«Esquisso do acordista» [António Fernando Nabais, “Público”, 18.08.12]

Acordo Ortográfico: esquisso do acordista

Tenho pouco jeito para o desenho e não gosto de generalizações. Evito dedicar-me a ambas as actividades pela mesma razão: a forte possibilidade de falsear a realidade. No entanto, o tempo que tenho passado na polémica acerca do Acordo Ortográfico tem-me permitido reunir alguns traços que, com maior ou menor frequência, surgem no retrato daqueles que defendem o Acordo.

O primeiro aspecto a considerar reside no facto de que raramente um acordista cita o Acordo, tentando demonstrar a sua validade. Na maior parte dos casos, fica-se com a estranha impressão de que o acordista não terá, sequer, lido o Acordo. Noutros casos, o acordista acaba por reconhecer a existência de incongruências, mas prefere desvalorizá-las, com o argumento de que qualquer acordo é melhor do que a inexistência de um acordo.

A importância do Acordo, aliás, é defendida por se considerar que é a tábua de salvação da língua. Sem o Acordo, e, portanto, sem o peso do Brasil, o português europeu passaria a ser uma língua rapidamente extinta. O acordista considera esta asserção tão evidente que se dispensa de a demonstrar, como se dispensa de demonstrar como é que a sobrevivência de uma língua depende tão completamente do sistema ortográfico.

O acordista sabe que o Acordo Ortográfico não trouxe acordo ortográfico, mas finge, ainda, ignorar que, para além da ortografia, não existem outras diferenças insanáveis, que só poderiam desaparecer se, para além de um acordo ortográfico, se realizassem, ainda, um acordo sintáctico, um acordo fonético e um acordo semântico. Nada disso impede o acordista de afirmar, por exemplo, que “qualquer livro editado em português possa ser impresso em qualquer país lusófono”.

O acordista insiste, ainda, em classificar como perniciosa “a circunstância de a língua portuguesa ser a única do mundo ocidental falada por mais de cem milhões de pessoas com duas ortografias ocidentais”, o que, mesmo que não fosse mentira, não chegaria para provar coisa nenhuma, pois não passa do típico argumento provinciano que se limita a considerar negativo o que for uma característica única.

É, ainda, vulgar, ouvir o acordista criticar os críticos do Acordo Ortográfico por se julgarem “donos da língua”. Tal crítica faria sentido se esses mesmos críticos defendessem a imposição da ortografia europeia a todos os outros países lusófonos. A língua pertence, evidentemente, a quem a usa, o que quer dizer que o português pertence a todos os países lusófonos e é, portanto, enriquecedor que esse facto provoque todo o género de aproximações e admita as inevitáveis diferenças, que podem ser fonéticas, semânticas ou ortográficas.

É nesta altura que o acordista deixa escapar a sua veia empreendedora, defendendo que o Acordo Ortográfico será uma oportunidade de negócio, com amanhãs comercialmente risonhos. Diante dessa certeza, o acordista desvaloriza, aliás, o contributo dos linguistas, seres estranhos, ratos de biblioteca que se alimentam de etimologias bafientas e querem impedir a evolução da língua.

Para o acordista, mesmo sendo um leigo ou exactamente por ser um leigo, o linguista é uma espécie que vai contra um século democrático em que a língua é do povo. Não será estranho, amanhã, encontrar o acordista a defender, noutros campos do conhecimento, a autoridade dos especialistas. Na língua, o especialista deve ser ignorado, é uma antiguidade sem sentido. Aliás, o acordista, tal como não leu o Acordo Ortográfico, também não se dá ao trabalho de ler os especialistas.

A recusa dessa leitura, no entanto, não impede o acordista de sustentar a sua opinião, que considera esmagadora, com argumentos tão vagos como “já havia palavras homógrafas” (o que não deveria ser razão para aumentar o seu número), “há palavras que se pronunciam com a vogal fechada, apesar de terem consoantes mudas” (o que, sendo inegável, constitui excepção) ou “a grafia não afecta a oralidade” (como se não existissem relações complexas entre a leitura, a oralidade e a escrita).

Não é fácil ser-se crítico do Acordo Ortográfico, num país em que tudo se discute pela rama e tudo se decide com leviandade. Ser acordista é mais fácil: basta não conhecer o Acordo Ortográfico e não estar na disposição de ler o que se escreve sobre ele.

António Fernando Nabais

[Transcrição de artigo de opinião da autoria de António Fernando Nabais. In jornal “Público”, 18.08.2012. Link disponível apenas para assinantes do jornal.]

[Nota: os conteúdos publicados na imprensa ou divulgados mediaticamente que de alguma forma digam respeito ao “acordo ortográfico” são, por regra e por inerência, transcritos no site da ILC já que a ela dizem respeito (quando dizem ou se dizem) e são por definição de interesse público (quando são ou se são).]

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10 comentários

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    • Dário Fernado on 18 Agosto, 2012 at 20:21
    • Responder

    Sem menosprezo pela competência linguística de quem quer que tenha “negociado” o novo acordo ortográfico em representação de Portugal, revolta-me a facilidade com que um grupo de “iluminados” da língua portuguesa, quem nem sequer sabemos quem são, tenha tido plenos poderes para alterar de modo irrevogável aquilo que é um dos fundamentos da identidade cultural de um povo, a sua língua, sem auscultar a sua opinião sobre o assunto.

    • Maria Miguel on 18 Agosto, 2012 at 22:58
    • Responder

    Bem-haja, Jornal Público! Bem-haja ao autor do Excelente artigo.

    Queira perdoar-me, Dário.
    Quem aceita fazer parte de tão medonho crime – nacional e universal – merece ser menosprezado. Não há dinheiro que possa pagar um processo de despersonalização de uma árvore cultural, que já andava tão adoentada e, sobretudo, desde as últimas intervenções. Um verdadeiro linguista não se venderia.
    Também para si, Dário, o meu Bem-haja. Todos juntos, nós, os que não aceitamos o disparate, havemos de ser ouvidos. Obrigada.

    • Jorge Teixeira on 18 Agosto, 2012 at 23:42
    • Responder

    Por acaso, sabemos quem são. Pelo menos o chefe deles — essa sinistra figura que dá pelo nome de João Malaca Casteleiro. Este senhor é o grande responsável pela degradação da ortografia Portuguesa. Fez carreira a atentar contra a língua portuguesa – é ele o responsável pela invenção, defesa de uso e dicionarização no aberrante “Novo Dicionário” de grafias como “dossiê”, “robô” e quejandos. É o pai do AO86 que queria eliminar a acentuação das palavras esdrúxulas. É o pai do AO90. E não contente com a forma soez como tem sido tentada a sua imposição aos portugueses apareceu há bem pouco tempo na televisão, na TVI salvo erro, a defender a transformação do AO90 em Lei para se poder castigar quem não escrever de acordo com o AO90!

    • Maria Miguel on 20 Agosto, 2012 at 12:15
    • Responder

    Agradeço-lhe, J.Teixeira. Ainda fico mais nauseada com esta informação.
    Espero que todas as Mentes-Sábias-Brilhantes, que se encontram neste sítio,
    estejam a preparar os meios necessários para se fazer justiça e JÁ!
    Acredito que o assunto precisará de ser mais discutido fora deste magnífico
    espaço de encontro.
    Esse tal Casteleiro suspeita bem que o seu desempenho no crime, por encomenda, corre o risco de ser alargadamente descoberto, daí a sua pressa em pedir um suporte legal.

    • Fernando Paulo Baptista on 20 Agosto, 2012 at 13:35
    • Responder

    Excelente intervenção de Fernando António Nabais: sinto-me orgulhoso por termos Concidadãos desta qualidade e desta frontalidade. Felicito o jornal “Público” e, através dele, desejo aqui prestar a minha homenagem a todos os órgãos da comunicação social que têm sabido resistir ao degradante processo anti-genealógico e anti-histórico-cultural que tem o seu instrumento mais monstruoso na função controladora protagonizada pelo perversor programa «Lince» que, além do mais, consubstancia um dos mais graves atentados contra as liberdades fundamentais dos Cidadãos consignadas na Constituição da República: o Lince é, na verdade, a «mostrenga» encarnação informática da totalitária figura do «Big Brother» da «novi-língua» do romance «1984» de George Orwell.

    • OFidalgo on 21 Agosto, 2012 at 11:01
    • Responder

    Há que ter atenção que o Acordo Ortográfico afeta os cidadãos dos vários países de língua portuguesa, não passamos somente a escrever como os brasileiros, no Brasil há alterações, talvez tantas quantas no nosso território.
    Exemplo: onde já se viu retirar hífens porque isto ou aquilo (não vou colocar aqui as novas regras), a escrita no Brasil era a mesma que aqui, por isso sofrem o mesmo.
    Sobre as alterações nos países africanos de Língua Portuguesa, não me posso manifestar pois ainda não verifiquei as antigas desigualdades.

    Há que frisar acima de tudo: o acordo ortográfico foi definido há alguns anos pelos governos de todos os países envolvidos, e só agora quando aplicado e deve ser utilizado é que há manifestações deste tipo. Temos que ter em atenção todos os jogos de interesses envolvidos em todo o processo. Não sejamos anjinhos em pensar que só há acordos para lixar a vida do povo, é SEMPRE para alguns ganharem dinheiro.

  1. «O Acordo Ortográfico ‘afeta’»? Ah, pois «afeta»! Mas não é ao Brasil que afecta, isso é garantido.
    Cumpts.

    • zélia santiago on 21 Agosto, 2012 at 14:44
    • Responder

    Gostei muito das opiniões que li, e este último parágrafo”…é SEMPRE para alguns ganharem dinheiro” bem! O dinheirinho não chega a todos, é claro que não. Os pensadores só ficam com o pensar por recompensa, e se pensarem baixinho e devagarinho…

    • Dário Fernando on 22 Agosto, 2012 at 0:52
    • Responder

    Comentei este artigo há 3 dias. Foi, aliás, através dele que conheci a ILC contra o Acordo Ortográfico, que já subscrevi. No entanto parece-me que, para além de comentar profusamente artigos como este, que têm obviamente muito valor, deveríamos nós, os que somos contra esse Acordo Ortográfico, tentar por todos os meios ao nosso dispor, “Facebook”, “Twitter”, e outros, publicitar incessantemente esta ILC para que não passe despercebida a muitos como me ia passando a mim.

    • Luís Ferreira on 25 Agosto, 2012 at 20:11
    • Responder

    #10, Dário Fernando

    A iniciativa é de todos e não precisamos de pedir autorização seja a quem for para recolher assinaturas e divulgar a ILC. É um trabalho que compete a quem tiver horror ao resultado da aplicação do AO. Por isso, Dário, mãos à obra, porque ainda há muitas assinaturas para recolher e muitos espíritos a iluminar. 🙂

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