«A acta do cidadão» [Mendes Bota, “Público”]

Até hoje, não identifiquei, no meu círculo familiar e de proximidades, uma só pessoa que se manifeste favorável ao famigerado Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, de 1990.

Pelo contrário, percorrendo o caminho da transversalidade política e social da sociedade portuguesa, não será despiciendo afirmar-se que existe um profundo desacordo face a esta imposição convencional de renegar de um trago a forma como aprendemos a escrever e a falar a nossa pátria “pessoana”. As sondagens à opinião pública parecem confirmá-lo. Que acordo é este, então, que gera tamanha discórdia?

A disciplina partidária reinante no nosso sistema político-parlamentar pode obrigar a votar o absurdo. Mas não consegue, ainda, obrigar um cidadão a aplicar esse absurdo, naquilo que depende apenas da sua vontade. Não sei se a Iniciativa Legislativa dos Cidadãos que habita no sítio http://cedilha.net/ilcao logrará atingir os seus objectivos. Mas subscrevê-la será sempre o exercício de um direito de cidadania, que servirá de “acta” a todos quantos pretendam lavrar o seu protesto. E poderia ser, se os directórios partidários abdicassem por uma vez do seu código disciplinar, um caminho legislativo sem ónus eleitoral, para corrigir aquilo que se revela ser um erro enorme.

Seria interessante a abordagem constitucional para que nos convoca Vasco Graça Moura, sobre o que está em vigor na ordem jurídica portuguesa, o velho ou o novo Acordo Ortográfico, mas essa discussão está reservada aos deuses do olimpo, não parece mobilizadora da atenção do cidadão comum, de aqui e de agora. Este cidadão está a ser encaminhado para deixar de saber escrever, para decorar aquilo já lhe era intuitivo, para complicar aquilo que era simples.

Podem os editores dum lado e doutro do Atlântico esfregar as mãos de contentamento negocial, mas o seu ganho é uma minúscula à luz do nosso prejuízo maiúsculo. Não discuto as teses da etimologia ou da fonética. Podem desaparecer as consoantes mudas, nada fará calar a voz deste mal-estar, com forte acento gráfico e um hífen cravado entre o “anti” e o “acordo”. Esta aberração aí está, na prosa das escolas e das repartições públicas, e na escrita computorizada, a impor teimosamente um produto que tanta gente não quer consumir, sublinhando a vermelho erros não cometidos, qual “suave lavagem de cérebro”, no dizer autorizado de José Gil.

Mendes Bota
Presidente da Comissão para a Ética, a Cidadania e a Comunicação da AR

[Transcrição integral. In jornal “Público” de hoje, 03.05.12. Link não disponível.]

[Nota: os conteúdos publicados na imprensa ou divulgados mediaticamente que de alguma forma digam respeito ao “acordo ortográfico” são, por regra e por inerência, transcritos no site da ILC já que a ela dizem respeito (quando dizem ou se dizem) e são por definição de interesse público (quando são ou se são).]

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6 comentários

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  1. Francisco Assis e Mendes Bota formam um (por enquanto pequeno) «bloco central» de dignidade e de sensatez. Excepções que ainda não chegam para honrar um «par-lamento» onde a regra é a cobardia e a falta de patriotismo.

  2. Também é importante não esquecer os três deputados do PSD eleitos pela Região Autónoma dos Açores: Mota Amaral, Joaquim Ponte e Lídia Bulcão!

  3. O prezado deputado que me não leve a mal. O que impede uma iniciativa legislativa de deputado para arrepiarmos caminho? A proposta de lei aqui está redigida e pronta. Que impede um deputado de levá-la a plenário. Eu como eleitor não posso sem as 35 000 assinaturas. Mas a um deputado, que o impede de apresentar uma proposta de lei na Assembleia? Não foi para isso que lhe demos o mandato?
    Ponho à consideração dos meus concidadãos Lídia Bulcão, Mendes Bota, Mota Amaral, Joaquim da Ponte ou o Assis.
    Cumpts.

    1. Exactamente!

      Desde que os deputados votassem em consciência (por voto secreto, portanto) e não obedecendo a “disciplina partidária”, na sua condição de simples cidadãos que circunstancialmente são deputados, então – à semelhança de todos os inquéritos e sondagens realizados até à data – no mínimo o Projecto de Lei seria aprovado por maioria de dois terços.

    • Maria José Abranches on 5 Maio, 2012 at 23:33
    • Responder

    Exactamente, digo eu também! E faria todo o sentido que os deputados, eleitos por nós, se empenhassem em ouvir-nos e em dar voz ao sentir de uma larga maioria dos cidadãos! A Assembleia mereceria então, de facto, o nome de “casa da democracia”!

    • Luís Ferreira on 6 Maio, 2012 at 0:23
    • Responder

    Se os colegas de cima arranjarem uma nesga para eu enfiar a cabeça, também digo: nem mais! Até agora parece só “trinta e um de boca”. Não estão de acordo? Demonstrem-no onde podem, porque podem. Ou têm medo? Não são deputados? Estão de joelhos em relação a algo que nos passa ao lado?

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