Consoantes “mudas” e pronúncia [um trabalho de João Ricardo Rosa]

«Este texto e os ficheiros áudio que o acompanham foram produzidos para provar ser falsa a premissa que afirma que o acordo ortográfico «não altera a pronúncia de nenhuma palavra» e que, de facto, no contexto do Português de Portugal, a remoção de consoantes ditas “mudas” implica necessariamente diferenças na forma de pronunciar muitas palavras. O áudio foi produzido com recurso ao sintetizador de voz RealSpeak Solo V4, da Nuance Communications, Inc., antiga ScanSoft, Inc. (http://www.nuance.com), usando a Madalena, voz portuguesa de Portugal (e a Raquel, voz de Português do Brasil).»
João Ricardo Rosa

 

[Texto lido pelo sintetizador em Português de Portugal]

[Texto lido pelo sintetizador em Português do Brasil]

Texto lido pelo sintetizador de voz

Olá.

Eu sou a Madalena. Sou um sintetizador de voz natural, ou seja, um produto capaz de vocalizar texto. Certamente que imaginam que programar um sintetizador de voz é algo bastante difícil e dificilmente sairá algo perfeito, pois, no fim, depende tudo da língua, a qual tem as suas próprias excepções. Por causa disto, um sintetizador pode não ler tudo bem, mas é raro tal acontecer e, quando acontece, aponta-se e corrige-se. Como já devem ter percebido, a minha voz é portuguesa. Isso significa que, ao falar, tenho de me ater, tanto quanto possível, às regras de pronunciação da Língua Portuguesa falada em Portugal. Isto poderia ser um problema, com o abafado Acordo Ortográfico de 1990, pois com a remoção de consoantes ditas “mudas”, a pronunciação poder-se-ia alterar. Felizmente que já anunciaram em muitos sítios que isso não é verdade. Ou será?

Bom, se for verdade, então não será preciso fazer nenhuma correção ao meu código. Ai! O que foi aquilo!? Correção? Mas não se deveria ler correção como algo do tipo cu-rré-ção? Afinal, é assim que se pronuncia correcção! Bom, certamente que deve ser um caso especial, deve estar tudo correto. Então! Outra vez? Bom, realmente correto também tem a ver com os corretores da Bolsa, por isso, se calhar, para mim, internamente, correto deve ler-se cu-rrê-tu. Enfim, vou ignorar este também; afinal, às vezes há que fazer cedências para que uma coisa seja… bom… corretamente adotada. Oh! Então? Mas o que é que se passa aqui? Não é a-dó-tá-da ou a-dóp-tá-da? Por que raio é que eu disse a-du-tá-da? Disseram que não ia mudar nada, que a pronúncia ficava na mesma! Parece que afinal não é bem assim!

Então sendo assim, muda quase tudo! Não admira que as pessoas se indignem! Quem fez isto devia esperar uma total ausência de reação¸ mas em vez disso encontrou-se com uma grande reacção. Seguir diretivas destas é horrível! E ironicamente, estas diretivas certamente que não têm o mesmo valor que as antigas directivas; afinal, até nas letras têm menos. O que me leva a pensar: O que vai acontecer aos detectives, aos inspectores, aos arquitectos, aos recepcionistas? Vão todos ser despromovidos a detetives, inspetores, arquitetos e rececionistas? Como se já não bastassem as dificuldades que os portugueses enfrentam, agora também estes são despromovidos… Então e os telespectadores? Supostamente, há a chamada “dupla-grafia”, que só por si é um contra-senso. Mas há algum sentido em escrever (e dizer) telespetadores? Especialmente se nos lembrarmos que no Brasil nem sequer se escreve assim! Telespetadores… para mim a palavra só faz sentido se imaginarmos que um telespetador é alguém que espeta alguma coisa à distância. E talvez o façam mesmo, se se enganarem e acabarem por ir a espetáculos espetaculares quando, na realidade, pretendiam ir a um espectáculo espectacular.

Esta adoção não faz sentido nenhum, e não tem nada de doce. Só consigo imaginar a confusão que isto tudo fará aos estudantes. A cada novo ano letivo, são mais as lavagens cerebrais feitas. Os professores, que têm a obrigação de leccionar os alunos, agora limitam-se a lecionar. Isto parece que andou por aí um colecionador de consoantes a colecionar as letras, hífenes e acentos das palavras! Por falar em colecionar, lembram-se daquela coletânea? A “Coleção Klássicos”? Quiçá aquilo que “roubaram” esteja lá. Mas não me atrevo a descobrir; há colecções muito mais merecedoras da minha voz. Colecções que em vez de adjetivos têm adjectivos, que falam de afecções em vez de afeções, capazes de pôr o Mundo em perspectiva, em vez de em perspetiva, capazes de injectar cultura e conhecimento, rejeitando qualquer injeção de ignorância e expetoração. Colecções com objectivos, e não objetivos, que servem de distracção para muitos quando estes não querem distrações, capazes de deixar as pessoas na expectativa sem nunca as deixar expetantes.

Este “Acordo” acabou por se tornar num cancro horrível. Pior do que isso, por alguma razão conseguiu tornar-se infecioso, que é algo pior do que infeccioso, e que agora tenta infetar todos os portugueses! Pode parecer exagero, mas realmente não é. Já não é possível a ninguém passar um dia que seja sem se cruzar com ele. Quando vê o telejornal, qual é a palavra que está sempre presente? É aquela palavra que sofreu uma brutal mutação, que cortaram, mutilaram e assassinaram. É aquela palavra que, depois de tudo o que lhe fizeram, ainda têm o descaramento de a expor como se de um troféu se tratasse. É o “DIRETO”. Mudaram mais uma família de palavras para aquilo que realmente elas não são, e sempre alterando, invariavelmente, a pronúncia.

Mas não foram só as grandes cadeias televisivas que sucumbiram a este disparate. A imprensa não lhe ficou atrás. São poucos os que até agora não trocaram as suas redacções e redactores por redações e redatores. Imagino que seja porque ocupam menos espaço; afinal, os tectos também encolheram e agora só têm tetos. E, quem sabe, talvez seja também porque assim gastam menos tinta nas impressões. Obviamente, a estupidez não para. Desculpem; “não pára”. Não é que estivesse incorreto, uma vez que, supostamente, já só existe “para”, sempre sem acento, apesar de nenhum “pôr” passar a “por”… Mas sem dúvida que está incorrecto. Uma pequena exceção, que nem a excepção deveria ter chegado. São aspectos como estes que dão mau aspeto à pretensa mas impossível unificação da Língua Portuguesa.

Aliás, isto é tão grave que ultrapassa o Português e estende-se a outras áreas. Na Matemática, formas geométricas como os rectângulos agora são menos rectangulares e mais retangulares. Na Física, reactores nucleares são agora reatores, o electromagnetismo perdeu a força e agora só há eletromagnetismo, os átomos perderam todos os seus electrões, que foram substituídos por inúteis eletrões, os raios de luz deixam de ser redireccionados por espelhos reflectivos para serem redirecionados por espelhos refletivos. Objectos deixam de ser projectados e de seguir trajectórias rectilíneas para agora serem convertidos em objetos projetados que seguem trajetórias retilíneas. No futebol, Portugal deixou de ter uma Selecção Nacional para agora ter uma mera Seleção. Em política, o Estado deixou de ter sectores e agora só tem setores, e não são daqueles que lecionam. Também já nem se pode registar tractores nem tractocarros, pois agora só há tratores e tratocarros. Nos eventos sociais, deixam de se fazer recepções e passam a fazer-se receções. E logo agora que a última coisa de que as pessoas querem ouvir falar é de mais recessões…

E agora pergunto-me: Quem é que ganhou com tudo isto? Quem é que facturou? Pior ainda: quem é que faturou? Como é que puderam fazer uma coisa destas, que não afecta mas que deixa afetados todos os portugueses? Quem foram os atores que arquitetaram tamanha desgraça sobre a Língua, e quem serão os actores que conseguirão arquitectar a sua recuperação? Por que é que há tanto excesso de ação e tanta falta de acção? Por que é que há tanto ceticismo mas tão pouco cepticismo? Por que é que as pessoas são tão protetoras do que não importa e tão pouco protectoras do que realmente lhes pertence?

É mentira quando dizem que a mudança da ortografia não altera a pronúncia na leitura das palavras! Ou serei eu que perdi a percepção das coisas, e agora só me resta uma mera, fraca e frágil perceção…?

Este é um trabalho da autoria de João Ricardo Rosa, estudante universitário, activista da ILC, autor de “Firefox contra o Acordo Ortográfico“.

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7 comentários

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    • António Dias on 28 Julho, 2012 at 22:03
    • Responder

    Muito bem! parabéns pelo excelente trabalho.
    Mais uma demonstração cabal da iniquidade, obtusidade, estupidez deste (des)acordo ortográfico.

    Os seus defensores, à falta de melhores argumentos, e certamente envergonhados (isto é se forem minimamente inteligentes), apresentam geralmente um único argumento, que é o do facto consumado, ou fato consumado.
    É preciso mais uma vez desmascarar esta gente, que está a vender a nossa língua de barato, e a promover a mediocridade.

    É preciso apelar à desobiência civil relativamente a este acordo. Ninguém é, ou pode ser, obrigado a escrever este “dialêto tortográfico”.

    Quem se verga voluntariamente numa democracia… que faria então numa ditadura.

    Continuarei a recolher assinaturas e divulgarei este texto pelos meus contactos.

    Cumprimentos

    • Maria José Abranches on 28 Julho, 2012 at 23:37
    • Responder

    Óptimo trabalho, João Ricardo Rosa! Muito obrigada! O saber, a criatividade e a originalidade dos mais novos são um trunfo precioso, nesta luta contra os traidores que decidiram estropiar e vender a nossa língua!

  1. Excelente trabalho, João Ricardo Rosa! O exposto torna o assunto clarinho como água! Gosto de saber que há gente neste proto-país que, como eu, NUNCA TERÁ MEDO de desobedecer. No seu caso, J. R. Rosa, o senhor honra TODOS os universitários!

    Concordo com o comentador precedente, António Dias, quando apela à desobediência civil. Nem de propósito, li há dias uma frase de Thomas Jefferson que me dará coragem para não ser uma “colaboracionista” do abjecto AO90 (como professora, sei que haverá consequências quando continuar a não aplicar aquele “excremento linguístico” nas minhas aulas), mas terei essa força: «A dissidência é a maior forma de patriotismo».

    • Miguel Coelho on 29 Julho, 2012 at 16:37
    • Responder

    Muitos parabéns ao autor. É impossível esboçar um sorriso com o texto. Ouvindo-o será ainda melhor. Mesmo que o assunto não seja para graças.
    A desobediência a este aborto ortográfico já eu pratico desde sempre e praticá-la-ei no futuro. Escrevo errado? Pois sim, escrevo errado. Ninguém mo pode impedir! Nem fiz acordo com ninguém nem ninguém me perguntou se eu estava de acordo. Só lamento deveras que os meus dois filhos (5 e 9 anos) terão que “levar” com esta bestialidade.

    • Maria do Carmo Vieira on 31 Julho, 2012 at 21:31
    • Responder

    Excelente trabalho, João Ricardo. Muito obrigada! Faço minhas as palavras da professora Maria José Abranches.
    Um grande abraço de Parabéns!

  2. Vede também o sintetizador de voz nesta notícia, nomeadamente na «circulação êste-oeste» e «oeste-êste», pouco depois do 1.º minuto. Os pontos cardeais também foram na voragem, de modo que «este» ou «Este» é como dizia o outro. Orientem-se!
    http://www.cm-lisboa.pt/?idc=41&idi=60229

  3. Excelente trabalho ! Temos todos – os Portugueses que amam a sua bela Língua – de nos unir em torno da nossa “Pátria”, como diria Fernando Pessoa.
    Há que fazer ver aos governantes que têm de acabar, quanto antes, com este disparate incomensurável, ignóbil, produto de gente imbecil (ou oportunista…?) e ignorante, como o dr. Malaca e outros que tais…!
    Todos na defesa da Língua Portuguesa, com tantas qualidades como demonstrava F. Rodrigues Lobo !

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