«’Velho do Restelo’, e com muito orgulho!» [Octávio dos Santos, Público]

click para ampliar

click para ampliar

Debate – A língua portuguesa e Acordo Ortográfico

‘Velho do Restelo’, e com muito orgulho!

Octávio dos Santos
Jornalista e escritor

Em Setembro de 2011, num dos vários “debates blogosféricos” em que regularmente participo, alguém — anónimo, claro! — chamou-me “Velho do Restelo” por ser contra o Acordo Ortográfico. Ao que eu respondi: “antes “Velho do Restelo” do que “piloto enviado por Baco”; antes céptico do que traidor.” E com muito orgulho!

Como aos “acordistas” faltam argumentos e factos convincentes e racionais, a sua “defesa” habitual passa, precisamente, por chamar nomes aos que se opõem ao “aborto ortográfico”. E as calúnias mais frequentes são as de “bota-de-elástico”, “conservador”, “avesso à mudança”, ou outros termos semelhantes. Para eles, “mudar”… é sempre bom, mesmo que não seja necessário, mesmo que muitos (a maioria) não o queiram; eles acreditam que, porque se mudou antes (e há que saber sempre em que circunstâncias se processaram essas mudanças), nada de válido pode haver que impeça que se mude outra vez (e outra… e outra… e outra…). Os acordistas” são como ladrões que dizem para as suas vítimas: “Se já vos roubámos antes, em outras ocasiões, por que não haveremos de o fazer outra vez? Se já se habituaram a que vos tiremos coisas, por que é que refilam agora, quando já pouco vos resta?” Dizem eles que a língua tem de “evoluir”. Mas quem é que decide o tempo e o modo dessa “evolução”?

Ao contrário de “acordos” e de “reformas” na ortografia anteriores, o AO90 assenta numa alteração radical: já não se trata de substituir (o “ph” pelo “f”, o “y” pelo “i”) ou de simplificar (deixar de haver consoantes repetidas), mas sim de cortar, eliminar, letras e acentos que são necessários, que têm funções concretas. É uma “mudança revolucionária” através de uma “ditadura de uma (muito pequena) minoria”. E aos que acharem abusiva a aplicação de expressões de cariz ideológico a um assunto cultural pode e deve recordar-se o que o “secretário-geral” João Malaca Casteleiro disse em 2008: o acordo ortográfico “não é uma questão linguística, é uma questão política”. Ao contrário de «acordos» e de «reformas» na ortografia anteriores, o AO90 assenta numa alteração radical: já não se trata de substituir (o «ph» pelo «f», o «y» pelo «i») ou de simplificar (deixar de haver consoantes repetidas) mas sim de cortar, eliminar, letras e acentos que são necessários, que têm funções concretas. É uma «mudança revolucionária» através de uma «ditadura de uma (muito pequena) minoria». E aos que acharem abusiva a aplicação de expressões de cariz ideológico a um assunto cultural pode-se e deve-se recordar o que o «secretário-geral» João Malaca Casteleiro disse em 2008: o acordo ortográfico «não é uma questão linguística, é uma questão política». E quem é ele para ser um protagonista numa questão política? Quem é que lhe deu o poder para decidir, para determinar uma transformação tão profunda e fundamental de âmbito nacional? Não fui eu, de certeza, nem a generalidade dos portugueses.

A questão fulcral aqui é, de facto, a de (saber quem tem) autoridade, legitimidade — científica, moral, política. De que decorre, por sua vez, um “confronto” inevitável e, aparentemente, inultrapassável: por um lado, os alguns) supostos “especialistas”, elitistas, por vezes com acesso privilegiado ao poder e “credibilidade” junto dele, que se consideram como que a “vanguarda da classe (operária ou literária)” e adoptaram como missão a sua vida instruir, “iluminar” as massas populares ignorantes; por outro lado, a esmagadora maioria da população, onde se incluem tanto entendidos como leigos, e que consideram que a língua, a ortografia, é um assunto demasiado importante para ser deixado apenas nas mãos de um qualquer grupo obscuro ou de uma qualquer sociedade secreta. Em suma, é um confronto entre não-democratas e democratas.

Ninguém tem o dever de aceitar (e de se habituar a) este AO, que é ilegítimo (na forma e no conteúdo), irracional e inútil. Ele seria inaceitável mesmo que obrigasse a uma verdadeira “uniformização” da ortografia… só que, para cúmulo do ridículo, o “acordo” não só não “uniformiza” como aumenta, por via do acréscimo de novas duplas grafias, o número de palavras “à paisana”! Repare-se: no Brasil continuará a ser “autorizado” escrever, por exemplo, “detectar” e “receptivo”; porém, em Portugal é suposto passar a escrever-se “detetar” e “recetivo”. E quem é que, honestamente, consegue jurar que, por exemplo, “espectador” e “espetador” se lêem da mesma maneira? Acaso alguém com um mínimo de juízo, de sensatez, irá alinhar nesta anedota? Acaso ainda restam algumas dúvidas quanto à utilidade e à validade (zero em ambos os casos) de todo este processo?

Por os disparates serem tantos que já não é possível disfarçá-los, surgiu entretanto a ideia de que o AO90 é “corrigível”… apesar de continuar a ser “irreversível”. Se for tão “irreversível” como o acordo de 1945, estamos conversados… No entanto, não faltam, no grande “cemitério da História”, ideias, factos, entidades e até países “irreversíveis”. Como o “Reich dos 1000 anos”. Ou a URSS. Aliás, com o Adolfo ou com o José teriam sem dúvida carreiras de sucesso alguns dos mais fanáticos “acordistas” — em que se incluem alguns ditos “jornalistas” que admitem que têm de se “render” ao AO e que se vangloriam de ajudar a “quebrar a oposição” ao dito cujo por parte dos portugueses. É por isso que estes têm na subscrição da Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico (https://ilcao.com/) a melhor resposta a dar a tamanha “declaração de guerra”… e demonstração de desprezo.

Octávio dos Santos, jornalista e escritor

Artigo da autoria de Octávio dos Santos publicado na edição de hoje, 15.01.12., no jornal Público, a páginas 54. [Link disponível apenas para assinantes do jornal.]

Print Friendly, PDF & Email
Share

Link permanente para este artigo: https://ilcao.com/2012/01/15/velho-do-restelo-e-com-muito-orgulho-octavio-dos-santos-publico/

11 comentários

1 ping

Passar directamente para o formulário dos comentários,

  1. Grande artigo! Ferra a garrocha em cheio na cernelha acordita e põe o merecido cabresto nos lombos desse Malaca. Olé!
    Só falta juntar o impressozinho da I.L.C. com a tiragem diária do «Público» para sairmos em triunfo.
    Cumpts.

  2. Não podia concordar mais, é precisamente isto. Excelente artigo!

    • Inspector Jaap on 16 Janeiro, 2012 at 23:03
    • Responder

    Gente deste calibre é que precisamos! e a abordagem tauromáquica do Bic é a cereja no cimo deste bolo notável que é o texto acima. Parabéns, Octávio dos Santos.
    Cumpts

    • Luís Ferreira on 17 Janeiro, 2012 at 0:46
    • Responder

    Quanto é que poderá custar juntar um impresso da ILC ao Público numa tiragem do melhor dia da semana?

    1. Boa pergunta…
      Talvez alguém do Público a leia e responda…

  3. Se este jornalista quiser baptizar o filho com o seu próprio nome vai ter de sujeitar a criança a ser «Otávio», já viram.
    Cumpts.

    • Maria José Abranches on 18 Janeiro, 2012 at 15:52
    • Responder

    A coragem, a convicção e o valor dos jornalistas não se testam apenas nos teatros de guerra! Continuo à espera de um sobressalto “cívico” generalizado contra o AO, por parte de quem deve à nossa língua materna a sua razão de ser e tem tamanha visibilidade e influência! Obrigada, Octávio dos Santos.

    • Maria de Fátima Cruz Lima on 19 Janeiro, 2012 at 14:22
    • Responder

    Como brasileira, também sou desfavorável à inserção da nova ortografia. Temos este ano para pôr a casa em ordem, ou seja, deixar os alunos “craques” em se tratando da nova escrita.
    Por que encher mais a cabeça dos estudantes se eles já têm “N” coisas para aprender?

  4. Cara Maria José Abranches, não tem de agradecer: não faço mais do que a minha obrigação. E muito gostaria que outros «colegas» meus se pronunciassem, e agissem, contra… (Obrigado também a «HC» e ao «Inspector Jaap», mas preferia conhecer os vossos verdadeiros nomes…)

    Cara Maria de Fátima Lima, sei perfeitamente que do outro lado do Atlântico também se contesta este «acordo». Dele não atribuo a culpa aos brasileiros mas sim a alguns «portugueses» sem dignidade.

    Caro «Bic Laranja», só tenho filhas (três). Se tivesse um filho, quase de certeza não lhe daria o meu nome. Mas, se desse, ai de quem tentasse impedir que ele se escrevesse com «c»…

    1. “HC” é a nossa companheira de luta Hermínia Castro.

    • João Batista on 27 Janeiro, 2012 at 21:57
    • Responder

    Pois então receba o apoio de um Baptista, vítima de um “pacto ortoplástico” e que teve de se transformar num Batista, sob pena de nem sequer ser reconhecido como legítimo cidadão deste país…
    Não há preço que me paguem para ignorar mil anos de cultura e me obrigarem a “escrevinhar” fonemas gráficos para fazer a vontade política a alguém. Escrevo e continuarei a escrever a minha língua pátria sem me importar com os arrotos culturais seja de quem for.
    Não cedo, nem cederei, a desarranjos mentais de quem, sem mais nada útil para fazer da vida, pretende dogmatizar-me.
    Não sou cobaia de quaisquer tiques Pavlovianos, nem dou ao desbarato esses mil anos que correm no meu sangue, de orgulhoso Baptista.

  1. […] Na edição de hoje (Nº 7951) do jornal Público, e na página 54, está o meu artigo «“Velho do Restelo”, e com muito orgulho!». Um excerto: «Ao contrário de “acordos” e de “reformas” na ortografia anteriores, o AO90 assenta numa alteração radical: já não se trata de substituir (o “ph” pelo “f”, o “y” pelo “i”) ou de simplificar (deixar de haver consoantes repetidas) mas sim de cortar, eliminar, letras e acentos que são necessários, que têm funções concretas. É uma “mudança revolucionária” através de uma “ditadura de uma (muito pequena) minoria”.» Transcrição integral aqui. […]

Responder a Octávio dos Santos Cancelar resposta

O seu endereço de email não será publicado.