«A recepção da recessão» [Rui Miguel Duarte, “Público”, 29.09.12]

São duas as ordens de razões com que os defensores Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) sustentam a sua causa: (1) o critério fonético — escrever como se pronuncia, sendo que a escrita deverá ser o testemunho, tão fiel quanto possível, da pronúncia (“Nota explicativa” [NE] n.º 3 apensa ao AO90). (2) a unificação da grafia numa língua que se pretende de comunicação internacional, pelo facto de ter dois padrões escritos (cf. os dois parágrafos finais da NE n.º 2). Concomitantemente, é costume porem em questão o argumento da etimologia, alcunhando-a de “falácia”. E citarem a autoridade de um linguista como António Emiliano, da Universidade Nova de Lisboa, conhecido opositor ao AO90, e as suas reservas no tocante a tal argumentação. No meu artigo “As razões das raízes”, publicado nas páginas deste jornal no passado 17 de Agosto, reconheci, sem reservas, “que a etimologia sofreu desde a reforma de 1911 diversos ataques que a fizeram recuar, com privilégio da aproximação à fonética, afinal o argumento mais utilizado pelos paladinos do AO90”. Com efeito, muitas e complementares podem ser as razões contra o AO, embora possam umas na actual conjuntura ter mais peso do que outras. Considero a actual norma, de 1945, uma base de trabalho suficientemente aceitável; e, como classicista, assumo a causa da memória etimológica ainda restante como uma reserva… “ecológica”. Devemos até lembrar-nos de que antes de a representação se reportar ao significante fónico, os sistemas gráficos primevos constituíam a tentativa de representar ideias. Defendi que a palavra escrita, mais do que um meio, é também objecto de pensamento e reflexão, ela é o mistério a perscrutar.

“Hic et nunc”, porém, é no tocante a estas razões fundantes da defesa do AO90 que pretendo aportar alguns pontos para sede de reflexão. Em primeiro lugar, contrastivamente, é o próprio AO90 que justifica a manutenção do “h” inicial, a única consoante verdadeiramente muda e desempregada do nosso alfabeto, “por força da etimologia” (Base II 1.º a), violando o princípio fonético! Dito de outro modo: o AO90 marca um golo na baliza adversária e no lance seguinte marca outro, na própria.

Por outro lado, quis testar a percepção dos nossos confrades de língua em relação à nova grafia na sua versão-PT. Entendi ser essa percepção essencial para a análise científica do AO90, da sua coerência interna e para aferir se efectivamente cumpre os objectivos a que se propõe, e que foram enunciados supra, e se aquilo que diziam e dizem os opositores, alguns linguistas, sobre uma alegada mudança nos modos de pronúncia, não passa de uma “teimosia lusitana” (como é designada na NE n.º 4 d), ou pelo contrário, de razoáveis advertências. O AO90, como é consabido, ao mesmo tempo que pretende unificar, por exemplo, ótimo, ato, ator, direção, setor, admite duplas grafias, as famosas facultatividades (por ex. sector/setor, carácter/caráter), podendo ascender até às quatro formas correctas de escrever o mesmo vocábulo, como demonstrou precisamente A. Emiliano; e fez ainda mais: provocou dissensão, desunificação gráfica, ao prescrever as variantes receção pt / recepção br; conceção pt / concepção br; deceção pt / decepção br; perceção pt / percepção br; espetador pt / espectador br. Segundo autogolo. Ora, há chamadas “consoantes mudas etimológicas” com valor diacrítico (cf. o artigo “A razão das raízes”) no português euro-afro-asiático, por manterem a abertura da vogal átona precedente (contrariamente à tendência comum de fechamento). A intuição, relativamente à grafia-PT receção (recorde-se que no Brasil o “p” é efectivamente pronunciado e escrito) é que a sua pronúncia se tornaria homófona da de recessão. Para tanto perguntei a cidadãos brasileiros residentes em Portugal como pronunciariam a grafia receção. A resposta: pensaram tratar-se de recessão, esse problema que está a afectar Portugal. Ganhava substância a razoabilidade das objecções dos críticos do AO. Em diálogo que mantive com um bloguista brasileiro, residente no seu país, a propósito de um texto de sua autoria, em que se opõe ao AO90 (http://blogdomaximus.com/2012/08/23/o-acordo-ortografico-da-lingua-portuguesa/), confrontei-o com as grafias facultativas supracitadas, perguntando-lhe como as pronunciaria um brasileiro. Cito, com autorização do próprio:

“No caso dos seus exemplos, a pronúncia lusitana causa sérias dificuldades de entendimento para o português. No caso de ‘recepção’/‘receção’, por exemplo, o brasileiro pronuncia cadenciadamente “recePção”, ressaltando o ‘p’, de modo a diferenciar do vocábulo foneticamente idêntico ‘recessão’, a que se reconduz o vocábulo português. O mesmo se dá com ‘concepção’/ ‘conceção’, para o qual o realce do ‘p’ intermediário serve para desassociá-lo do vocábulo ‘concessão’. Nesses dois casos, é possível que o ouvinte brasileiro acabe por trocar o significado vernacular de uma palavra por outra. No caso de ‘deceção e ‘espetador’, a pronúncia segue o mesmo padrão. A diferença reside no facto [sic] de que, em ambos os casos, a pronúncia lusitana simplesmente não fará sentido para o ‘português brasileiro’. Não há algo semelhante a ‘deceção’, e o ‘espetador’ será entendido, na melhor das hipóteses, com alguém que usa um espeto.”

Confirma-se em suma que a novel escrita é geradora de equívocos. Deixe-se pois de pregar que tudo não passa de teimosia lusa. Insistir nisto, e disto fazer tábua rasa, eis a teimosia, e tuga. A adicionar às criativas sandices que se vão escrevendo e proferindo, como “pato” por “pacto”, “adeto” por “adepto”, “intato” por “intacto”, que o AO não sanciona, mas que o iletrismo espicaça. O Ministério da Educação e o seu responsável máximo a tudo dizem nada. É ensurdecedor o silêncio a que se remeteu quem, tendo a obrigação de agir, se abstém de o fazer; mais, não deixa para a posteridade a memória histórica da incompetência, mas do medo, do cinismo político e da cumplicidade com um aborto.

Podem até ensinar às crianças de hoje que a receção se pronuncia como recéção. Dentro de uns 30 anos, se o AO vier a prevalecer, poderá esta pronúncia vingar, graças à frequente exposição à palavra (embora proferida com a vogal átona fechada, quando palavra isolada?). Já os brasileiros continuarão a olhar para Portugal como um país mais deprimente do que aquilo que sempre foi: nos jornais, nos hotéis, nos organismos públicos, o país da omnipresente e sempiterna receção, perdão, rêcêssão.

Rui Miguel Ventura Duarte

[Transcrição de artigo da autoria de Rui Miguel Ventura Duarte. In jornal “Público”, 29.09.2012. Link disponível apenas para assinantes do jornal “online”.]

[Nota: os conteúdos publicados na imprensa ou divulgados mediaticamente que de alguma forma digam respeito ao “acordo ortográfico” são, por regra e por inerência, transcritos no site da ILC já que a ela dizem respeito (quando dizem ou se dizem) e são por definição de interesse público (quando são ou se são).]

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2 comentários

    • Gonçalo Pinto on 29 Setembro, 2012 at 19:14
    • Responder

    Um excelente título que condensa toda esta idiotice do AO90. Os meus parabéns à edição do Público por não se render a tal afronta gráfica e linguística.

  1. Parabéns. Excelente!

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