«Pois é: antes fosse mentira» [Nuno Pacheco, “Público”]

Pois é: antes fosse mentira

Por NUNO PACHECO

Publico-2_01Abr2012Hoje, 1 de Abril, é o dia consagrado à mentira. Não precisávamos, é verdade. Já temos tantas e em tantos outros dias que a coisa se banalizou consideravelmente. Mas é provável que haja ainda quem siga a tradição. Assim: “Hoje vamos todos jantar a um restaurante caro! Saiu-me a lotaria!”; ou: “A crise acabou!”; ou: “O Álvaro já não é ministro!” Pois sim, então é 1 de Abril e acreditaram? É verdade, acreditaram. A mentira sorriu-lhes. Não se arranjará um dia consagrado à verdade?

Mesmo que arranjassem, haveria sempre alguém a infringir a regra. Aliás, é para isso mesmo que as regras se fizeram, para infringir. Não é verdade? Ou é mentira? Pouco importa, para o caso. Mas há verdades que gostaríamos que fossem mentira. Por exemplo: os portugueses andam a falar mal e a escrever pior. É verdade, mas devia ser mentira. Um exemplo é a moda que veio substituir palavras simples e directas por outras rebuscadas e pretensamente cultas. Vejamos. Ainda não há muito tempo, os verbos receber e perceber tinham utilização geral. Recebia-se uma mensagem e percebia-se (ou não) o que ela dizia. Hoje é diferente: receber foi substituído por recepcionar e perceber por percepcionar. Dá coisas como esta: “Bom dia, já recepcionou o que lhe enviei? E percepcionou tudo? É que há quem não percepcione logo à primeira…” Com o famigerado AO90 o diálogo melhora. Vejam: “Bom dia, rececionou a minha mensagem? Percecionou? Não? É que me pareceu que tinha acusado receção. Mas se não rececionou, reenvio. Quando rececionar, diga. Se não percecionar, explicarei melhor.”

Quem dera fosse mentira. Não é. Mas há pior. É vulgar ler, em textos de gente com idade para ter juízo, coisas como “tentou que o jogo se realiza-se hoje”, em lugar de “realizasse”. Nas legendas de filmes, então, é de bradar aos céus. Ver uma frase como “O livro? Lê-lo-ei mais tarde” é impossível. Já raros escrevem assim. Devem achar uma coisa medieval. É mais certo que escrevam “lerei-o mais tarde”. E passa, claro. Como país passa a “pais”, política a “politica” ou pátria a “patria”. Ou a patranha. Os acentos obrigam a carregar em duas teclas, é uma maçada, e por isso caem, a escrita degrada-se e a fala vai atrás. Há cada vez mais “traduções” de fazer chorar as pedras da calçada, como popularmente se diz. E, no entanto, resta o acordo ortográfico para nos salvar. Resta? Sim, nas televisões, no Estado, nalguns jornais, nalguns militantes da “causa” e em muitos forçados (mas contrariados) à “causa”. Porém, vai-se ao site da Sociedade de Língua Portuguesa e lá não é aplicado. Vai-se ao site da Academia das Ciências de Lisboa (de onde Malaca Casteleiro lançou o “monstro”) e também não mora lá. Onde mora, então? Mora, cada vez mais, em escritos “mistos”, onde, à falta de um bom domínio do português europeu ou do “acordês” recente, se misturam grafias de modo aleatório. Um bom exemplo disto é a moção L da JSD ao recente congresso do PSD. Lê-se e tem de tudo: “activo” e “ativo”, “efectivo” e “efetiva”, “acções” e “objetivos”, “factura” e “proteção”. Semi-cumpre o AO, semi-escreve português europeu (o tal que ainda vigora, mesmo que digam o contrário), semi-acerta e semi-erra. Belo futuro teremos…

Essa moção, curiosamente, começa com uma citação de Eugénio de Andrade. A política a abrir-se à poesia, bravo! Mas tanta atenção à poesia mereceu uma reclamação: a viúva de José Afonso veio a público protestar contra o uso de versos do cantor no congresso. O PSD, pressuroso, veio desmentir: fonte oficial do partido disse à agência Lusa que “não houve qualquer utilização” de poemas da autoria de José Afonso no XXXIV congresso do PSD. Para quê, se nem era 1 de Abril? As imagens da televisão não mentem e há uma fotografia num dos acessos ao congresso onde se lê, em destaque: “Seja bem-vindo/ quem vier por bem/ se alguém houver/ que não queira/ trá-lo contigo também (Zeca Afonso)” O cartaz é da JSD, Regional de Lisboa, e tem ainda outro slogannum carimbo rectangular: “Criar um futuro”. Pode dizer-se que o direito à citação é livre. Mas há coisas que se lêem tão mal fora do contexto quanto os erros ortográficos a coberto do “acordo”. Sejam sensatos, por favor.

Crónica do Jornal Público de 1 de Abril de 2012.

[Nota: os conteúdos publicados na imprensa ou divulgados mediaticamente que de alguma forma digam respeito ao “acordo ortográfico” são, por regra e por inerência, transcritos no site da ILC já que a ela dizem respeito e são por definição de interesse público.]

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2 comentários

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  1. Aqui temos a prova (para mim, um lenitivo, que já começava a descrer de que alguma integridade ainda subsistisse pelas redacções da generalidade dos órgãos de comunicação lusos) de que muitos profissionais da informação são obrigados pelos seus “superiores hierárquicos” a, violentando as suas consciências, escreverem segundo normas ortográficas de que discordam.
    A linguagem não é inócua, no que concerne ao conteúdo e à forma do que se transmite ao receptor da mensagem jornalística, condicionando a percepção do que se “recebe”, nomeadamente quando, como neste caso, se levantam suspeitas sobre o “ambiente” em que é produzida. Que credibilidade merece o trabalho jornalístico de quem assim é constrangido a usar ferramentas inapropriadas e o aceita? Alguma coisa de malsão tem de existir nas relações de trabalho, numa empresa de um sector tão importante para o funcionamento de uma sociedade democrática, quando os trabalhadores não se sentem livres para desrespeitarem ordens absurdas e abusivas – já que não se ligam à essência do que aí se produz, mas a questões acessórias e de ridícula importância -, o que pressupõe o desrespeito por direitos que são fundamentais, ainda que, para algumas criaturas, esvoaçantes de leveza de pensamento e análise, possam não o parecer.
    Em nome de quê emerge tão frenética ânsia de submissão à ditadura da asneira é que é coisa que não se descortina, em particular quando se trata de “media” privados, onde mal se entende o apressurado acto de vassalagem a uma lei idiota, que nem sequer pode estar em vigor, como exaustivamente tem explicado Vasco Graça Moura, na tentativa de que tão brilhantes espíritos, participantes nesta borrada internacional, finalmente consigam entender e agir de acordo com a mais elementar racionalidade.
    A única hipótese que parece ter alguma lógica é a de que tais “superiores”, maioritariamente pouco cultos (ainda que mui erudito possa ser um ou outro, do que, aliás, duvido…), inseguros do domínio da língua que lhes deveria servir de essencial ferramenta e, também, do obscuro “equilíbrio de forças” que lhes permite manter o lugarzinho, a que ascenderam por nebulosos méritos, e respectivas contrapartidas em maravedis, pelo seguro se achegam ao rebanho que cuidam ser maioritário (e é, tão só, ou de indiferentes, tropeçando sem agruras na pedregosa planura da sua iliteracia, ou de dóceis sequazes dos interesses difusos e labirínticos que conduziram, com o precioso auxílio de bojuda incompetência, ao Aborto Ortofágico) e nele se misturam, placidamente, no pasto.
    Importante, no artigo de Nuno Pacheco, é a alargada descrição do cabaz de disparates que o AO veio despejar sobre as já periclitantes aptidões linguísticas da maioria dos que mais recentemente aportaram à profissão… Abençoado esforço, que permite uma mais rigorosa avaliação da catástrofe redaccional que avassala as páginas da nossa imprensa escrita (e contamina a oralidade, por rádios e televisões).

    • Luís Ferreira on 3 Abril, 2012 at 10:01
    • Responder

    @Paulo Rato

    Muito bem visto!
    Serão, talvez, mercenários de caneta em punho? Creio que alguns o serão.

  1. […] que recusam aplicar o “acordo”, pelo menos em suporte digital, como sublinhava Nuno Pacheco na edição do Público deste domingo, são a Sociedade de Língua Portuguesa e (pasme-se) a […]

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