«A língua portuguesa tem sido muito maltratada» [M.C.V., “D.E.”]

Entrevista

“A língua portuguesa tem sido muito maltratada”

Mafalda de Avelar
01/08/12 00:05

Neste ensaio, a autora analisa o ensino do Português desde o 25 de Abril de 1974. Em entrevista, considera “imperioso” suspender o acordo ortográfico.
Maria do Carmo Vieira é uma autora que refere, em entrevista, que se “‘vendeu” a língua portuguesa a “interesses mal escondidos e a isso chamou-se ‘preocupação pela língua’, num Carnaval de palavras”. Em pleno Verão, vale a pena viajar pelo ensino da nossa língua através dos olhos de quem vive no mundo da “Educação”.

Qual o estado da “nossa língua”?
A língua portuguesa tem sido muito maltratada, sendo ostensivamente mal falada pelo contágio da falta de cultura e da ignorância que grassa. Situação flagrante foi a imposição do Acordo Ortográfico (AO), contrariando a exigência de debate, a vontade dos portugueses, os pareceres de instituições relevantes, nomeadamente o MEC, as intervenções fundamentadas de linguistas. ‘Vendeu-se’ a língua portuguesa a interesses mal escondidos e a isso chamou-se ‘preocupação pela língua’, num Carnaval de palavras, bem em sintonia com a nota explicativa do referido AO, que classifica de ‘teimosia lusitana’ o facto de termos mantido as consoantes mudas. Exige-se recuo nesta aventura que continua a esbanjar somas avultadas, mas até agora nunca assumidas, trazendo o caos ao ensino do Português. Por isso seria tão importante que todos e, em especial, alunos, professores, associações de pais e deputados se unissem contra este desvario. Existe também uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos que podem consultar em www.cedilha.net/ilcao.(ver nota)

Que tipo de acções melhorariam a Português?
Suspender o AO seria imperioso porque não é boa prática cada um escrever como lhe aprouver, destruindo-se a ortografia da língua portuguesa. Imprescindível também é a concretização de uma boa formação de professores de Português, em que o estudo do Latim não pode estar ausente, e a elaboração de novos programas para o Básico e Secundário, libertos da avalancha de “descritores de desempenho” absurdos e de teorias que formatam os professores. Não será com rapidez que a presente situação se resolverá, mas com vontade, seriedade e diálogo.

Qual a maior crítica ao Ensino do Português? Culpados?
Todos seremos culpados. Uns porque fazem mal, outros porque permitem, resignando-se. É inegável que a proliferação de reformas, longa manta de retalhos, desleixadamente alinhavada ao longo dos anos, teve desastrosas consequências no ensino, e especificamente no ensino do Português. Com efeito, surdos à exigência de um diálogo com os professores, descura-se as suas várias chamadas de atenção para o facto de grande número de alunos acabar o 1º ciclo sem saber ler e escrever de forma minimamente correcta, o que se repercute, como é natural, nos ciclos seguintes. Mantêm-se programas extensíssimos, muitos dos quais mal elaborados e sem qualquer fio condutor, impedindo um trabalho sério com a escrita e com a própria leitura de textos, sobretudo literários que aparecem em pé de igualdade com uma avalancha de textos funcionais e informativos. A agravar a situação, tem-se descurado a Gramática, privilegiando a TLEBS (implementada do 1º ciclo ao secundário) que apenas confunde os alunos e não permite qualquer reflexão sobre a língua, como se pretendia. O certo é que não se dominando bem a língua, não é possível expressar o pensamento e é nos textos literários que a qualidade da língua sobressai porque a literatura é a arte da palavra. Sabendo-se interpretar um texto literário, o que exige leitura, tempo e treino, saber-se-á escrever um texto funcional. O contrário é que certamente não acontecerá.

Maria do Carmo Vieira
É licenciada em Filologia Românica e mestre em Literatura de Viagens. Maria do Carmo Vieira, professora do Ensino Secundário, é autora de: “Sobre Fernando Pessoa – Drama em Gente e Percurso Pessoano por Lisboa”, de “A Arte, Mestra da Vida” e de “Inventar Portugal, «Reflexão sobre o Sentido de Ensinar» (2012). De destacar ainda a coordenação, com Rui M. Gonçalves, de “Passo e Fico como o Universo”, um livro de pintura de influência pessoana; e, a coordenação da fixação do texto de Etiópia Oriental e Vária História de Cousas Notáveis do Oriente de Fr. João dos Santos (Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999).

Nota: a frase final desta resposta, em que é referido o endereço electrónico da ILC, não foi publicada na edição impressa mas foi proferida pela pessoa entrevistada, conforme se pode ver na versão publicada no “blog” da jornalista que entrevistou.

[Transcrição integral de entrevista da jornalista Mafalda de Avelar a Maria do Carmo Vieira publicada no jornal “Diário Económico” de hoje, 01.08.12.]

[Nota: os conteúdos publicados na imprensa ou divulgados mediaticamente que de alguma forma digam respeito ao “acordo ortográfico” são, por regra e por inerência, transcritos no site da ILC já que a ela dizem respeito (quando dizem ou se dizem) e são por definição de interesse público (quando são ou se são).]

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3 comentários

    • Maria de Jesus on 1 Agosto, 2012 at 23:43
    • Responder

    Mais um excelente trabalho!
    Parabéns ao Diário Económico, à Jornalista Mafalda de Avelar e, de novo, à Capacidade de expressão que a Professora Maria do Carmo tem. Sinto e confirmo tudo o que é dito.
    As causas (dando soluções dignas) das doenças da Língua Portuguesa são identificadas e fundamentadas claramente
    Pobre Português!…
    Nos Canais História e Odisseia está a usar-se o hífen assim: realiza_se… faz_se
    Na Internet já quase não consigo pesquisar sítios em Português. Perco um tempo demasiado longo em busca da nossa Língua. Até em assuntos, como Lisboa e Ulisses vêm por mão do Brasil. Pela oralidade eu até teria gostado de ter nascido brasileira. Pela escrita não. Aliás estávamos muito bem. Cada um com a sua expressividade.
    Ando indignada. Não me suportável ver o desprestígio a que se votou a palavra. As minúsculas tornaram tudo igual. Olha-se um texto e nada se destaca, nem mês, nem nome, nem Estação do ano… Além de tudo o resto. A legendagem é uma afronta.
    O que é que os mentores do CRIME terão aprendido do Português? Nada! Só a ignorância permitiu o êxtase hediondo, subserviente a poderes, de maltratar um idioma que é de todos. A SUSPENSÃO IMEDIATA!
    Uma nota: Fui aluna do Professor Rui Mário Gonçalves. Uma inteligência, uma simplicidade que guardarei sempre no meu coração. Literatura e Artes Plásticas vivem ainda no meu Imaginário.
    Vou à procura do livro, cuja coordenação lhe pertence. O título fala-me. Obrigada Professora, também por esta referência.
    Obrigada à ILC

  1. O texto foi publicado no Diário “Económico” ou “Econômico”? Pelo que percebi do curriculum da senhora jornalista, a mesma só poderá ser brasileira. Senão, que raio de mania é esta de agora se escrever com os pés? “Qual o estado…” e “Qual a maior crítica…” obedecem, obviamente, a uma estrutura “brasileira”, embora muitos portugueses estejam a adoptar essa irritante estrutura de preguicite dengosa e enjoativa – já para não dizer nauseante – de ESQUECER a forma verbal da frase. Acreditarão, decerto, que lhes dá um certo exotismo… bacoco!
    De repente, acorda-se e um fundo musical de sambódromo polvilha a expressão do povinho de cá, quais macaquinhos de imitação, sem personalidade nenhuma. Toda a gente “vira” isto ou aquilo, já ninguém se torna algo; há “bagunças” e as pessoas “brigam”, já ninguém com menos de 17 anos reconhece as palavras “desordem”, “confusão” ou “discussão”, “desentendimento”; as progenitoras têm “filhotes” (a começar pelas lisboetas, que pronunciam um insultuoso “f ‘ lhote”), quais ursos e lobos, pois já ninguém tem filhos nem os chama pelo nome, pelo que os chamam “DE” Maria, “DE” João, as crianças insultam-se “DE” entre si… Um caos. A caixa do supermercado (lugar)confunde-se com “O caixa” (função, vendedor), quase ninguém refere que “já” não quer algo, pois agora é mais usual dizer que alguém “não quer mais” alguma coisa… Os piores exemplos são os jornalistas deste retalhinho de terreola de parolos que temos como mapa.
    Torna-se insuportável viver entre tanta estupidez e, no ensino, cada frase dita por uma criança hoje em dia, é um rol de atropelos. Além disso, com a má consciência ridiculamente auto-culpabilizadora de que existe uma “lusofonia” (só nos delírios de alguns politiqueiros caquéticos que abundam ali por São Bento!), entram-nos pelos livros ESCOLARES, revistas e tv’s os Agualusas de serviço, que nos ODEIAM mas adoram vender cá as suas patranhas pseudo qualquer coisa, com uma arrogância gritante e insultuosa, defendendo que a sua “literatura” não é lusófona, é africana… Mas os portugueses gostam mesmo de se rebaixar! Haja dó! Haja vergonha!
    Como diriam os franceses, “C’est le bordel!”. Que asco! Deve ser do fado, mas tudo isto é (tão) triste.

    • Maria do Carmo Vieira on 2 Agosto, 2012 at 11:19
    • Responder

    Cara Maria de Jesus, agradecendo as suas palavras, devo dizer-lhe que o livro com o Dr. Rui Mário Gonçalves, de quem todos os alunos, normalmente, guardam saudades, está há muito esgotado. Tenho um exemplar que terei todo o gosto em oferecer-lho. Se quiser contactar-me para carmo_vieira@sapo.pt, combinaremos a melhor maneira de o fazer.
    Bem-haja.

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