«Uma capitulação ao capital» [carta de P.R.C.]

From: Paulo J R Costa

To: Comissão de Trabalhadores

Sent: Thursday, June 14, 2012 5:08 PM

Subject: RE: Comunicado nº 7 da Comissão de Trabalhadores da TAP.

Exm.ª Comissão,

Li o vosso comunicado. De acordo quanto ao conteúdo.

Quanto à forma, bem…

Se vos preocupais tanto em abrasileirar o português como preconizado pelo denominado «Acordo» ortográfico havíeis de lê-lo antes para saberdes como ele mutila com toda a «correção» o português. Não basta riscar muito burguesmente «ações» e «projeto»; é preciso verter em minúscula a inicial dos nomes dos meses («janeiro» «fevereiro» &c.) como se faz no Brasil. Logo, os nomes dos meses estão todos mal nos vossos comunicados.

Haveis de também passar a despromover as estações do ano. Se lerdes o dito «Acordo» (façamos de conta de conta que é um A.E. por desfastio) haveis de notar que o «Verão», com maiúscula, acabou. O que começa por daqui a oito dias há-de ser o primeiro «verão» português a valer (qual Verão quente, qual quê!…); calhando passa a ser assim porque em sendo como era, com maiúscula à boa maneira portuguesa, os nossos irmãos brasileiros nem haviam nunca de saber ler tal esquisitice. Portanto, já vedes, quem escreva «primavera», «verão», «outono», «inverno» — como o Brasil se faz desde talvez antes de …1500? — nunca jamais em tempo algum — presume-se — terá capacidade de entender, se o vir escrito, Primavera, Verão, Outono, Inverno. O mesmo que já disse para Janeiro, Fevereiro, Março, etc. — vá lá, pois, os nossos irmãos dos trópicos perceber que na língua deles (o português) aquilo é tão só… «janeiro», «fevereiro», etc..

Claro que isto é ironia. — Com a situação, não com brasileiros, como se entende.

Fico muito na dúvida ainda se vós, com esta virose moderno-burguesa que vos deu de pretensamente grafarem de acordo com o tal «Acordo», sabeis que por mais «aspetos» ou «receções» que ponhais nos vossos comunicados, os nossos irmãos brasileiros não deixarão de ficar à nora com tais palavrões, sem descortinar que diabo de «português» seja aquele! É que eles escrevem (e muito bem) «aspecto», «recepção» &c. à boa maneira portuguesa — e até têm lá no vocabulário deles o verbo «adoptar» com pê, imaginai! Ora vós pareceis que afinal «adotastes», por vos deixardes levar, uma desunião da ortografia portuguesa… Ou seja e parafraseando-vos: num momento de enorme ataque a Portugal e ao idioma português, imposto pelo governo com o argumento (falacioso) da unificação da ortografia, subscrito pelo P.S., P.S.D., C.D.S e B.E., a C.T. não pode cair no desânimo do «não há nada a fazer», quando no seu seio surgem tendências que apontam à capitulação, e até de apoio às acções da administração e do governo que não tem por que impor a ilegalidade (sim, o «Acordo» Ortográfico também é ilegal). Contemporizando, a Comissão não é de Trabalhadores, será de colaboradores (mais um palavrão da linguagem moderno-burguesa, cujo alcance sócio-semântico vos não escapará…)

Por conseguinte: ou bem que decididamente dais em redigir comunicados de acordo com o «Acordo», capitulando de vez e enredando-vos na má «redação» dum pseudoportuguês que ofende quem o lê e humilha quem o escreve, e aí eu calo-me; ou assumidamente o renegais (cumprindo afinal o D.L. 30.228 de 8/12/1945, nunca revogado) que vos dará com certeza aos comunicados o brilho duma redacção correcta. Assim, com tudo misturado como vindes fazendo, parece anedota de não levar a sério nem quem escreve nem o que vem escrito. Pior: sendo o ditame desta inqualificável forma de escrever uma decisão da TAP, pretensamente para o pessoal da TAP (extravagantemente veiculada, não por circular interna notai, mas através do boletim «Flash») a C.T. não está (nem os trabalhadores ao que julgo) subordinada a tal.

Ah! E o «Acordo» ortográfico também é uma capitulação ao capital internacional de ávidos negociantes de livros escolares (olhai à despesa das famílias) e de dicionários (vede a despesa de se apetrecharem bibliotecas nacionais – e há toda uma série de nichos de mercado…). Tal como a TAP, o português não é mercadoria barata. Aliás, o português não é mercadoria, ponto. — Nem a TAP o devia ser. — Por isso junto um impresso de assinatura da Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico contando com a vossa colaboração (aqui sim) na sua divulgação e na remoção de mais esta vergonha que ensombra a dignidade e a identidade do povo português.

Cumpts.

Paulo Rodrigues da Costa

[Cópia recebida por email, com autorização de publicação pelo autor.]

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4 comentários

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    • Luís Ferreira on 17 Junho, 2012 at 18:59
    • Responder

    Adorei.
    Irónico até à medula.
    Sarcástico, também.

    🙂

  1. Adorei.

    • Augusto Trindade Rodrigues on 25 Junho, 2012 at 23:08
    • Responder

    Completamente de acordo. O português, língua latina, deve continuar a honrar e respeitar as suas origens. Os outros povos é que falam, ou deviam falar, português, o que se fala e escreve, pelo menos eu, em Portugal

    • António Muñoz on 28 Junho, 2012 at 19:39
    • Responder

    Impecável ! É pena que a Ordem dos Arquitectos e todos os que fazem projectos, os quais vão passar a ser “Arquitetos” ( e elas, “Arquitêtas” ) e a fazerem “projêtos”…
    Parabéns Paulo Rodirgues Costa !

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