«Naufragar é preciso?» [JPC, revista Veja, Brasil]

Naufragar é preciso?

Começa a ser penoso para mim ler a imprensa portuguesa. Não falo da qualidade dos textos. Falo da ortografia deles. Que português é esse? Quem tomou de assalto a língua portuguesa (de Portugal) e a transformou numa versão abastardada da língua portuguesa (do Brasil)?

A sensação que tenho é que estive em coma profundo durante meses, ou anos. E, quando acordei, habitava já um planeta novo, onde as regras ortográficas que aprendi na escola foram destroçadas por vândalos extraterrestres que decidiram unilateralmente como devem escrever os portugueses.

Eis o Acordo Ortográfico, plenamente em vigor. Não aderi a ele: nesta Folha, entendo que a ortografia deve obedecer aos critérios do Brasil. Sou um convidado da casa e nenhum convidado começa a dar ordens aos seus anfitriões sobre o lugar das pratas e a moldura dos quadros. Questão de educação.

Em Portugal é outra história. E não deixa de ser hilariante a quantidade de articulistas que, no final dos seus textos, fazem uma declaração de princípios: “Por decisão do autor, o texto está escrito de acordo com a antiga ortografia”.

A esquizofrenia é total, e os jornais são hoje mantas de retalhos. Há notícias, entrevistas ou reportagens escritas de acordo com as novas regras. As crônicas e os textos de opinião, na sua maioria, seguem as regras antigas. E depois existem zonas cinzentas, onde já ninguém sabe como escrever e mistura tudo: a nova ortografia com a velha e até, em certos casos, uma ortografia imaginária.

A intenção dos pais do Acordo Ortográfico era unificar a língua. Resultado: é o desacordo total com todo mundo a disparar para todos os lados. Como foi isso possível?

Foi possível por uma mistura de arrogância e analfabetismo. O Acordo Ortográfico começa como um típico produto da mentalidade racionalista, que sempre acreditou no poder de um decreto para alterar uma experiência histórica particular.

Acontece que a língua não se muda por decreto; ela é a decorrência de uma evolução cultural que confere aos seus falantes uma identidade própria e, mais importante, reconhecível para terceiros.

Respeito a grafia brasileira e a forma como o Brasil apagou as consoantes mudas de certas palavras (“ação”, “ótimo” etc.). E respeito porque gosto de as ler assim: quando encontro essas palavras, sinto o prazer cosmopolita de saber que a língua portuguesa navegou pelo Atlântico até chegar ao outro lado do mundo, onde vestiu bermuda e se apaixonou pela garota de Ipanema.

Não respeito quem me obriga a apagar essas consoantes porque acredita que a ortografia deve ser uma mera transcrição fonética. Isso não é apenas teoricamente discutível; é, sobretudo, uma aberração prática.

Tal como escrevi várias vezes, citando o poeta português Vasco Graça Moura, que tem estudado atentamente o problema, as consoantes mudas, para os portugueses, são uma pegada etimológica importante. Mas elas transportam também informação fonética, abrindo as vogais que as antecedem. O “c” de “acção” e o “p” de “óptimo” sinalizam uma correta pronúncia.

A unidade da língua não se faz por imposição de acordos ortográficos; faz-se, como muito bem perceberam os hispânicos e os anglo-saxônicos, pela partilha da sua diversidade. E a melhor forma de partilhar uma língua passa pela sua literatura.

Não conheço nenhum brasileiro alfabetizado que sinta “desconforto” ao ler Fernando Pessoa na ortografia portuguesa. E também não conheço nenhum português alfabetizado que sinta “desconforto” ao ler Nelson Rodrigues na ortografia brasileira.

Infelizmente, conheço vários brasileiros e vários portugueses alfabetizados que sentem “desconforto” por não poderem comprar, em São Paulo ou em Lisboa, as edições correntes da literatura dos dois países a preços civilizados.

Aliás, se dúvidas houvesse sobre a falta de inteligência estratégica que persiste dos dois lados do Atlântico, onde não existe um mercado livreiro comum, bastaria citar o encerramento anunciado da livraria Camões, no Rio, que durante anos vendeu livros portugueses a leitores brasileiros.

De que servem acordos ortográficos delirantes e autoritários quando a língua naufraga sempre no meio do oceano?

João Pereira Coutinho

[Transcrição integral de texto da autoria de João Pereira Coutinho publicado na revista brasileira “Veja” de 10.01.12; esta transcrição foi copiada da “Coluna do Augusto Nunes”, um dos inúmeros “blogs” em que o mesmo texto foi reproduzido.]

Nota: os conteúdos publicados na imprensa ou divulgados mediaticamente que de alguma forma digam respeito ao “acordo ortográfico” são, por regra e por inerência, transcritos no site da ILC já que a ela dizem respeito e são por definição de interesse público.

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3 comentários

    • Inspector Jaap on 18 Janeiro, 2012 at 15:44
    • Responder

    Mas, perante este desassombro (de louvar, saliente-se) é preciso dizer mais alguma coisa??? Pois se até os “beneficiados” deste aborto não o conseguem tragar…
    O que esses sujeitinhos de horizonte limitado fizeram, com a passividade do nosso apagado e vil povo, se fossem estrangeiros (eles são estrangeiros de facto, que não de direito), seria caso, se ainda houve alma em Portugal, para entrarmos em guerra com esse país…
    Como diria Camões: “ e se mais macaca houvera, cá bichara”
    Cumprimentos, caro João.

    • Helga Shermann Schmidt on 18 Janeiro, 2012 at 23:11
    • Responder

    CAIU MAIS UMA MÁSCARA!

    Cumprimentos ao Sr. Coutinho pelo excelente esboço. Agradeço a JPG pela transcrição do mesmo. Assim, vários portugueses se libertam de uma ideia errada que lhes foi dada pelos próprios acordistas sobre a aceitação da nova ortografia no Brasil. Muitos portugueses foram levados a crer que os brasileiros adoraram tais aberrações. A mídia (os media) abafa os vários protestos de acadêmicos.
    Até mesmo uma senadora brasileira, pessoa muito sensata, Ana Amélia Lemos protocolou no Senado um pedido de Audiência pública tendo como objetivo a discussão da legalidade do A090. Nada disso foi divulgado ao público brasileiro para que não endossasse maiores movimentos.

    Cumpts a todos!

    • segismundo empis bragança on 19 Janeiro, 2012 at 22:52
    • Responder

    Leio sempre com prazer os recentes livros e artigos escritos por quem sabe usar bem a lingua portuguesa (entre os quais cito Vasco Graça Moura e João Pereira Coutinho), com a esperança de que consigam convencer cada vez mais leitores, para resistir ao AO90, apesar do péssimo exemplo dado pela gradual desistencia dos jornais e semanários de maior circulação. É mais uma moda destes tempos de euforia desmanteladora do universo português, com o rótulo de progressismo. Na realidade esta chamado acordo não passa de uma forma de anarquia gráfica e gramatical, pois cada país lusófono continuará a escrever de acordo com a sua própria evolução regional, alheios ao AO90.
    Porque não seguimos o exemplo do que se passa no mundo linguistico castelhano, anglo-saxónico ou francês ?
    Por indiferença, por seguidismo da nomenculatura ?
    Lamentável atitude amorfa……

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