«Aventuras herbáceas e erros de podar» [Nuno Pacheco, “Público”]

O defeito deve ser da gesta marítima, mas a verdade é que Portugal decididamente não se dá bem com aventuras herbáceas. Os ingleses, sim. Jardinagem é com eles. Qualquer coisa onde se mencione garden ou grass tem de ser bem feita. Eles sabem e dão muita importância ao assunto. Na América é diferente. Hal Ashby (no filme Being There, baseado na novela homónima de Jerzy Kosinski) até pôs Peter Sellers a fazer de um jardineiro alienado pela televisão que, perdido no mundo, acaba por ser adoptado como uma espécie de oráculo na alta-roda, deixando boquiabertos políticos e empresários, ou até mesmo o Presidente, com banalidades hortícolas do género “é preciso esperar para colher”, vistas como conselhos de grande importância para economistas ou políticos.

Mas, voltando a Portugal, herbáceas não é connosco. Nos relvados é o que se vê: muito suor, muitos nervos e resultados tantas vezes parcos e desinteressantes; quanto a jardins ou relvas, é o que se tem visto: o cabo dos trabalhos. Até mesmo as ervas aromáticas se vêem ameaçadas pelo avanço de tantas ervas daninhas. Isso não nos impede, no entanto, de praticar a arte da poda (ou seja, do corte ou desbaste de árvores, plantas ou vinhas) em muito do que nos passa pela mão. Às vezes até em segredos de Estado. Coisas de espiões, claro, das quais nem o Vaticano parece estar livre.

Mas é na escrita que melhor se tem aplicado, ultimamente, esta arte. Os mais ousados artistas nacionais, aliás, até a fazem de venda nos olhos, como nos circos. Uns têm o modelo mais recente da máquina electrónica de podar. Pegam num texto, põem-no lá dentro e ele sai já devidamente podado do outro lado. Outros fazem-no a olho, com a mais pura convicção de que o fazem melhor do que ninguém. Azar dos azares, às vezes cortam os ramos saudáveis. Exemplo: a palavra contacto. Antes do acordo ortográfico (AO90), escrevia-se contacto; com o acordo, continua a escrever-se contacto. Alguma dúvida? Não. Apesar disso, multiplicam-se mensagens onde se diz e repete: “deixe o seu contato”; “havemos de contatá-lo mais tarde”; “se quer contatar-nos, o endereço é”; etc. O problema é este: quem anda a aplicar o acordo na verdade não o leu, desconhece o que ele preconiza, mas cuida que basta tirar umas letras para escrever “em bom português”. Ora não basta. Confiar nos conversores ortográficos não chega. É preciso saber mais. Eu, que obviamente abomino tal peça, já li o acordo inúmeras vezes. A cada nova leitura fico mais aterrado, é certo, mas se me pedirem para escrever tal qual a nova “lei” (que não é lei nenhuma, já se disse), consigo fazê-lo. Só que, evidentemente, não quero. Não é o que sucede com a esmagadora maioria das pessoas, garanto. E isso dá nas calamidades que por aí se vai vendo.

Um exemplo, que o acordo até sanciona: no Museu Berardo do CCB, “conceptualismo” passou a escrever-se “concetualismo”. Assim mesmo. É uma invenção estritamente portuguesa, e ainda por cima absurda, já que a corrente artística sempre foi e continuará a ser conhecida por “conceptualismo” em Portugal e por “conceitualismo” no Brasil (são, aliás, sinónimos). O que o acordo fez, sem nenhum proveito (até porque este é um caso em que é “legalmente” consentida a dupla grafia, essa genial invenção do AO90), foi criar uma designação espúria que só serve para ser disparatadamente “adotada” por quem não tem o mínimo de conhecimento do português e das suas raízes.

O acordo é péssimo, já o escrevi e mantenho. Mas quem queira segui-lo ao menos que o leia. Esse procedimento tem duas vantagens: a primeira é evitar escrever barbaridades, tirando letras a eito só para estar “na moda” ortográfica; a segunda é ficar a conhecer, com rigor, o chorrilho de disparates que nos tentam impingir como uma benéfica “evolução” para a língua portuguesa. Se depois de lerem o acordo continuarem a “adotá-lo”, ao menos que o façam conscientemente. Mas, se escreverem “contato” em vez de contacto, errarão como Angela Merkel ao apontar Berlim, num mapa escolar, como uma cidade algures no meio da Rússia. Há disparates que não têm desculpa.

Nuno Pacheco

[Transcrição integral. In jornal “PÚBLICO” de 03.06.2012 – link indisponível para assinantes.]

[Nota: os conteúdos publicados na imprensa ou divulgados mediaticamente que de alguma forma digam respeito ao “acordo ortográfico” são, por regra e por inerência, transcritos no site da ILC já que a ela dizem respeito (quando dizem ou se dizem) e são por definição de interesse público (quando são ou se são).]

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6 comentários

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    • Maria Miguel on 3 Junho, 2012 at 23:14
    • Responder

    No caso do acordo, com letra minúscula, e Desacordo com maiúscula, só há uma cura: cortar o mal pela raiz. Sobretudo a erva daninha, quando é podada, ainda rebenta com mais força. Ramifica por todos os lados.
    Ora, quem aproveitou e está a aproveitar-se deste hediondo disparate, poderá querer negociar… mas só para amolecer os cidadãos cansados que nem já entendem a consequência de tal ilegalidade.
    Mais do que nunca o papel do Jornalista é predominante. A afronta à genealogia do Português será irreversível se não se estancar já tal demência.
    Peço ao SR. Jornalista que investigue casos de análise sintáctica, completamente insuportáveis e ridículos. Elaborará excelentes crónicas. O Conhecimento explícito da Língua (CEL) e o Desacordo têm que continuar a ser denunciados. Quem terão sido os génios? Obrigada

    • Hugo X Paiva on 4 Junho, 2012 at 3:00
    • Responder

    http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/04/120425_ivanlessa_tp.shtml Sem comentarios.

    • Jorge Teixeira on 5 Junho, 2012 at 9:59
    • Responder

    O que é que o Ivan Lessa anda a fumar? Também quero, parece ser altamente.

    • Palmira Matos on 6 Junho, 2012 at 20:53
    • Responder

    O texto “Aventuras herbáceas e erros de poda” de Nuno Pacheco, para além de retratar a triste realidade linguística do nosso maltratado Portugal, ainda usa o humor, uma mais valia no cinzento quotidiano… Subscrevo na íntegra o conteúdo do texto e, louvo as pinceladas inteligentes e bem humoradas…

  1. o texto do lessa é vergonhoso e pouco jornalístico. Só disparates. Mau para a reputação da BBC brasil

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