«Sobre o Acordo Ortográfico» [José Gil, revista “Visão”]

Parece que, a pouco e pouco, o Acordo Ortográfico vai perdendo terreno. Todos os argumentos que o criticam foram já repetidamente enunciados: desde a importância da etimologia ser irreconhecível nas palavras desfiguradas, ao facto, intolerável, de se impedir assim o livre desenvolvimento e transformação do português. Este é, sem dúvida, um dos aspectos mais graves desse Acordo imposto artificialmente a todo um mundo de falantes da língua portuguesa.

Uma língua é um organismo vivo e, segundo o seu contexto social, geográfico, histórico, demográfico, económico, geopolítico, transforma-se imprevisivelmente. É a multiplicidade livre dos movimentos que fazem evoluir naturalmente uma língua que permite o surgimento de casos extremos, geniais, que subvertem a língua ao ponto de inventarem novas sintaxes dentro da sintaxe habitual: esses casos, revolucionários, como o de Guimarães Rosa ou de Pessoa, só são possíveis quando o espaço virtual de liberdade interna da língua se solta e ousa, para além do uso rotineiro e correcto da gramática.

Então nascem novas gramáticas (como a do Livro do Desassossego ou a do Grande Sertão: Veredas), novas palavras e expressões, os horizontes da língua abrem-se indefinidamente (até onde Pessoa poderia ter ido para além de onde foi? Ninguém duvida que poderia ter ido mais longe ainda, mas ninguém sabe para onde e até onde teria ido). Então descobre-se a maravilha de ser possível uma outra expressão linguística, um insuspeitável sentido das coisas, um outro pensamento. E uma outra expressão é uma dimensão até ali escondida, por dizer e para ser dita, da liberdade. Porque impede (ou entrava) tudo isto, o AO é repressivo e destruidor.

MAS NÃO SÃO Só AS POSSIBILIDADES dos casos extremos que são afectadas. Porque todos nós vivemos nesse meio natural das distâncias soltas e invisíveis que a língua cria a cada instante: no calão (língua do corpo), no humor, no jogo certeiro de um argumento, na invenção, por uma criança, de um palavrão. Vivemos mergulhados na liberdade da língua, para a qual permanentemente contribuímos. É que nós dizemos mesmo o que não sabemos que dizemos. Através do inconsciente da língua, o sentido físico, arcaico, dos fonemas, as sensações ligadas às letras, a doçura e a aspereza do ar inspirado e expirado no som inarticulado ou palreado pelo bebé são retomados sem o saber pelo adulto na palavra articulada. A ortografia é afectiva, polissémica, racional e fugidia, conectiva e disjuntivas (aliterações, ressonâncias, ritmos, cromatismos, etc), indutora de associações com novas palavras e construindo non-sens. Induz um espaço indefinido de criação. Como eu amava «auto-retrato» e me sinto esmagado pelo «autorretrato»! Porque contraria este movimento natural da escrita, o AO é néscio e grosseiro.

UM ÚLTIMO EFEITO, talvez o mais grave: o Acordo mutila o pensamento. A simplificação das palavras, a redução à pura fonética, o «acto» que se torna «ato», tornam simplesmente a língua num veículo transparente de comunicação. Todo o mistério essencial da escrita que lhe vem da opacidade da ortografia, do seu esoterismo, desaparece agora. O fim das consoantes mudas, as mudanças nos hífenes, a eliminação dos acentos, etc, transformam o português numa língua prática, utilitária, manipulável como um utensílio. Com se expusesse todo a seu sentido à superfície da escrita. O AO afecta não só a forma da língua portuguesa, mas o nosso pensamento: com ele seremos levados, imperceptivelmente, a pensar de outro modo, mesmo se, aparentemente, a semântica permanece intacta. É que, além de ser afectiva, a ortografia marca um espaço virtual de pensamento. Com o AO teremos, desse espaço, limites e contornos mais visíveis que serão muros de uma prisão onde os movimentos possíveis da língua empobrecerão. Como numa suave lavagem de cérebro.

José Gil

[Transcrição integral de artigo da autoria de José Gil publicado na revista “Visão” de hoje, 16.02.12.]

Nota: os conteúdos publicados na imprensa ou divulgados mediaticamente que de alguma forma digam respeito ao “acordo ortográfico” são, por regra e por inerência, transcritos no site da ILC já que a ela dizem respeito e são por definição de interesse público.

[Digitalização e OCR compostos às 19:34 h.]

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4 comentários

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    • Teresa Ramalho on 16 Fevereiro, 2012 at 19:40
    • Responder

    Boa tarde
    O autor é José Gil e não João Gil.
    Cumprimentos

    1. Claro. Ambos os meus computadores bloquearam no exacto momento em que me apercebi do lapso. Ou seja, bloqueei eu primeiro e os computadores depois. As minhas desculpas.

  1. Este autor tem uma visão perfeita do que significa bem como das consequências dramáticas deste gramaticida, perverso e inculto «Pseudo Acordo Orográfico», de 1990.
    Referiu, sinteticamente, tudo aquilo que tenho escrito, nos mais de oitenta textos que dedico, há mais de um ano, contra este crime perpetado contra a vernácula língua de Portugal. Os meus parabéns.
    Fernando Alberto

    • Hugo X. Paiva on 30 Novembro, 2012 at 8:59
    • Responder

    Excelente!

  1. […] Gil, Visão – ver artigo completo aqui) Gostar disto:GostoBe the first to like this […]

  2. […] «Sobre o Acordo Ortográfico» [José Gil ]. Share this:EmailGostar disto:GostoBe the first to like this . Deixe um […]

  3. […] e conformando-se, restando, sobretudo, os argumentos mais sólidos. Desses argumentos sobressai-se a opinião do filósofo, ensaísta e professor José Gil, que toca no calcanhar de Aquiles deste Acordo: o atendado à liberdade que o mesmo representa! Sem […]

  4. […] mutilado Reflexão interessante de José Gil – o seu texto vai muito além da argumentação mais comum contra o novo AO. O Acordo não “mutila o pensamento”, simplesmente o transforma. A questão é, e será […]

  5. […] JOSÉ GIL: “Sobre o Acordo Ortográfico,” Visão, 16 de Fevereiro de […]

  6. […] pluralidade de vozes discordantes surge com relevo o texto “Sobre o Acordo Ortográfico” de José Gil. Não apenas pelo que afirma, pois apesar do seu interesse não surge particularmente original. Mas […]

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