«Eterno desacordo» [Pedro Lomba, “Público”]

Prova provada e infalível de que o Acordo Ortográfico não conseguirá harmonizar a língua portuguesa, contra o que mais temem os seus críticos e porventura mais desejam os seus defensores, descobri-a eu anteontem numa notícia banal do “Jornal de Negócios”.

Em nota meramente factual contava-se que o ministro da Economia, o nosso Álvaro, fora inspeccionar uma lucrativa empresa em Aveiro que exporta autoclismos para todos os continentes. No título dizia-se: “Ministro da Economia visita maior produtor europeu de autoclismos”.

O país precisa de lavamento, pelo que podemos compreender o empenho do ministro na visita. Mas veio-me à memória uma história que li, já não sei onde, pelo punho do jornalista e escritor Ruy Castro. (Entretanto, dizem no Brasil que ele está doente; esperamos que recupere bem e depressa). Pois em 1973 Ruy Castro chegou a Lisboa para trabalhar numa revista brasileira cá editada. No primeiro dia de trabalho houve um problema na casa de banho e ele pediu à secretária: “Isabel, chame o bombeiro para consertar a descarga da privada”.

Isabel apenas percebeu o nome próprio e o “por favor”. Mas um colega do lado, brasileiro-português, já acostumado aos labirintos da língua entre Portugal e Brasil, traduziu o pedido: “Isabel, chame o canalizador para reparar o autoclismo da retrete”. E então sim, Isabel percebeu.

Tudo isto conta Ruy Castro. Como foi que surgiram entre nós os vocábulos ‘autoclismo’ e ‘retrete’, enquanto os brasileiros escolheram os termos ‘bombeiro’ e ‘privada’? Eu sei que a troika não trata destas coisas. Etimologicamente, aprendo no Houiass, “autós” significa em grego “por si mesmo” e “klusmós” “acção de lavar”. Privada entrou mais tarde e sem este amparo clássico. É produto duma outra civilização.

Nunca alinhei especialmente nas brigadas pró ou contra a unificação da ortografia. Por falta de competência não iria acrescentar nada ao debate. O que posso dizer é que nenhum acordo de escrita entre Brasil, Portugal e a África lusófona irá erradicar estas diferenças de vocabulário. E muitas outras existem, como toda a gente sabe.

Um brasileiro ficaria apatetado com a notícia do “Jornal de Negócios”. Quando o bloguista anonimamente conhecido de “O Meu Pipi” publicou as suas reflexões no Brasil, foi preciso uma edição especial que tornasse aquele vernáculo acessível aos brasileiros. Desde lado passa-se o mesmo. O Acordo Ortográfico tem sido muito atacado por fazer da língua falada métrica e padrão da língua escrita. Mas não existe acordo que resolva este eterno desacordo.

Pedro Lomba, jurista

[Transcrição de crónica da autoria de Pedro Lomba. Jornal “Público”, 01.03.12. Link disponível apenas para assinantes do jornal.]

Nota: os conteúdos publicados na imprensa ou divulgados mediaticamente que de alguma forma digam respeito ao “acordo ortográfico” são, por regra e por inerência, transcritos no site da ILC já que a ela dizem respeito e são por definição de interesse público.

“Post” publicado às 14:00 h.

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1 comentário

    • Inspector Jaap on 3 Março, 2012 at 12:17
    • Responder

    Caro Pedro,
    Concordando com tudo o que escreveu, permito-me fazer umas pequenas observações:
    1- Se fosse hoje, a pequena teria percebido tudo o que foi dito, depois de quase 40 anos de telenovelas. Já se deu, certamente conta, de que o “coiso” vai mesmo abrasileirar a maneira de falar, como se a escrita nisso não metesse prego nem estopa… é só ver os “telespetadores” e os cada vez mais vulgares “contatos” e “fatos”; espere calmamente pela 2ª vaga e estaremos em menos de um fósforo a dizer “poloneses” “idéias” e, se calhar, “egitianos”; a 3ª será certamente para acabar de decepar as outras consoante mudas, a bem da “umanidade”
    2- Assim, e se me permite o desassombro, acho que deveria mesmo tomar partido no que respeita ao AO, e, para isso, não estará em causa a sua competência – tê-la-á, certamente, mais do que muitas dessas alimárias acorditas – mas, tão-somente o seu amor à Língua Portuguesa, de outro modo como conseguiríamos nós lê-lo aqui, no espaço reservado aos arqui-inimigos do “coiso”???
    3- Os Portugueses têm, proverbialmente, um jeito inato para línguas, pelo que as famosas telenovelas mencionadas no ponto 1) nunca precisaram de ser “traduzidas”, mas olhe que o inverso não é verdadeiro, pergunte ao MS Tavares…
    4- Esta mexerufada gráfica, na qual nós não temos outro papel que o de capacho, é mesmo e só para fazer o frete ao Brasil, que ainda se há-de rir de nós, não cumprindo a sua parte do acordo, como, de resto, sempre fez no passado; de outro modo como se explica que a somar às consoantes etimológicas que o Brasil abomina, se tenham alterado palavras como os dias da semana, as estações do ano, etc. etc????
    Cumpts

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