43&Itemid=78

    • Pedro Marques on 6 Dezembro, 2012 at 0:26
    • Responder

    O problem é comodismo, vai-se deixando estar, ou vai-se esperando que as coisas melhorem nas políticas governamentais, e depois há questões que se vão perdendo pelo esquecimento. Tal como aqui, os grupos que combatiam o analfabetismo no Pós 25 de Abril deixaram de o fazer, os grupos de Teatro continuam e até têm casas cheias. Mas depois temos as telenovelas, casas dos segredos que ocupam bem parte do povo. E isto acontece no Brasil também, e depois o ensino não tem a qualidade que devia. Então agora.

    • Gloria Mont'Alverne on 11 Dezembro, 2012 at 21:22
    • Responder

    Acho piada a revolta de alguns com este acordo! Pois é só imigrarem, que o vosso português perde força de vez! Os portugueses não ensinam seus filhos nascidos no estrangeiro e nem falam com eles em português. Tudo bem, a maioria que imigra não têm lá muita instrução, portanto podem ter uma certa vergonha de suas origens. O que não é uma desculpa. Entretanto, o português do Brasil, ganha força. Tendo num país como a Suíça, quatro turmas lotadas numa mesma escola. Brasileiros que ensinam os seus filhos e cônjuges estrangeiros, o seu idioma. Vai lá entender isso! Só os que ficaram em Portugal, é que fazem essas grandes questões. E não falam de outro país, senão o que mais põe o idioma para circular. Principalmente onde deveria haver procura pelo português de Portugal. Acredite, ninguém esta contente com esse “desacordo” ortográfico.

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