«O Acordo Ortográfico e a tradução para português» [Paula Blank, “PÚBLICO”, 28.10.2012]

O Acordo Ortográfico e a tradução para português
Por Paula Blank

O meu trabalho consiste, em suma, na revisão de traduções do Inglês para o Português de manuais de instruções e interfaces do utilizador de equipamento médico. Vai desde a simples maca de exames utilizada nos consultórios médicos ao ventilador de cuidados intensivos ou desfibrilador cardíaco, de cujo correcto funcionamento e utilização dependem as vidas de tantos doentes por este país fora. Dependendo de o fabricante ser europeu ou americano, as traduções são produzidas – em geral – para Português de Portugal ou do Brasil, respectivamente. Por conseguinte, quando importamos da Europa, geralmente, repito, não há problema de maior; contudo, ao comprar equipamento nos EUA e com a globalização, consequentes fusões de companhias e migração de quadros pelo mundo inteiro, a situação complicou-se.

O que me chega às mãos está 90% das vezes muito longe do nível de qualidade que seria de esperar para qualquer tradução, quanto mais para traduções nesta área. Os exemplos são infindáveis, mas escolhi um que servirá para demonstrar aquilo de que falo. Na tradução do manual de um ventilador, feita por um tradutor brasileiro, lê-se:

“Usar o ventilador de maneira diferente como foi instruída pode causar danos ao digitalizar de RM.”

Uma tradução correcta do original em Inglês poderia ser assim:

“A utilização do ventilador de maneira diferente da que foi indicada nas instruções, pode causar danos ao aparelho de RM (ressonância magnética).”

Em praticamente todos os manuais traduzidos para Português do Brasil, e também no deste exemplo, chama-se “vazamento” a fuga, “cabo de força” a cabo de alimentação, “tela” a ecrã, “plugue” a ficha (um “plugue” que se “pluga”, do verbo “plugar”), “jack” a tomada, “leiaute” a disposição, “acurácia” a precisão, diz-se que a impressora “está aquecendo”, que “você tem de acessar isso” (aceder) ou “você deve apertar aquilo” (pressionar), os verbos reflexivos são conjugados ao contrário (“isso se faz assim” em vez de “isso faz-se assim”), etc.

O manual de um dispositivo de suporte de vida chega a ter 300-400 páginas e o deste exemplo era uma tradução que estava autorizada, em utilização em Portugal, e que só foi corrigida (1) quando o fabricante passou a fazer parte da gama de comercialização de certa empresa e (2) porque, depois de muita argumentação, o fabricante acabou por concordar em produzir uma versão em Português de Portugal.

Peço-vos que voltem a ler os exemplos apresentados. Não verão uma só instância de diferença ortográfica, o que prova a futilidade do esforço (inútil porque não o consegue) de uniformização ortográfica. A maioria dos manuais traduzidos no Brasil que eu revi estão escritos assim e, provavelmente, no Brasil até são textos perfeitamente aceitáveis, não sei, nem discuto. Mas em Portugal não. As traduções utilizadas em Portugal têm forçosamente que ser feitas por tradutores portugueses, em Português de Portugal, para que se possam cumprir os critérios exigíveis. E isso não basta, é preciso que o tradutor preencha outros critérios técnicos específicos, cuja discussão ficará para outra altura.

Contudo, há uma batalha contínua para que os dispositivos comercializados sejam acompanhados de instruções adequadas. A realidade é que os fabricantes pressionam os distribuidores portugueses a utilizar as traduções brasileiras em Portugal. Os argumentos são sempre os mesmos: (1) só se produz uma versão em Português e, dado que o Brasil é um mercado maior, a versão a produzir será em Pt-Br ou (2) temos que reduzir custos, por isso há que anular uma das versões em Português; o Brasil é um mercado maior, portanto eliminamos a versão Pt-Pt. Ponto final. Contra-argumentar dizendo que a sintaxe e a terminologia não são aceitáveis para textos que se destinam a profissionais clínicos, que os erros podem provocar acidentes de proporções mais ou menos sérias, é por regra inútil. Algumas vezes, felizmente, o esforço de argumentação é recompensado, e os médicos e enfermeiros em Portugal podem usufruir do privilégio de ler as instruções do dispositivo médico, que adquiriram em Portugal, num Português de fácil e natural compreensão. Sim, aquilo que devia ser um direito, que está previsto numa directiva europeia, que, por sua vez, foi transferida para a lei portuguesa, é no fundo, um privilégio. Quase um favor.

É, portanto, com profunda consternação que vemos o Governo português, que devia defender os nossos interesses, assinar um Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que (defendem alguns) visa unificar a ortografia e resolver todas as diferenças entre ambos os registos do Português.

O Acordo Ortográfico, ao criar esta falsa noção de uniformidade, extremamente nefasta para o Português-padrão, tem um resultado terrível para a tradução, porque enche o mercado português de instruções que quanto mais técnicas, mais incompreensíveis são.

Mas ainda podemos inverter este erro colossal, assinando a Iniciativa Legislativa de Cidadãos. Para saber como assinar e ficar a saber mais pormenores, por favor, visite o portal https://ilcao.com/.

 

[Transcrição integral de artigo da autoria de Paula Blank. In jornal “Público”, 28.10.2012. “Link” disponível para assinantes da versão online do jornal.]

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21 comentários

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    • Rocio Ramos on 28 Outubro, 2012 at 15:54
    • Responder

    Interessante abordagem do assunto, Paula. Muito obrigada . Nunca tinha pensado nele desse ponto de vista. Mais uma razão (e são tantas) para ser contra o AO

    • P. Blank on 28 Outubro, 2012 at 17:53
    • Responder

    Obrigada Rocio. O AO é, de facto, uma valente trancada na tradução, porque passa a ideia falsa, mas vastamente divulgada, de uniformização. Já não bastam todos os problemas associados à tradução para Português mencionados no artigo, ainda nos despejaram esta coisa em cima para ajudar.

  1. O grande problema é que não estão interessados na qualidade das traduções. Descartam quem traduz bem (por uma questão de dinheiros) e preferem gente que mal sabe ler e escrever a Língua Portuguesa, porque ganha menos.

    Em Portugal promove-se a mediocridade e a incultura, por isso somos um país medíocre, de onde os grandes cérebros têm de fugir, se querem singrar na vida. Lá fora somos broa de mel. Cá dentro, pão bolorento.
    Não tarde que Portugal fique apenas com os ignorantes.
    E o Acordo Ortográfico deve ser deitado ao lixo, porque não passa disso mesmo.

    • Manuela on 28 Outubro, 2012 at 20:33
    • Responder

    Portugal tem um Parlamento que se vende e odeia o próprio País.

    • Maria José Abranches on 28 Outubro, 2012 at 20:43
    • Responder

    Muito obrigada, Paula Blank, pelo seu testemunho! Tudo isto era previsível, mas os nossos políticos não têm a mínima capacidade de prever seja o que for! Se encontrássemos maneira de taxar a estupidez, não haveria “deficit” que nos apoquentasse!
    Continuo à espera de ver alguém de peso – político, intelectual, cultural – “ousar” clamar bem alto que esta infâmia, este “crime” tem de parar, já! Não acredito em ninguém que, falando em nome do país, se esqueça de pôr à cabeça de todas as prioridades esta: suspender de imediato a aplicação do AO90!

    • Hugo X. Paiva on 28 Outubro, 2012 at 22:01
    • Responder

    O culto da imbecilidade anda à solta. A estupidificação é moda apreciada. O poder é sociopata. Os papeis estão invertidos,anda o povo ao serviço do Estado em vez do Estado ao serviço do povo.Não é um rei que vai nú, é um traje que vai sem rei.
    Desde o pau de Belem ao porteiro de S. Bento, tresanda a criminalidade.O povo é conivente com tudo isto.Por conseguinte, senso comum, logica e direito, são figuras decorativas,só usadas por alguns, em matéria de conveniencia própria.Têm tudo na mão:a boca que respira,a boca que come, a boca que não fala.

    • Pedro Dias on 29 Outubro, 2012 at 6:06
    • Responder

    Mas será o problema do AO ou da má qualidade da tradução no Brasil? Porque se o exemplo dado é o padrão no Brasil, então devo considerar o nivel do Google Translate excelente.

  2. @Pedro Dias: No Brasil há bons tradutores (excelentes, mesmo) e há maus tradutores. Tal como em Portugal. Tal como, presumo, em qualquer país do mundo. De facto, é verdade que muitas vezes nos chegam as más traduções, infelizmente. Mas o problema aqui apontado vai muito para além disso. A questão aqui é que, por muito boa (ou mesmo excelente) que seja uma tradução técnica feita no Brasil, não serve para ser usada em Portugal. Não quando se exige uma compreensão imediata e inequívoca do texto. Na área da Saúde, isso é flagrante. Nenhum de nós quereria ser atendido por um profissional de saúde que estivesse a usar um aparelho cujas instruções não compreendeu…

    @Paula Blank: Obrigada por demonstrar, de mais esta forma, a perfeita inutilidade do AO90 e o efeito nocivo da ilusão de uniformização da língua.

  3. Este artigo é muitíssimo oportuno. A complexidade dos equipamentos hospitalares e o risco do seu mau manuseio para os doentes são enormes. A displicência (apesar da lei) dos fabricantes para poupar uns tostões roça o criminoso. Se é para salvar vidas faz sentido pô-las em risco por razões desta ordem.
    Vede só até onde o reflexo do desconchavo ortográfico, mai-la sua propaganda mentirosa de união do português e da língua portuguesa brasileira, pode produzir efeitos nefastos.
    Decididamente o «acordo» ortográfico, não só faz mal à saúde, como é um risco para a própria vida da gente.
    Cumpts.

    • Jorge Teixeira on 29 Outubro, 2012 at 11:55
    • Responder

    O problema da tradução é notório também no campo do software. Eu estou familiarizado com a terminologia brasileira por motivos profissionais e em Portugal qualquer pessoa fica confundida com a terminologia brasileira. Os ficheiros são “arquivos”, as bases de dados são “bancos de dados”, os registos são “registros”, os écrans de visualização são “telas”, os utilizadores são “usuários” e por aí fora. E outras coisas que induzem o utilizador Português em erro: por exemplo, no Brasil usa-se “excluir” para o que em Portugal se usa “apagar”. Isso é uma fonte permanente de enganos, dado que ninguém em Portugal pensa que ao “excluir” algo se está a apagar permanentemente essa algo. Isto são coisas de que me lembro assim de repente e ao correr da pena mas os exemplos são infindáveis.

    • Noémia de Ariztía on 29 Outubro, 2012 at 12:18
    • Responder

    Eu já não vou tão longe como os textos para equipamento médico. Eu fico-me pelas instruções de utilização dos programas para o computador. Quem não prefere ler as instruções na língua original (normalmente o inglês) do que lê-las nas versões em português do Brasil? Que além de normalmente serem muito descuidadas, utilizam termos para nós completamente desconhecidos? Para dar um pequeno exemplo – “salvar” (que para mim é “salvar alguém de morrer afogado”) em vez de “gravar”. Eu já assinei a Iniciativa Legislativa de Cidadãos. Este AO é uma fantochada, que, primeiro, não serve para nada, nem sequer para abrir o mercado africano de língua portuguesa às editoras portuguesas, e segundo, só nos causa uma confusão tremenda.

    • P. Blank on 29 Outubro, 2012 at 13:53
    • Responder

    Obrigada a todos pelas vossas palavras. É como diz a HC, fala-se de tradução técnica, de coisas práticas do dia-a-dia das pessoas, que fazem diferença na rotina das suas vidas e profissões, não de literatura.

    Também reconheço o problema do Jorge Teixeira, dado que faço a tradução de interfaces de utilizador para os mesmos equipamentos médicos. Se nos manuais as diferenças são inaceitáveis, imaginem na informação veiculada por um equipamento que está ligado a um paciente numa sala operatória durante a cirurgia.

    Ora, sabendo que estas diferenças existem e não se resolvem com umas alterações à ortografia, para quê este esforço inútil que serve apenas para desvirtuar cada vez mais a origem etimológica da nossa língua? Uma reforma ortográfica não pode ter por base a “simplificação”, mas sim o rigor científico.

    O que mais me enfurece neste processo todo são as mentiras deslavadas que nos têm atirado à cara: que a ortografia se vai unificar, que o português de Portugal corre o risco de desaparecer sem um acordo ortográfico, que o português é a única língua de cultura sem um acordo ortográfico. Mentira, mentira, mentira. Tratam-nos como atrasados mentais.

  4. O que dizer de traduções na área da mecânica automóvel? Mesmo feitas por bons tradutores, tornam-se ininteligíveis dos dois lados do Atlântico: cambota, veio de manivelas, freio, cambio, caixa de velocidades, travões, etc. Cada país adoptou o seu vocabulário técnico e não há AO que uniformize duas línguas que há muito seguiram caminhos diferentes.

  5. Isto é muito real. Eu tenho um livro que comprei recentemente na FNAC traduzido para “Português”, Sistemas Operativos do conhecido Andrew Tanenbaum, e confesso não perceber patavina da tradução, torna-se quase ridículo.

    Não vou voltar mais a comprar livros técnicos em Português. Foram +80€ que agora só servem para provar que este acordo ortográfico não faz sentido.

    Nota: Fui “obrigado” a comprar a versão Inglesa na Amazon.co.uk

  6. Um quisto a ser estripado rapidamente para evitar ainda mais metastizações. Os mentores “intelectuais” desta aberação deveriam ser processados criminalmente por ofensa grave ao património linguístico.

  7. errata:aberração

    • Maria Manuela Lopes Félix Costa on 30 Outubro, 2012 at 0:54
    • Responder

    Com o acordo ortográfico não compro nem mais um livro, comprarei às editoras que o não aceitaram. Sou portuguesa, não tenho que renegar as minhas raizes, mesmo que caiam as folhas!. Não cedo fàcilmente a assaltantes da dignidade patriótica e moral. Há que acabar com estes destruidores da Língua-Pátria de Portugal e dos portugueses.

    • Hugo X. Paiva on 31 Outubro, 2012 at 4:15
    • Responder

    Bic, faltou aqui um “não”!

    Se é para salvar vidas faz sentido pô-las em risco por razões desta ordem.

    • Maria Oliveira on 1 Novembro, 2012 at 14:51
    • Responder

    O grande mal está feito, pois hoje em dia há gente que “briga”, não discute; há “bagunças”, não desordens ou confusões; há gente que se “chama de”, já não há só um Zé, a mãe “chamou-o de” Zé; quem pergunta o que não entendeu, pergunta “Como assim?” e não “Desculpe, não entendi. / Como disse? / Perdão, não percebi…”; uma caixa registadora passou a ser “o caixa”, quando na nossa versão de português, esse era quem trabalhava na registadora… As mamãs têm “filhotes”, os seus filhos têm “coleguinhas”, comem “lanchinhos” e fazem “cursinhos”… É o descalabro, o asco toma conta de quem quer que tenha formado a molécula antes da vinda da “Cravo & Canela”, que foi e vai papando as meninges a tudo o que seja pensante, à custa de grandes quantidades de pele exposta…

    Perdão, mas até JV do comentário 14 não vai “voltar mais (Hã?) a comprar (…)”.
    Aliás, fora as brazucadas, m.a.g do comentário 15 quererá “estripar” ou extirpar o tal (de/do?) quisto?…

    Doloroso. É doloroso viver entre nós. A morte cerebral e o despertar noutra dimensão qualquer começa a parecer(-me e a muitos como eu) um refrigério… Este proto-país sem vergonha nas fuças (logo ele, que lembra um filosófico rosto humano a olhar o oceano) está abaixo da bosta! Tarrenego!

    • Jorge Teixeira on 4 Novembro, 2012 at 21:39
    • Responder

    @Maria Oliveira I feel your pain.
    E os anormais que escrevem em revistas também estão a tentar popularizar o uso de “amo” e “odeio” em vez de adoro e detesto?

  8. Muito obrigado por este testemunho!

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