«Os cidadãos com e sem visão» [por Diogo Costa]

Muito se afirmou que este novo Acordo Ortográfico seria uma oportunidade para aproximar os cidadãos de língua portuguesa; contudo, pouco ou mesmo nada se diz sobre a exclusão cultural que este AO coloca às pessoas com deficiência visual. Actualmente, não existem recursos tiflológicos e informáticos que permitam uma evolução igualitária entre os Acordos Ortográficos quando se compara os cidadãos com e sem visão.

Como é do conhecimento geral, a produção de manuais em Braille é bastante morosa e exigente, pelo que se vai aproveitando o material existente para ser fornecido aos estudantes cegos. A comprovar esta premissa estão diversos manuais com a antiga grafia Braille para a língua portuguesa (como se representam os diversos caracteres através de combinações de pontos) que ainda não foram substituídos durante décadas. Se diversos livros ainda não se encontram de acordo com a grafia Braille actual, será que com o novo AO será diferente?

O processo mais rápido a nível mundial da produção de manuais em Braille visa a impressão de cada página em chapas de zinco que requerem máquinas especializadas para este fim. Após esta etapa as chapas de zinco impressas são revistas por uma pessoa que as lê na íntegra. Para que o Braille passe das placas deste metal para o papel, as folhas são prensadas através das placas de zinco que as perfuram. O espólio de livros em Braille em Portugal é relativamente pequeno e, na minha opinião, será um atentado ignorar-se este material existente. Até que surjam placas de zinco numa quantidade relativa já impressas com o novo AO, o prazo limite para se o adoptar terá passado largamente. Um pequeno dicionário para a língua portuguesa em Braille tem 18 volumes e o romance Os Maias, por exemplo, é composto por 14.

Poder-se-ão contar pelos dedos em Portugal os estudantes cegos que nunca tiveram problemas com o tempo de produção dos manuais. É insólito, mas acontece os alunos fazerem testes de avaliação e, por ironia do destino, no dia seguinte chegar à sua escola o volume do manual que corresponde à matéria que saiu no teste.

No que se refere às pessoas com baixa visão, acredito que se esteja perante o mesmo problema, já que a produção de manuais ampliados também requer bastante cuidado e tempo.

As novas tecnologias são, sem quaisquer dúvidas, um grande contributo para a inclusão dos cidadãos com deficiência visual. Porém, este novo AO traz alguns problemas aos quais as entidades competentes ainda não deram resposta. Um computador é capaz de “dizer” em voz alta através de um sintetizador de voz o que vai aparecendo no ecrã de acordo com um conjunto de regras que o fazem pronunciar a grande maioria das palavras correctamente. Este tipo de tecnologias de apoio ronda os milhares de euros por utilizador e não estão adaptadas ao novo AO. Quem vai pagar às empresas que desenvolvem estes programas para os actualizarem para a realidade da língua portuguesa? Num público-alvo em que o desemprego é dos mais altos, quem vai arcar com os custos das actualizações das licenças dos utilizadores?

Por fim, deparei no outro dia com uma senhora com deficiência visual que trabalha numa escola e que tem de enviar documentos para entidades externas com o novo AO; até aqui poder-se-ia pensar que o “Lince” é a opção mais adequada; contudo, este programa não é acessível de origem às tecnologias de apoio utilizadas pelas pessoas com deficiência visual. Para que o mesmo possa ser utilizado é necessário instalar-se um programa denominado Java Access Bridge cuja instalação não está ao alcance de qualquer um. Onde se vão arranjar técnicos de informática que consigam colocar o “Lince” acessível? Quem vai ficar com os custos dessa instalação?

Numa sociedade que é cada vez mais global, ou andamos todos ao mesmo passo, ou então os grupos mais vulneráveis vão ficar para trás e em vez de estarmos a progredir, estaremos a regredir nos direitos que tanto custaram a adquirir.

Diogo Costa
[Aluno da Universidade do Algarve, Faro]

[Texto original e inédito; enviado pelo autor por email. “Links” adicionados por nós.]

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3 comentários

    • Jorge Teixeira on 15 Setembro, 2012 at 19:36
    • Responder

    As pessoas que nos querem impôr o AO90 não têm a menor consideração nem empatia pelas preocupações reais da sociedade. Não admira que nem lhes passe pela cabeça as pessoas com deficiência visual. O grau de cultura e humanismo que os acordistas demonstram é tal que o mais certo é o Malaca e respectiva trupe nem saber que as pessoas com deficiência visual sabem escrever! É mais do que certo, dado que com certeza também não sabem que as pessoas com deficiência auditiva sabem escrever — como podem escrever se não sabem a oralidade? Como pode alguém que não ouve compreender as consoantes ditas mudas, os acentos, os h aspirado… de certeza que essas pessoas não conseguem escrever…

  1. Paradoxal a falta de visão dos acorditas. Até nisto são a pior desgraça.

    • Márcio on 16 Setembro, 2012 at 20:20
    • Responder

    Para a máquina! (tradução para pt-arrôto-90 de ‘Stop the Machine!’)
    Para a máquina!

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